A Eucaristia: a vida antes do dogma
Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
08 Junho 2024
Numa entrevista recente concedida a Norah O’Donnel, o Papa Francisco preveniu contra os
perigos do dogmatismo: “Um conservador é alguém que se agarra a algo e não quer ver
mais para lá. É uma atitude suicida porque uma coisa é ter em conta a tradição, considerar
as situações do passado, outra é encerrar-se numa caixa dogmática.” Francisco tem razão e,
neste contexto, volto à celebração da Eucaristia, essencial na Igreja.
Jesus, na iminência da condenação à morte, ofereceu uma ceia, a Última Ceia. Nela, dando
graças, abençoando o pão e o vinho, que significam a entrega da sua pessoa por amor a
todos, disse: “Fazei isto em memória de mim.”
Os primeiros cristãos reuniam-se e, recordando (palavra encantadora: voltar a passar pelo
coração), fazendo memória dessa Ceia, do que Jesus fez e é, celebravam um ágape, o “partir
do pão”, uma refeição festiva e fraterna, abertos a um futuro novo de Vida. E aconteceu o
que constituiu talvez a maior revolução do mundo antigo: se algum senhor se tinha
convertido à fé cristã, sentava-se agora à mesma mesa que os seus escravos, em
fraternidade.
Foi mais tarde, também porque os cristãos eram acusados de ateus por não oferecerem
sacrifícios à divindade, que a Missa foi perdendo esse carácter de banquete festivo e
fraterno e começou a ser concebida como sacrifício. Havia aí uma imolação e - ainda li isso
num manual de Teologia - uma mactatio mystica Christi (matação mística de Cristo),
discutindo-se se era real, moral, sacramental. Mas, desta transformação, resultaram
equívocos clamorosos.
Sim, Jesus foi vítima, mas vítima de um assassinato político-religioso, não de um deus
sádico. Não fugiu, não se acobardou, aceitou a morte e morte de cruz, entregou-se a si
mesmo, para dar testemunho da Verdade e do Amor. Não à maneira de vítima sacrificial
expiatória, para impetrar a misericórdia de Deus e aplacar a sua ira, como desgraçadamente
foi ensinado na catequese. Uma concepção cultual sacrificial contradiz a revelação essencial
de Jesus: Deus é bom, Pai/Mãe, “Abbá”, “amor incondicional”. Não quer sacrifícios, mas
justiça e amor.
Com esta concepção sacrificial, embora nem Jesus nem os Apóstolos tenham ordenado
sacerdotes e o Novo Testamento tenha evitado a palavra hiereus, apareceu o sacerdote que
oferece o sacrifício. Com a celebração diária da Missa enquanto sacrifício impôs-se a
obrigação do celibato, pois o sacerdote está separado, à parte, e não pode tocar a
profanidade impura do corpo da mulher. Precisamente por esta razão, a mulher é excluída
da ordenação: é naturalmente impura. Em parte, radica aqui a misoginia da Igreja, até com
traços ridículos - disse um bispo: como é que a mulher, feita para ser mãe, poderia
“sacrificar o Filho de Deus”? Incompreensivelmente, o Papa Francisco, na mesma entrevista
citada no início, acaba de excluir mesmo a ordenação diaconal de mulheres: “Se se fala de
diáconos munidos das ordens sacras, não”, foi taxativo.
Os sacerdotes acabavam por adquirir um poder sacro, divino: o de “trazer Cristo à Terra”,
realizando o milagre da transubstanciação do pão e do vinho. Se casarem, são “reduzidos”
ao estado laical, como se ser clérigo fosse um estado mais nobre dentro da Igreja. Nesta
declaração do Cardeal Robert Sarah na homilia da celebração do jubileu da sua ordenação
sacerdotal estão claros todos os perigos da ordenação sacra: “Um sacerdote é um homem
que ocupa o lugar de Deus, um homem que está revestido de todos os poderes de Deus.
Vejam o poder do sacerdote! A língua do sacerdote faz um Deus de um bocadinho de pão”.
Aqui está a raiz do clericalismo e, contra a vontade de Jesus que disse: “sois todos irmãos”, a
Igreja com duas classes: o clero e os leigos.
E a Eucaristia deixou de ser celebração festiva em que todos concelebram, para tornar-se
um sacrifício objectivo autónomo, que o padre até podia celebrar sozinho e oferecia pelas
almas do purgatório e outras intenções. Era possível ir à Missa e não comungar, pois está-se
lá, mas de fora, esquecendo que a celebração da memória de Jesus deve implicar uma real
conversão ao seu projecto.
Sim, os católicos acreditam que na Eucaristia, na celebração enquanto tal da sua memória,
vida, morte, ressurreição..., Jesus está realmente presente. Mas atente-se que, na Ceia, “Isto é
o meu Corpo”, “Este é o cálice do meu Sangue”, o “é” tem sentido funcional: isto representa a
minha vida entregue por amor a todos. “Tomai e comei, tomai e bebei”: este comer e beber
não é um acto biológico-gastronómico, mas acolher a pessoa de Jesus como amigo
determinante na vida e na morte. Para evitar até a acusação de teofagia, é preciso distinguir
entre presença física e presença espiritual-pessoal: pode-se estar fisicamente presente e
realmente ausente. Hegel viu bem o perigo da coisificação na Eucaristia, ao escrever que,
segundo a representação católica, “a hóstia é, mediante a consagração, o Deus presente -
Deus como coisa”.
Com a interpretação coisista da presença de Cristo, muitos, indo à Missa e não comungando,
vêem-se libertos da urgência da conversão ao projecto de Jesus. Ora, nesta não conversão é
que São Paulo via que na refeição memorial “comemos o pão e bebemos o cálice do Senhor
indignamente”, tornando-nos “réus do corpo e do sangue do Senhor”, isto é, culpados da sua
morte. De facto, ele constata na comunidade de Corinto divisões e que enquanto uns comem
lautamente e se embebedam outros passam fome.
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