Um corpo
humano, pelo simples facto de falar, nunca deixará de constituir um enigma e
mesmo um milagre pura e simplesmente. Lá está Aristóteles, que viu bem ao
definir o ser humano como animal que tem fala (zôon lógon échon), sendo,
por isso, animal político (zôon politikón), com a capacidade de
distinguir e discutir sobre o justo e o injusto, o conveniente e o
inconveniente, o bem e o mal... Ah! Se os políticos soubessem disto e agissem
em consequência!...
E as
palavras não são arbitrárias. Assim, muitos já estão em férias, outros irão
para férias. Ora, cá está: a palavra latina feria, no plural feriae,
tinha o sentido de “descanso, repouso, paz, dias de festa”. No século III, a
Igreja assumiu os dias da semana como dias de “comemoração festiva”,
enumerando-os como feria prima, feria secunda, tertia, quarta, quinta, sexta,
ou, invertendo a ordem das palavras: prima feria, secunda
feria, tertia feria, quarta feria, quinta
feria, sexta feria.
Daí, ao
contrário de outras línguas, como o espanhol, o italiano, o francês, etc., que
adoptaram a classificação romana baseada na divinização de um planeta: lunes, martes, lundi, mardi,
etc., o português, ao seguir a designação eclesiástica, ter dado origem aos
dias da semana como: segunda-feira, terça-feira, quarta-feira, etc. Que feira,
enquanto mercado esteja associada a feria, deriva do facto de os
comerciantes aproveitarem os dias festivos para vender as suas mercadorias -
aliás, isso ainda hoje acontece frequentemente.
De qualquer
modo, o importante é sublinhar, até do ponto de vista histórico e etimológico,
o carácter festivo associado às férias. Isso é tanto mais significativo, quanto
isso mesmo está presente noutras línguas, que seguiram caminhos etimológicos
diferentes. Assim, em espanhol, férias diz-se vacaciones e, em
francês, vacances. Ora, vacaciones e vacances têm
o seu étimo no latim vacatio, com o significado de isenção,
dispensa de serviço. Os ingleses em férias dizem que estão on holidays,
e isso quer dizer: em dias santos. Os alemães, esses têm ferien ou urlaub.
Ora, a raiz de urlaub é erlaubnis, com o sentido de
dias livres de serviço e trabalho.
É necessário
sublinhar que a Bíblia faz questão de dizer que Deus deu um
mandamento de um dia feriado semanal santo, sem trabalho, para que o ser humano
fizesse a experiência de que não é uma besta de carga, mas um ser festivo. Tem
de trabalhar - e duro -, mas não é besta de carga. E Jesus também trabalhou e
trabalhou no duro. Quantos padres falam disso? Mas também descansou e tentava
levar os discípulos para um lugar recôndito onde pudessem repousar.
Mas, aqui
chegados, é preciso reflectir, pois, se pensarmos bem, os dias de descanso
semanal e as férias não têm, ou, pelo menos, não deveriam ter, como finalidade
única e última ser só um intervalo no trabalho para repor as forças, em ordem a
trabalhar outra vez e mais.
As férias e
o descanso semanal têm o seu fim em si mesmos: a experiência de que o ser
humano é um ser festivo. É preciso ler e escrever poesia, dançar, apanhar sol
na praia, no campo, na montanha, ouvir música excelente, que nos remete para
origens imemoriais e para a transcendência utópica toda. É preciso reaprender a
ver o Sol a nascer no Oriente e a pôr-se no Ocidente (sabia?) e a exaltar-se
com a Lua enorme - cheia - ou pequenina que nem um fio, e com o alfobre das
estrelas: isso que na cidade se não vê.
É preciso
voltar às alegrias simples: contemplar uma simples folha de erva, acolher o
perfume de uma rosa sem porquê, como dizia Angelus Silesius, exaltar-se com o
mistério de qualquer rosto humano. É preciso ter tempo para ouvir o silêncio:
haverá milagre maior do que estarmos cá?
Se se for
fora, encontrar-se com culturas outras e diferentes modos de ser ser humano:
como americano, como asiático, como africano e, de modo mais concreto, como
chinês, como ugandês, como mexicano (nestes tempos de globalização, que Deus
nos livre da uniformidade!).
É preciso
ter tempo para a família e para os amigos. Para andar solto. Para dialogar com
o Infinito. Para contemplar e criar beleza: não é ela que redime o mundo, como
disse Dostoiévski?
Ai de quem,
concretamente nestes tempos de dispersão, de barulho ensurdecedor e correria
sem fim não se sabe muitas vezes para onde, não tenha todos os dias um pouco de
tempo para o melhor: estar consigo lá no mais íntimo para se concentrar e
conviver com o milagre de viver - sim, viver é um milagre - e encontrar o
mistério da Transcendência e Sentido.
Escreve
de acordo com a antiga ortografia
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