TEOLOGIA
SEM ARROGÂNCIA
Frei
Bento Domingues, O.P.
30
Junho 2024
1. A prática da Teologia
cristã não é nem devia ser nunca privilégio do clero nem exclusivo dos homens. Hoje,
o pluralismo teológico já se apresenta como um dado adquirido e irreversível.
A própria Comissão Pontifícia Bíblica elaborou um
documento notável – a que já me referi várias vezes – sobre a interpretação da
Bíblia na Igreja e as suas diversas abordagens. Os sofrimentos do Padre Marie
Joseph Lagrange, O.P. (1855-1938) foram, de certo modo, compensados.
É preciso nunca esquecer a recomendação de S. Pedro, dirigida
a todos os cristãos: «Estai sempre prontos a dar razão da vossa Esperança a
todo aquele que vo-la pede; fazei-o, porém, com mansidão e respeito, isto é,
sem arrogância»[1].
É atribuída a Santo Agostinho (354-430)
uma fórmula que coloca a prática teológica onde deve ser colocada, no interior
da fé, na adesão cogitante ao mistério de Deus, mistério do mundo. Não queiras entender a realidade de Deus para crer;
crê para que possas entender. Se não crês, não entenderás. Já o Salmo 39 exprimia este modo teologal de aderir
ao Deus de toda a Luz: é na Tua luz que vemos a luz[2].
Para Santo Anselmo (c.
1033-1109), a fé não paralisa a inteligência, ela é, antes, uma provocação, uma
excitação. A Teologia é a fé que procura entender (Fides quaerens intellectum).
Por outro lado, o
terminal da fé não são os enunciados do Credo, mas a própria realidade de Deus.
Os enunciados do Credo são apenas mediações para esse encontro – existem muitas
outras[3]. Aliás, de Deus tanto mais
sabemos, quanto mais nos apercebermos que excede tudo o que Dele compreendemos.
A linguagem metafórica é a que mais convém usar e as metáforas serão tanto
melhores, quanto maior salto provocarem, quanto maior ruptura exigirem[4].
A Teologia deve tornar
sabidas as coisas que eram apenas acreditadas. Importa mostrar como é que é
verdade aquilo que se confessa ser verdade. Sem isso, a fé é documentada, mas a
cabeça fica vazia[5].
A fé cristã não é visão, mas cogitação, mesmo depois da mais firme aceitação. A
fé cristã não é um calmante, mas um excitante[6].
2. Em Portugal, desde 1910 até 1968, não existiu nenhuma
faculdade de teologia reconhecida pela Igreja católica. O catolicismo português
dispensou a teologia universitária. É estranho, mas foi mesmo assim.
Significaria isto que
não havia prática teológica em Portugal? Não conheço estudos sobre o género de
teologia desenvolvida nos Seminários Maiores do país, embora seja de supor que
passou por diversas fases e que não foi da mesma qualidade em todos eles. Qual
seria, por outro lado, o suporte teológico dos movimentos laicais,
nomeadamente, da Acção Católica? Também esta situação precisa de ser
investigada.
Na primeira parte do
século XX – tirando a importantíssima controvérsia em torno da Voz de Santo
António –, o grande contributo, testemunhado em escritos, da teologia extra-universitária,
foi sobretudo o de Joaquim Alves Correia (1886-1951) [7].
O Anuário Católico
refere 23 Centros/Escolas de formação de agentes de Pastoral. Não conheço
nenhuma avaliação da sua qualidade. O caso do Centro de Cultura Católica do
Porto, o mais antigo, fundado em 1964, é também o mais conhecido. A sua criação
soube beneficiar do ambiente do Vaticano II e teve um grande impacto na
renovação da Igreja diocesana, nas relações entre Igreja, sociedade, movimentos
populares e política nacional. Tinha o seu bispo, D. António Ferreira Gomes, no
exílio.
Além
dos cursos regulares de Teologia e Ciências Religiosas, ficaram célebres os
seus cursos especiais, com temáticas precisas, ligadas à situação de um país em
guerra, assim como os vários ciclos de conferências e colóquios com a
participação de nomes bem conhecidos, alguns deles grandes nomes da
investigação teológica internacional, como E. Schillebeeckx, H. Küng, B.
Häring, J. Daniélou, entre outros. Conheci e participei, nessa fase, em algumas
das suas iniciativas de teologia incarnada nas questões mais acesas do país.
Maria
Julieta Mendes Dias, uma teóloga feminista, fez uma investigação sobre A Teologia Católica em Portugal de 1910 à actualidade, no âmbito da Licenciatura de Ciência
das Religiões, da Universidade Lusófona. Grande parte dessa
investigação refere-se, precisamente, à teologia extra-universitária.
Catarina
Silva Nunes, na sua tese de doutoramento[8],
recolheu e estudou o que personalidades, movimentos e instituições pensavam
sobre os intelectuais católicos portugueses. Os grupos estudados e respectivas
publicações foram: Instituto S. Tomás de
Aquino (ISTA); secção portuguesa do GRAAL;
Centro de Reflexão Cristã (CRC); Movimento Católico de Estudantes (MCE); Metanoia – Movimento Católico de Profissionais.
3. O que verdadeiramente faz falta não é,
apenas, a referência a algumas publicações sobre a teologia portuguesa
extra-universitária. Importante seria estudar os seus documentos. Eu próprio
fiquei espantado com a qualidade teológica dos muitos textos do Boletim do ISET,
da Revista do CRC, sem esquecer o período da Revista e Colóquios Igreja e
Missão dirigidos pelo P. Anselmo Borges.
O
grande marco do catolicismo do século XX foi o Concílio Vaticano II (1962-1965).
D. Manuel de Almeida Trindade (1918-2008) dizia que, em Portugal, não foi preparado,
não foi seguido nem aplicado. Não se pode esquecer, porém, que a Revista
internacional Concilium, na sua primeira fase, foi traduzida e editada
em Portugal, tendo na sua direcção o Frei Mateus Peres, O.P. Ficaram célebres
alguns debates que provocou. Em contraste com a
revista Concilium foi editada a revista internacional Communio
com certa autonomia em cada país.
Sem investigação histórica
não compreenderemos o que aconteceu nem o que está a acontecer. No entanto, para
se manter viva e actuante, a prática teológica tem de procurar o sentido do
que está, hoje, a acontecer na sociedade, nos movimentos espirituais e nas igrejas.
Isto exige um grande espírito de escuta e de acolhimento.
Voltando à Carta de S.
Pedro, todos devemos estar prontos a dar razões da nossa Esperança. Sem arrogância.
[1] 1Pd 3,
15-17
[2] Sl 36, 10
[3] S. Tomás
de Aquino, Suma Teológica, II-II q. 1, a. 2, ad 2º
[4] Ibidem,
I q. 1, a.9
[5] S. Tomás
de Aquino, Quodlibet, IV, q.VIII, a.XVIII
[6] S. Tomás
de Aquino, C. G. III, c.40
[7]
Cf. A Largueza do Reino de Deus,
Lisboa, Livraria Clássica Editora, 1931; De
que Espírito somos, Lisboa, Portugália Editora, 1933; O Cristianismo e a mensagem evangélica, Lisboa, Cosmos, 1941; Cristianismo e Revolução. Selecção de
textos e coordenação de Anselmo Borges, Lisboa, Livraria Sá da Costa, 1977. A
sua Biografia mais completa é de Francisco Lopes, Pe Joaquim Alves Correia – Ao Serviço do
Evangelho e da Democracia, Lisboa, Rei dos Livros, 1996.
[8] Compromissos incontestados. A
auto-representação dos intelectuais católicos portugueses, Lisboa,
Paulinas, 2005.
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