O Homem: questão para si mesmo.
2. O que sou? Quem sou?
Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
17 Agosto 2024
O que é o Homem?
Ao longo dos séculos, foram-se sucedendo, numa lista quase interminável, as tentativas de
resposta: animal que fala, animal político (Aristóteles); animal racional (os estóicos e a
Escolástica); realidade sagrada (Séneca); um ser que pensa (Descartes); uma cana pensante
(Pascal); um ser que trabalha (Marx); um animal capaz de prometer (Nietz- sche); um ser que
cria (Bergson); um animal que ri, um animal que chora, um animal que sepulta os mortos...
Saído da gigantesca aventura cósmica com uns 14 000 milhões de anos, o Homem tem, segundo
Edgar Morin, “a singularidade de ser cerebralmente sapiens-demens” (sapiente-demente), ter,
portanto, com ele “ao mesmo tempo a racionalidade, o delírio, a hybris (a desmesura), a
destrutividade”.
Também o filósofo André Comte-Sponville apresentou a sua “definição”, que julga suficiente: “É
um ser humano qualquer ser nascido de dois seres humanos.” Mas será mesmo suficiente? O
que dizer em relação aos primeiros seres humanos que, na história da evolução, não nasceram
de outros humanos? Esta é uma questão assombrosa: sim, quem foram os primeiros e como é
que foram tomando consciência de si? Nunca se saberá quem foi o primeiro que disse “eu”. E se
amanhã se der a clonagem e a partenogénese?
Os grandes espíritos - Diderot, por exemplo - deram-se conta de que o que somos não pode ser
encerrado numa definição. O Homem é o ser que leva consigo a questão do ser e do seu ser e
que originária e constitutivamente pergunta: o que é o Homem? O que, antes de mais, une a
Humanidade toda é precisamente esta pergunta: o que é o Homem, o que é ser ser humano?
Se o chimpanzé, por exemplo, também sente, recorda, procura, espera, joga, comunica, aprende
e inventa, o que é que nos distingue? Parece estender-se cada vez mais a tentação de pensar
que o Homem é um animal entre outros. Se diferença houvesse, não seria essencial e
qualitativa, mas apenas de grau. Mas quem anda atento reconhecerá com certeza que a
diferença entre o Homem e os outros animais não é apenas de grau, mas essencial e qualitativa.
Pelo menos, é preciso manter a pergunta.
Também o Homem é corpo, mas um corpo que fala e que diz eu. Ora, um corpo que produz sons
duplamente articulados, portanto, transportando sentido, é um corpo que transcende a
animalidade.O Homem é capaz de renunciar à satisfação imediata dos seus impulsos: é “o asceta da vida”,
escreveu Max Scheler. Por isso, é capaz de jejuar e ergueu, por exemplo, um edifício jurídico-
penal, para evitar a vingança cega, dirimir diferendos, não fazer Justiça pelas próprias mãos.
Quando vemos um animal sentado, de olhos fechados, com a cabeça entre as mãos, estamos em
presença de um Homem que pensa e medita. Está ensimesmado, entrou dentro de si próprio,
desceu à sua intimidade, submerso na sua subjectividade pessoal.
Afinal, há muito de idêntico em nós e no chimpanzé, “no mono e no Papa”, disse ironicamente o
filósofo confessadamente ateu Michel Onfray. O professor de filosofia e o chimpanzé têm
necessidades naturais comuns: comer, beber, dormir. A etologia mostra que há comportamentos
naturais comuns aos animais e aos humanos. Veja-se, por exemplo, as relações de violência e de
agressão e compare-se inclusivamente os rituais de cortejamento sexual. Mas é interessante
constatar que já na resposta às necessidades naturais há uma diferença: os homens inventaram
a cozinha e a gastronomia e também o erotismo.
M. Onfray acrescenta: “O Homem e o animal separam-se radicalmente quando se trata de
necessidades espirituais, as únicas que são próprias dos homens e das quais não se encontra
nenhum vestígio - mínimo que seja - nos animais.” Há nos humanos uma série de actividades
especificamente intelectuais, que os distinguem radicalmente dos monos: nestes, não
encontramos filosofia, nem religião, nem arte...
A tentativa de compreendê-lo no quadro de um materialismo mecanicista ou do biologismo não
dá conta do Homem. De facto, o animal é conduzido, em última análise, pelo instinto. Por isso,
esfomeado, não se conterá perante a comida apropriada que lhe apareça. Face à fêmea no
período do cio, não resistirá. O Homem, pelo contrário, é capaz de transcender a dinâmica
biológica. Por motivos de ascese ou religiosos ou até pura e simplesmente para mostrar a si
próprio que se não deixa arrastar pelo impulso, é capaz de conter-se, resistir, dizer não. Foi neste
sentido que, repito, Max Scheler, um dos fundadores da Antropologia Filosófica, escreveu que o
Homem é “o asceta da vida”, o único animal capaz de dizer não aos impulsos instintivos.
Esta é a base biológica da conduta moral, uma característica essencialmente específica humana.
Uma vez que o Homem é capaz de ponderar, renunciar, abster-se, optar, dizer sim, dizer não aos
impulsos, é livre e, por conseguinte, animal moral.
O Homem é corpo, mas um corpo que fala. Porque fala, é capaz de debater questões como a da
diferença com os outros animais, defender pontos de vista, distinguir o bem e o mal, tomar
posições sobre valores morais, políticos, religiosos, estéticos, filosóficos.
Então, o enigma é este: provimos da natureza, mas contrapomo-nos a ela, somos
simultaneamente da natureza, na natureza e fora dela. Monos e humanos têm a mesma origem,
mas os humanos têm originalidades únicas e irredutíveis.
O Homem é o ser da pergunta e a pergunta por si mesmo caracteriza-o: O que é o Homem? O
que sou? Quem sou?
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