1. Já me referi muitas
vezes ao notável Documento Fraternidade
Humana para
a Paz e Coexistência Mundial, uma declaração conjunta assinada pelo Papa Francisco da Igreja
Católica e Ahmed el-Tayed, Grande Imam de Al -Azhar, em 4 de Fevereiro de 2019,
em Abu Dhabi, e à Carta Encíclica, Fratelli Tutti, do Papa Francisco em
2020. São documentos tão extraordinários que podem ter muitas leituras,
mas não é só por suscitar muitas leituras que são importantes. A fraternidade
universal parece uma miragem e não uma realidade a reconhecer e a conquistar.
A importância dos
textos depende da realidade que exprimem e, sobretudo, das consequências, das
iniciativas que suscitam. Nesse aspecto, é fundamental saber o que se passa a
nível dos diferentes países, nas realizações concretas. É, por isso, importante conhecer iniciativas,
pessoas, movimentos, instituições que trabalham para tornar realidade o que a
outros parecem mais miragens do desejo do que realidades possíveis. Esse mundo
é mais vasto do que julga quem não vive por dentro as suas alegrias e os seus
tormentos. Nesse aspecto, a informação é fundamental. O Jornal Público e
outros meios de comunicação têm cumprido, exemplarmente, a sua missão. Quando
falamos de imigrantes, afinal, de quem falamos?[1]
Por exemplo, a
notícia sobre a transformação do antigo Seminário do Fundão, em Centro de
Acolhimento e Apoio aos imigrantes, tem dinamizado toda aquela zona.
Segundo o próprio autarca
do Município diz que «o Fundão estendeu a mão aos imigrantes e com eles está a
salvar toda a região». Nesta cidade do interior convivem 74 nacionalidades. Com
um Centro para as Migrações como base, combate-se a desertificação e a falta de
mão-de-obra, tornando-se um modelo de integração. A cidade é um exemplo
nacional e internacional de boas práticas de integração e, em 2023, foi nomeada
Capital Europeia para a inclusão e diversidade. Ser uma «terra de
acolhimento» não é apenas um gesto humanista que salva vidas de imigrantes – é
também a salvação da própria terra. A partir dos anos 1960 do século XX, e em
apenas 20 anos, o Fundão perdeu quase metade da população activa. Envelheceu e
deprimiu-se. «As empresas e instituições estavam a definhar porque não tinham
mão-de-obra. E isso significava também uma redução de oportunidades para os
fundanenses de várias gerações», aponta o autarca. O raciocínio pode ser
extrapolado: «Portugal será nos próximos anos aquilo que for a nossa capacidade
de ser um país de acolhimento como deve ser»[2].
Mas não é caso único em Portugal, desde Trás-os-Montes até ao Algarve, existem
Centros deste género com o envolvimento de «crentes e não crentes».
2. Os
cristãos não devem pretender o exclusivo de nada. Pelo contrário, têm por
missão despertar o mundo, de todos os tempos e lugares, para o Programa de
Jesus que o Novo Testamento, nas suas diversas expressões, testemunha.
S. Lucas diz assim: «Jesus, impelido pelo
Espírito de Deus, voltou para a Galileia e a sua fama propagou-se por toda a
região. Ensinava nas sinagogas e todos o elogiavam. Foi a
Nazaré, onde tinha sido criado. Segundo o seu costume, entrou em dia de sábado
na sinagoga e levantou-se para ler. Entregaram-lhe o livro do
profeta Isaías e, desenrolando-o, deparou com a passagem em que está escrito: O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me ungiu para
anunciar a Boa-Nova aos pobres; enviou-me a proclamar a libertação aos cativos
e, aos cegos, a recuperação da vista; a mandar em liberdade os oprimidos, a proclamar um ano favorável da parte do Senhor.
Jesus, intencionalmente, não leu todo esse texto
de Isaías. Saltou a parte que dizia: “e a proclamar um ano da vingança”. Quando chegou aí, enrolou o livro, entregou-o ao responsável e
sentou-se. Todos os que estavam na sinagoga tinham os olhos fixos nele. Começou, então, a dizer-lhes: Cumpriu-se hoje esta passagem da
Escritura, que acabais de ouvir.
Cumpriu-se, de facto, e muito mais do que se pode
pensar à primeira vista. Dir-se-ia que Jesus cometeu um crime em relação
ao Antigo Testamento. Tocou no que havia de mais sagrado em Israel como se
fosse ele a mandar.
Esse era um ano da graça e da vingança de Deus,
um ano jubilar. Jesus não estava de acordo e, quando chegou à palavra
vingança, não a leu, fechou o livro e entregou-o. Isto era uma revolução: de Deus
só pode vir a graça, o amor de pura gratuidade, nunca a vingança.
Segundo S. Lucas, a partir deste seu gesto, os
que se pensavam justos viram nele o maior pecador blasfemo. Por isso, o
quiseram expulsar da sua própria cidade. Mas Jesus, como portador da pura graça
de Deus, abriu a porta a todos os que os outros julgavam condenados. A graça de
Deus não é fruto dos nossos méritos, mas da pura generosidade divina.
Jesus não surgiu a distribuir prémios e castigos.
Situou-se no meio de todos os considerados pecadores, apontando-lhes o caminho
da esperança[3].
S. Mateus é ainda mais explícito. No célebre capítulo
25, identifica Cristo com todos os que sofrem. O bem que fizermos aos mais
desprezados e sofredores é a Ele que o fazemos, assim como é a Ele que deixamos
de fazer, quando não socorremos os que sofrem. Aliás, esta parábola é uma outra
versão da chamada ética samaritana[4].
São parábolas como estas que dizem, para todos os
tempos e lugares, a responsabilidade dos cristãos na sociedade e o que todo o
mundo poderia esperar. Os cristãos colaboram na construção do Reino de Deus, no
reino do ser humano, quando aceitam estes desafios.
3. Comecei por me referi aos muitos sentidos que a
palavra imigração evoca. A Rede Mundial Talitha Kum (levanta-te)
defronta uma questão ainda mais grave: o Tráfico de Seres Humanos (TSH), a
pessoa reduzida a simples mercadoria. De 18 a 24 do passado mês de Maio,
realizou a sua 2ª Assembleia Geral, em Sacrofano (Itália, perto de Roma), para elaborar
a Declaração de compromissos para os próximos cinco anos, afim de erradicar o
TSH, com a participação de 153 delegadas/os, de 71 países de todos os continentes,
incluindo Portugal. A missão desta Rede é a de despertar/sensibilizar para a
escandalosa escravidão dos nossos dias e sua erradicação.
PS: Durante
muito tempo, as mulheres não se atreviam a dizer Nós Somos Igreja, porque
excluídas das responsabilidades eclesiais reservadas aos homens. Em 1996, em Portugal,
um grupo de mulheres adoptou esse mesmo nome para mobilizar a Igreja, de
mulheres e homens, para a urgência em mudar essa situação.
A morte
recente de duas das fundadoras do Movimento Nós Somos Igreja – Mariana
Mendes Pereira (que muito me ajudou na minha colaboração para o Público e
outras publicações) e Maria João Sande Lemos – não deve enfraquecer o Movimento.
Estão juntas todas as outras mulheres que procuram uma Igreja de acesso aos
ministérios eclesiais.
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