DO
CONFLITO À RECONCILIAÇÃO
Frei
Bento Domingues, O.P.
21
Julho 2024
1. O famoso Padre
Felicidade Alves (1925-1998), na apresentação do seu livro, Católicos e Política – de Humberto
Delgado a Marcelo Caetano, de 1969, não se deu por satisfeito com a obra que acabava de apresentar.
Verificava que existia um grande vazio de estudos e de informação para
enfrentar o regime político e bélico em que o país estava mergulhado. Mais
dia menos dia, terá de se fazer a história crítica destes últimos anos da vida
política portuguesa. Não deixará de ter lugar de relevo a presença ou ausência
dos católicos na vida política, assim como a posição negativa ou positiva dos
hierarcas e das estruturas clericais no funcionamento do sistema.
Surgiram, entretanto, os Cadernos GEDOC[1]. Começava, assim, a recolher-se
alguns textos e qualquer destes documentos marcam uma viragem.
O P. Felicidade Alves destaca que, num regime em que a opinião
pública está destruída pela castração dos meios normais de informação,
documentos deste género sofrem as condições precárias da clandestinidade.
Passam de mão em mão, muitos perdem-se irremediavelmente.
Foi encerrado um período e um estilo de «participação» dos
católicos na vida política, que consistia em aparecerem em grupo a tomar
posição como católicos, sobretudo através de documentos e abaixo-assinados.
Desta vez, e espera-se que não se volte atrás, os católicos
entraram na liça, ombro a ombro com os demais cidadãos, sem preocupação do
rótulo de católicos. Não entraram em bloco monolítico. Dispersaram-se e
fragmentaram-se por todos os meridianos políticos, desde a extrema-direita
fascista até à extrema-esquerda revolucionária.
Facto significativo: salientaram-se as posições de radicalismo
socialista com inspiração profética haurida nos fermentos revolucionários do
Antigo e do Novo Testamento[2].
2. A começar pelo grande livro de João Miguel Almeida, A Oposição Católica ao Estado Novo (2008), contamos, hoje, com várias
obras sobre o
catolicismo e a oposição à ditadura e às três frentes da guerra colonial. Este
ano (2024), a Tinta da China publicou um livro de Ana R. Gomes, precisamente com
o título, Padre Felicidade. O oposicionista praticante, pároco de Santa Maria
de Belém entre 1956 e 1968.
1968 representa uma viragem radical no itinerário desta figura central:
apresentou ao seu Conselho Paroquial um documento intitulado Perspectivas
actuais de transformação nas estruturas da Igreja. Sentido da responsabilidade
na vida política do país (19.04.68) – páginas que encerram duras críticas à Igreja Católica
portuguesa e ao Estado Novo.
Esta corajosa tomada de posição não levou o Cardeal Cerejeira a
fazer um exame do que tinha sido, e era, a situação da Igreja e não reviu as
ambíguas relações entre a Igreja e o Estado Novo, de que era o grande
responsável. Nem a carta de D. António Ferreira Gomes, Pró-Memória (Carta a
Salazar), a 13 de Julho de 1958, nem a realização do Vaticano II (1962-1965), foram
capazes de convencer o Cardeal Cerejeira que tinha de mudar. Acerca do Vaticano
II, o Patriarca justificou o seu imobilismo com a declaração delirante de que «nós
já estamos muito à frente do Vaticano II». Não admira, portanto, que a única
resposta às posições do Padre Felicidade Alves foi a suspensão a divinis para o
exercício das funções sacerdotais, a 2 de Novembro de 1968.
Entre 1969 e 1970, Felicidade Alves integra e coordena o
movimento GEDOC (Grupo de Estudos e Intercâmbio de Documentos, Informação e
Experiências), cuja face visível era o projecto editorial designado Cadernos
GEDOC. A publicação assumia como missão ser espaço de partilha de informação e
de debate sobre a Igreja no pós-Vaticano II, produzida por um grupo informal de
crentes que se autointitulava de vanguarda cristã[3].
O que julgo importante sublinhar foi a incapacidade do
Cardeal-Patriarca Cerejeira de entender que as suas posições, tanto em relação
à Igreja como ao Estado Novo, tinham, mais dia menos dia, de chegar ao fim. Não
percebeu os sinais do novo tempo.
3. Apesar das várias tentativas de reconciliação, não seria ainda,
durante o mandato de D. António Ribeiro, que se assistiria a um desfecho do
«caso de Belém». Morre a 24 de Março de 1998, dia que é também o da nomeação de
José Policarpo como Patriarca de Lisboa. Este, passado pouco tempo, a 4 de Abril, escreve
uma carta a José da Felicidade Alves, propondo um encontro para resolver o
debate em curso, disponibilizando-se mesmo a deslocar-se à casa do antigo
sacerdote para o efeito[4].
A 10 de Junho, D. José Policarpo apresentou oficialmente um
pedido de perdão e presidiu ao casamento canónico de Felicidade Alves, poucos
meses antes da sua morte, que ocorreu a 14 de Dezembro desse mesmo ano.
Na homilia, frente a uma assembleia de cerca de três centenas de
pessoas, o Cardeal-Patriarca interpela directamente o nubente, dizendo-lhe:
«Deu-lhe Deus a graça de perdoar as mágoas que sentia. A Igreja também lhe
perdoa as que sentiu a seu respeito. E naquilo que, em algum momento deste
processo, ela possa ter ferido a justiça, também lhe pede perdão». Dias depois,
Felicidade Alves escreve a José Policarpo, agradecendo os especiais cuidados e
empenho pessoal do Patriarca em colocar um ponto final no «caso de Belém» e
classifica a homilia, então proferida, como «sensacional»[5].
Verifiquei, ao longo da vida, que fora do diálogo não há
salvação[6], seja em que domínio for. Notei
que o livro de Ana R. Gomes, de outro modo, confirmava esta convicção. Começa
com o grave conflito e a ruptura entre Felicidade Alves e o Cardeal Cerejeira.
Faltou o diálogo para superar, de forma criativa, esse doloroso conflito.
Ana Gomes termina o seu livro com a reconciliação entre o
Cardeal Patriarca de Lisboa, José Policarpo – que fora seu aluno no Seminário
dos Olivais – e José da Felicidade Alves. Este vê terminado um processo de
revisão do seu processo na Santa Sé e de redução ao estado laical junto do
Vaticano. Rectificação que permitiria a realização do seu casamento pela
Igreja.
Decorridos que eram quase trinta anos sobre o decreto de
suspensão das funções sacerdotais, o decano processo canónico seria revisto e
modificado em poucos meses[7].
De facto, fora do diálogo não há salvação.
[1] Cadernos
GEDOC (Grupos de Estudos e Intercâmbio de Documentação).
[2]
Cf. PEREIRA, Nuno Teotónio, A voz de
um profeta: José da Felicidade Alves, in Viragem: revista do Movimento
Metanoia, nº 30, jan.-mar. 1999, pp. 3-5.
[3] Cf. Ana
R. Gomes, Padre Felicidade, o oposicionista praticante, Tinta da China, 2024,
pp.7-8
[4] Ibidem,
pp. 195-196
[5] Ibidem,
p. 196
[6] Frei
Bento Domingues, O.P., Fora do Diálogo não há Salvação, Temas e Debates,
2024
[7] Cf. Ana
R. Gomes, Padre Felicidade, o oposicionista praticante, Tinta da China,
2024, p.194
Sem comentários:
Enviar um comentário