segunda-feira, 12 de agosto de 2024

Férias: trabalho, festa e silêncio Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia 03 Agosto 2024

 

 

Um corpo humano, pelo simples facto de falar, nunca deixará de constituir um enigma e mesmo um milagre pura e simplesmente. Lá está Aristóteles, que viu bem ao definir o ser humano como animal que tem fala (zôon lógon échon), sendo, por isso, animal político (zôon politikón), com a capacidade de distinguir e discutir sobre o justo e o injusto, o conveniente e o inconveniente, o bem e o mal... Ah! Se os políticos soubessem disto e agissem em consequência!...

E as palavras não são arbitrárias. Assim, muitos já estão em férias, outros irão para férias. Ora, cá está: a palavra latina feria, no plural feriae, tinha o sentido de “descanso, repouso, paz, dias de festa”. No século III, a Igreja assumiu os dias da semana como dias de “comemoração festiva”, enumerando-os como feria primaferia secundatertiaquartaquintasexta, ou, invertendo a ordem das palavras: prima feriasecunda feriatertia feriaquarta feriaquinta feriasexta feria.

Daí, ao contrário de outras línguas, como o espanhol, o italiano, o francês, etc., que adoptaram a classificação romana baseada na divinização de um planeta: lunesmarteslundimardi, etc., o português, ao seguir a designação eclesiástica, ter dado origem aos dias da semana como: segunda-feira, terça-feira, quarta-feira, etc. Que feira, enquanto mercado esteja associada a feria, deriva do facto de os comerciantes aproveitarem os dias festivos para vender as suas mercadorias - aliás, isso ainda hoje acontece frequentemente.

De qualquer modo, o importante é sublinhar, até do ponto de vista histórico e etimológico, o carácter festivo associado às férias. Isso é tanto mais significativo, quanto isso mesmo está presente noutras línguas, que seguiram caminhos etimológicos diferentes. Assim, em espanhol, férias diz-se vacaciones e, em francês, vacances. Ora, vacaciones vacances têm o seu étimo no latim vacatio, com o significado de isenção, dispensa de serviço. Os ingleses em férias dizem que estão on holidays, e isso quer dizer: em dias santos. Os alemães, esses têm ferien ou urlaub. Ora, a raiz de urlaub é erlaubnis, com o sentido de dias livres de serviço e trabalho.

É necessário sublinhar que a Bíblia faz questão de dizer que Deus deu um mandamento de um dia feriado semanal santo, sem trabalho, para que o ser humano fizesse a experiência de que não é uma besta de carga, mas um ser festivo. Tem de trabalhar - e duro -, mas não é besta de carga. E Jesus também trabalhou e trabalhou no duro. Quantos padres falam disso? Mas também descansou e tentava levar os discípulos para um lugar recôndito onde pudessem repousar.

Mas, aqui chegados, é preciso reflectir, pois, se pensarmos bem, os dias de descanso semanal e as férias não têm, ou, pelo menos, não deveriam ter, como finalidade única e última ser só um intervalo no trabalho para repor as forças, em ordem a trabalhar outra vez e mais.

As férias e o descanso semanal têm o seu fim em si mesmos: a experiência de que o ser humano é um ser festivo. É preciso ler e escrever poesia, dançar, apanhar sol na praia, no campo, na montanha, ouvir música excelente, que nos remete para origens imemoriais e para a transcendência utópica toda. É preciso reaprender a ver o Sol a nascer no Oriente e a pôr-se no Ocidente (sabia?) e a exaltar-se com a Lua enorme - cheia - ou pequenina que nem um fio, e com o alfobre das estrelas: isso que na cidade se não vê.

É preciso voltar às alegrias simples: contemplar uma simples folha de erva, acolher o perfume de uma rosa sem porquê, como dizia Angelus Silesius, exaltar-se com o mistério de qualquer rosto humano. É preciso ter tempo para ouvir o silêncio: haverá milagre maior do que estarmos cá?

Se se for fora, encontrar-se com culturas outras e diferentes modos de ser ser humano: como americano, como asiático, como africano e, de modo mais concreto, como chinês, como ugandês, como mexicano (nestes tempos de globalização, que Deus nos livre da uniformidade!).

É preciso ter tempo para a família e para os amigos. Para andar solto. Para dialogar com o Infinito. Para contemplar e criar beleza: não é ela que redime o mundo, como disse Dostoiévski?

Ai de quem, concretamente nestes tempos de dispersão, de barulho ensurdecedor e correria sem fim não se sabe muitas vezes para onde, não tenha todos os dias um pouco de tempo para o melhor: estar consigo lá no mais íntimo para se concentrar e conviver com o milagre de viver - sim, viver é um milagre - e encontrar o mistério da Transcendência e Sentido.

Escreve de acordo com a antiga ortografia

 

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