O Homem: questão para si mesmo.
1. O
cérebro e o espírito
Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
10 Agosto 2024
Já no
livro Francisco. Desafios à Igreja e ao Mundo escrevi longas
páginas reflectindo sobre o tema, concretamente sobre as questões do
“Transhumanismo e pós-humanismo”, onde também citava Raymond Kurzweil para quem
não se trataria apenas de “transhumanismo”, melhorando o Homem, enxertando-lhe
componentes electrónicas: “O fim último é ser capaz de descarregar uma
consciência humana num material informático. A Humanidade acederá assim à
imortalidade.”
Volto à
questão do Homem, que se torna cada vez mais actual com os avanços da
Inteligência Artificial (IA), cujos benefícios serão cada vez mais inegáveis,
concretamente nos domínios da saúde, mas que vai pôr dilemas éticos, já que
haverá perigos gigantescos, como preveniu o Papa Francisco na recente Cimeira
do G7 na Itália, apelando, por exemplo, à proibição da entrada em cenário de
guerra de armas automáticas letais, sistemas que usam IA. No limite, a pergunta
é: iremos ser substituídos por máquinas? O que é o Homem?
O enigma
parece ser não tanto o espírito, mas a matéria. Embora o espírito seja
enigmático na sua relação com a matéria - como é que, estando na raiz o
espírito, há matéria? -, parece menos compreensível como é que da matéria
resulta o espírito, como é que a matéria se abre em espírito. O dualismo
antropológico é cada vez mais inadmissível; mas como entender a emergência do
espírito a partir da matéria?
Não têm
faltado afirmações reducionistas do Homem. “O Homem não passa de um objecto
material e tem apenas propriedades físicas” (D. M. Armstrong, 1968). “Toda a
conduta humana terá, um dia, uma explicação mecânica” (D. Mackay, 1980). “As
máquinas inteligentes tomarão pouco a pouco o controlo de tudo, acabando por
apoderar-se do mundo da política... Pensar é simplesmente um processo
físico-químico (L. Ruiz de Gopegui, 1983). “O espírito é uma máquina” (M.
Minsky, 1987).
Hoje, com as
novas técnicas da tomografia de emissão de positrões e da ressonância magnética
nuclear funcional, consegue-se visualizar imagens das regiões do cérebro que
entram em acção aquando das diferentes operações mentais. Assim, António
Damásio escreveu que, embora avesso a previsões - aliás, com o tempo, parece-me
cada vez mais prudente em relação à explicação científica da consciência -, lhe
parece seguro poder afirmar que, até 2050, a acumulação do saber sobre os
fenómenos biológicos em conexão com a mente consciente fará com que
“desapareçam as tradicionais separações de corpo e alma, cérebro e espírito.”
Talvez haja
quem receie que, mediante a compreensão da sua estrutura material, algo tão
precioso e digno como o espírito humano se degrade ou desapareça. Mas António
Damásio previne que “a explicação das origens e do funcionamento do espírito
não acabará com ele.” O nosso assombro estender-se-á até essas incríveis
microestruturas do organismo e às suas funções que permitem o aparecimento do
espírito e da autoconsciência - não se esqueça de que o cérebro com os seus cem
mil milhões de neurónios e um número incalculável de sinapses é a estrutura
biológica mais complexa que conhecemos. O espírito sobreviverá à sua explicação
biológico-neuronal, como a rosa continua a enfeitiçar-nos com o seu perfume,
depois de analisada a sua estrutura molecular.
A questão da
consciência continuará a fascinar-nos, apesar de todos os avanços da
neurobiologia. A razão está em que o corpo e o cérebro são objectivamente
acessíveis. A consciência, porém, é íntima e ineliminavelmente subjectiva: é
sempre cada um, cada uma, a viver-se a si mesmo, a si mesma, subjectivamente,
de modo único e intransferível, sendo dada, portanto, na experiência pessoal.
Demos um
exemplo, apesar de tudo, menos exigente: um neurocientista que tivesse todos os
conhecimentos sobre os mecanismos com que o cérebro processa a impressão da cor
azul, sem a sua vivência real consciente, não saberia o que é o azul.
O problema
permanecerá: como é que processos eléctricos e físico-químicos originam a
experiência subjectiva. Há uma correlação entre o cérebro e a consciência, mas
como é que a experiência de si na primeira pessoa surge de processos e factos
da ordem da terceira pessoa?
Mediante as
novas técnicas, percepcionamos a base neurobiológica do pensamento. Significa
isso que temos, desse modo, acesso ao conteúdo do pensamento?
Reflectindo
sobre esta problemática, o número de Julho-Agosto de Philosophie
Magazine pergunta: “Observamos no cérebro correntes eléctricas,
fenómenos de activação, mas algum dia veremos nele o próprio pensamento?” Onde
está a liberdade, no cérebro? Onde estão a autoconsciência e o eu, no cérebro?
Como
sublinhou o célebre historiador Jean Delumeau, há realmente hoje correntes
reducionistas, no sentido neuronal ou como se o Homem não passasse de um “mosaico
de genes”. Mas não se esquece então que é o Homem que faz a ciência e lhe dá
sentido?
“Se o
Universo é o fruto do acaso, se o Homem não foi querido por um Ser que
transcende a História, se a nossa liberdade é ilusória, nada tem sentido e,
segundo a fórmula trágica de Léon-Paul Fargue, ‘a vida é o cabaret do
nada’.” E continua: se, como pergunta Jean-François Lambert, o Homem é da mesma
natureza que os outros seres, donde lhe vem o seu valor e dignidade? Onde se
fundamentam os Direitos Humanos? Se se não é bom ou mau, “mas apenas bem ou mal
programado”, ainda se poderá falar de liberdade e responsabilidade?
Escreve de acordo com a antiga ortografia.
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