Do Pão da Palavra ao Pão Eucarístico
Ano B – Tempo Comum – 20º domingo
João 6,51-58: “O pão que eu hei de dar é minha carne”
Hoje
ouvimos a parte final do discurso de Jesus sobre o pão, após a
multiplicação dos pães. Na primeira parte do discurso, Jesus
apresentou-se como Pão/Palavra que desceu do céu, provocando a
murmuração dos "judeus", que acreditavam, ao contrário, que era a
Torá/Lei a Palavra que havia descido do céu. Nesta segunda parte, Jesus dá um passo adiante, afirmando que não é apenas a sua Palavra que é pão, mas a sua própria pessoa: "O pão que eu hei de dar é minha carne". Algo inimaginável! Por isso "os judeus discutiam entre si: Como pode ele dar-nos a sua carne a comer?". Jesus passa da figura do maná para o cordeiro pascal!
O discurso de Jesus torna-se realmente duro e escandaloso para
os "corações incircuncisos" (Jeremias 9,26). Longe de abrandar o tom e
de suavizar a linguagem, parece que Jesus os exacerba. Como moldura
desta seção do discurso, encontramos, no início (v.51) e no final
(v.58), a afirmação de Jesus: "Quem comer deste pão viverá eternamente".
E por quatro vezes, de forma positiva e negativa, ele reitera a
necessidade de comer sua carne e beber seu sangue para ter vida: "Quem
come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna" / "Se não
comerdes a carne do Filho do homem e não beberdes o seu sangue, não
tereis a vida em vós".
Jesus,
neste ponto, fala de uma maneira muito física e crua para não deixar
espaço para uma interpretação simbólica ou parabólica. Observemos a
insistência quase teimosa no concreto das palavras usadas:
pão/comida/bebida: 7 vezes; comer/beber: 11 vezes; carne/sangue: 10
vezes; vida/viver/ressuscitar: 10 vezes. O Pão da Palavra agora torna-se o Pão da Eucaristia, ou seja, o corpo e o sangue de Jesus, a sua humanidade.
Enquanto
Jesus falava do Pão/Palavra, era possível dar uma interpretação
simbólica, como a Sabedoria de que se fala na primeira leitura
(Provérbios 9,1-6). Aqui, porém, não se trata apenas de uma nova
doutrina ou sabedoria: "O pão que eu hei de dar é minha carne, que eu darei pela vida do mundo". E
isso desconcerta seus ouvintes. Ao acrescentar "beber o sangue", o
escândalo é total, pois isso era algo proibido, um pecado punível com a
morte (veja Levítico 17). Naturalmente, os seus ouvintes não podiam entender esse discurso, mas os leitores cristãos de São João podiam entendê-lo muito bem. É
a eles que o evangelista se dirige. Este texto, de fato, é uma
catequese sobre a Eucaristia, talvez introduzida no quarto evangelho num
segundo momento. E havia razões para insistir na dimensão concreta do
corpo, carne e sangue, porque no final do primeiro século havia
correntes gnósticas que desprezavam o corpo e a matéria, correndo o
risco de esvaziar e negar a encarnação. É por isso que São João se
preocupa em insistir que o Verbo se fez carne.
Pontos de reflexão
1. Eucaristia, símbolo ou realidade? O
evangelho de hoje convida-nos a refletir sobre a Eucaristia. O risco de
uma interpretação puramente simbólica dos elementos eucarísticos do
pão/carne e do vinho/sangue é sempre atual. Deixando de lado o fato de
que várias igrejas protestantes veem a Eucaristia como um ato simbólico,
não se pode dizer que todos os católicos acreditam na presença real de
Cristo nas espécies eucarísticas. Segundo uma pesquisa do Pew Research
Center de 2019, cerca de 69% dos católicos americanos acreditam que o
pão e o vinho são símbolos, enquanto apenas 31% acreditam na presença
real. Portanto, a maioria está em nítido contraste com a fé da Igreja. É
de se esperar que a fé e a consciência de comungar o corpo e sangue de
Cristo sejam comuns entre aqueles que participam regularmente da Santa
Missa. No entanto, segundo o conselho de São Paulo, "Cada um examine a si mesmo e depois coma do pão e beba do cálice" (1Coríntios
11,28-29). Cada um de nós olhe para aquele Pão depositado em nossas
mãos e renove sua profissão de fé e amor: "Meu Senhor e meu Deus!".
Existe o perigo, de fato, de receber a comunhão por automatismo e com
certa indiferença, sem o ímpeto de amor e gratidão.
2. Diálogo entre vida e mesa eucarística. "Nossa
vida deve dialogar com esta mesa" (Card. Tolentino). Se a minha vida
não se sente interpelada pela Eucaristia, algo está errado. A Eucaristia
oferece-nos uma visão diferente da vida e propõe uma maneira diferente
de enfrentar a existência. A Eucaristia é um programa de vida. Em
particular, devemos perguntar-nos se a nossa mesa doméstica está em
sintonia com a mesa eucarística, como lugar de comunhão, diálogo,
acolhimento, solidariedade...
3. O Pão da Eucaristia como caminho. Falamos
frequentemente do Pão eucarístico como alimento que nos sustenta no
nosso caminho de peregrinos. Seria oportuno vê-lo também como o próprio
Caminho que nos leva ao Banquete escatológico do encontro alegre e
fraterno de toda a humanidade, objeto de nossa esperança. Isso implica
que os nossos caminhos cotidianos não sejam dispersivos, de afastamento
ou de desvio, mas nos conduzam à Eucaristia dominical. Uma vida cristã
sem a bússola da Eucaristia facilmente se torna um vagar em círculos e, a
longo prazo, pode resultar num labirinto!
P. Manuel João Pereira Correia, mccj
Verona, 14 de agosto de 2024
P. Manuel João Pereira Correia mccj
p.mjoao@gmail.com
https://comboni2000.org
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