domingo, 9 de junho de 2024

O MUNDO DOS IMIGRANTES Frei Bento Domingues, O.P. 09 Junho 2024

 

1. Já me referi muitas vezes ao notável Documento Fraternidade Humana para a Paz e Coexistência Mundial, uma declaração conjunta assinada pelo Papa Francisco da Igreja Católica e Ahmed el-Tayed, Grande Imam de Al -Azhar, em 4 de Fevereiro de 2019, em Abu Dhabi, e à Carta Encíclica, Fratelli Tutti, do Papa Francisco em 2020. São documentos tão extraordinários que podem ter muitas leituras, mas não é só por suscitar muitas leituras que são importantes. A fraternidade universal parece uma miragem e não uma realidade a reconhecer e a conquistar.

A importância dos textos depende da realidade que exprimem e, sobretudo, das consequências, das iniciativas que suscitam. Nesse aspecto, é fundamental saber o que se passa a nível dos diferentes países, nas realizações concretas.  É, por isso, importante conhecer iniciativas, pessoas, movimentos, instituições que trabalham para tornar realidade o que a outros parecem mais miragens do desejo do que realidades possíveis. Esse mundo é mais vasto do que julga quem não vive por dentro as suas alegrias e os seus tormentos. Nesse aspecto, a informação é fundamental. O Jornal Público e outros meios de comunicação têm cumprido, exemplarmente, a sua missão. Quando falamos de imigrantes, afinal, de quem falamos?[1]

Por exemplo, a notícia sobre a transformação do antigo Seminário do Fundão, em Centro de Acolhimento e Apoio aos imigrantes, tem dinamizado toda aquela zona.

Segundo o próprio autarca do Município diz que «o Fundão estendeu a mão aos imigrantes e com eles está a salvar toda a região». Nesta cidade do interior convivem 74 nacionalidades. Com um Centro para as Migrações como base, combate-se a desertificação e a falta de mão-de-obra, tornando-se um modelo de integração. A cidade é um exemplo nacional e internacional de boas práticas de integração e, em 2023, foi nomeada Capital Europeia para a inclusão e diversidade. Ser uma «terra de acolhimento» não é apenas um gesto humanista que salva vidas de imigrantes – é também a salvação da própria terra. A partir dos anos 1960 do século XX, e em apenas 20 anos, o Fundão perdeu quase metade da população activa. Envelheceu e deprimiu-se. «As empresas e instituições estavam a definhar porque não tinham mão-de-obra. E isso significava também uma redução de oportunidades para os fundanenses de várias gerações», aponta o autarca. O raciocínio pode ser extrapolado: «Portugal será nos próximos anos aquilo que for a nossa capacidade de ser um país de acolhimento como deve ser»[2]. Mas não é caso único em Portugal, desde Trás-os-Montes até ao Algarve, existem Centros deste género com o envolvimento de «crentes e não crentes».

2. Os cristãos não devem pretender o exclusivo de nada. Pelo contrário, têm por missão despertar o mundo, de todos os tempos e lugares, para o Programa de Jesus que o Novo Testamento, nas suas diversas expressões, testemunha.

S. Lucas diz assim: «Jesus, impelido pelo Espírito de Deus, voltou para a Galileia e a sua fama propagou-se por toda a região. Ensinava nas sinagogas e todos o elogiavam. Foi a Nazaré, onde tinha sido criado. Segundo o seu costume, entrou em dia de sábado na sinagoga e levantou-se para ler. Entregaram-lhe o livro do profeta Isaías e, desenrolando-o, deparou com a passagem em que está escrito: O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me ungiu para anunciar a Boa-Nova aos pobres; enviou-me a proclamar a libertação aos cativos e, aos cegos, a recuperação da vista; a mandar em liberdade os oprimidos, a proclamar um ano favorável da parte do Senhor.

Jesus, intencionalmente, não leu todo esse texto de Isaías. Saltou a parte que dizia: “e a proclamar um ano da vingança”. Quando chegou aí, enrolou o livro, entregou-o ao responsável e sentou-se. Todos os que estavam na sinagoga tinham os olhos fixos nele. Começou, então, a dizer-lhes: Cumpriu-se hoje esta passagem da Escritura, que acabais de ouvir.

Cumpriu-se, de facto, e muito mais do que se pode pensar à primeira vista. Dir-se-ia que Jesus cometeu um crime em relação ao Antigo Testamento. Tocou no que havia de mais sagrado em Israel como se fosse ele a mandar.

Esse era um ano da graça e da vingança de Deus, um ano jubilar. Jesus não estava de acordo e, quando chegou à palavra vingança, não a leu, fechou o livro e entregou-o. Isto era uma revolução: de Deus só pode vir a graça, o amor de pura gratuidade, nunca a vingança.

Segundo S. Lucas, a partir deste seu gesto, os que se pensavam justos viram nele o maior pecador blasfemo. Por isso, o quiseram expulsar da sua própria cidade. Mas Jesus, como portador da pura graça de Deus, abriu a porta a todos os que os outros julgavam condenados. A graça de Deus não é fruto dos nossos méritos, mas da pura generosidade divina.

Jesus não surgiu a distribuir prémios e castigos. Situou-se no meio de todos os considerados pecadores, apontando-lhes o caminho da esperança[3].

S. Mateus é ainda mais explícito. No célebre capítulo 25, identifica Cristo com todos os que sofrem. O bem que fizermos aos mais desprezados e sofredores é a Ele que o fazemos, assim como é a Ele que deixamos de fazer, quando não socorremos os que sofrem. Aliás, esta parábola é uma outra versão da chamada ética samaritana[4].

São parábolas como estas que dizem, para todos os tempos e lugares, a responsabilidade dos cristãos na sociedade e o que todo o mundo poderia esperar. Os cristãos colaboram na construção do Reino de Deus, no reino do ser humano, quando aceitam estes desafios.

3. Comecei por me referi aos muitos sentidos que a palavra imigração evoca. A Rede Mundial Talitha Kum (levanta-te) defronta uma questão ainda mais grave: o Tráfico de Seres Humanos (TSH), a pessoa reduzida a simples mercadoria. De 18 a 24 do passado mês de Maio, realizou a sua 2ª Assembleia Geral, em Sacrofano (Itália, perto de Roma), para elaborar a Declaração de compromissos para os próximos cinco anos, afim de erradicar o TSH, com a participação de 153 delegadas/os, de 71 países de todos os continentes, incluindo Portugal. A missão desta Rede é a de despertar/sensibilizar para a escandalosa escravidão dos nossos dias e sua erradicação.

PS: Durante muito tempo, as mulheres não se atreviam a dizer Nós Somos Igreja, porque excluídas das responsabilidades eclesiais reservadas aos homens. Em 1996, em Portugal, um grupo de mulheres adoptou esse mesmo nome para mobilizar a Igreja, de mulheres e homens, para a urgência em mudar essa situação.

A morte recente de duas das fundadoras do Movimento Nós Somos Igreja – Mariana Mendes Pereira (que muito me ajudou na minha colaboração para o Público e outras publicações) e Maria João Sande Lemos – não deve enfraquecer o Movimento. Estão juntas todas as outras mulheres que procuram uma Igreja de acesso aos ministérios eclesiais.

 

 



[1] Cf. Maria João Valente Rosa, Imigrantes: afinal, de quem falamos?, Público, 28.05.2024

[2] Cf. Reportagem de Mariana Correia Pinto, Público, 11.05.2024

[3] Cf. Lc 4, 14-30

[4] Lc 10, 25-37 a ler

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