CONVIDADOS PARA JANTAR, PROIBIDOS DE COMER
(3)
Frei Bento Domingues, O. P.
1. Um leitor destas crónicas lamenta a minha perda de tempo com assuntos de
moral familiar e, em particular, com a discutida participação dos católicos
divorciados recasados na comunhão eucarística. As próprias espectativas de
mudança, no próximo Sínodo dos Bispos, são o resultado da preguiça católica em
pensar pela própria cabeça. Andar a pedir ordens ao clero é infantilismo
cultivado. Cada católico deve ser tutor de si próprio. Eu deveria limitar-me a
recordar a célebre resposta de I. Kant (de 1784) à pergunta: o que é o iluminismo?
A resposta é
conhecida: “O iluminismo é a saída do homem da sua menoridade de que ele é
culpado. A menoridade é a incapacidade de se servir do entendimento sem a
orientação de outrem. Tal menoridade é por
culpa própria, se a sua causa não reside na falta de entendimento, mas na
falta de decisão e de coragem em se servir de si mesmo sem a orientação de outrem.
Sapere aude[i]!
Tem a coragem de te servires do teu próprio entendimento. Eis a palavra de
ordem do iluminismo”.
Recordou-me
ainda que o Vaticano II (1962-1965) foi o começo de uma clara escuta de alguns
ecos da modernidade, há muito esquecidos: a consciência como primeira instância
moral (GS 16); a declaração sobre a liberdade religiosa (Dignitatis Humanae), destacando que a própria objectividade da verdade moral “não se impõe de outro modo
senão pela sua própria força, que penetra
nos espíritos de modo ao mesmo tempo suave e forte” (n.1).
Inteiramente de
acordo, mas vamos por partes. Kant tem razão: a recusa preguiçosa de cada
pessoa se servir do próprio entendimento e andar sempre a recorrer a um “director
de consciência” é um exercício de infantilismo e, por outro lado, uma atitude
obscurantista de quem alimenta essa dependência. No entanto, seria igualmente infantil
não alimentar o próprio entendimento com as investigações dos outros. O culto
da auto-ignorância para ser dono das suas decisões éticas, é uma parvoíce.
Somos seres de relação em todas as dimensões. Não somos apenas responsáveis
diante da nossa consciência, mas também pela consciência que podemos ter do
nosso mundo e do mundo dos outros.
2. Louis Dingemans (1922-2004), sociólogo e teólogo, era um dominicano
belga que aprofundou, com um grupo de trabalho interdisciplinar, a situação
eclesial dos divorciados recasados[ii].
Para a validade
de uma celebração católica do casamento sempre foi exigido o consentimento
livre dos esposos e, como dizia Kierkegaard, o amor nunca é tão grande como
quando se assume como um dever recíproco. A multiplicidade de uniões infelizes
e divórcios, a fragilidade dos amores humanos ainda não conseguiram estancar o
sonho e o desejo de muitas pessoas se aliarem para construírem uma história
comum, que não esteja dependente dos humores de cada dia. Encontram-se até pessoas
“pouco praticantes” que pedem para se casar pela Igreja e não é apenas pelas
fotografias. Como diz L. Dingemans, parece que têm uma vaga percepção de que o
casamento, sendo uma loucura, precisa do Deus do Evangelho, protector dos loucos,
sentindo que todo o verdadeiro amor é de origem divina.
Muito ou pouco
praticantes, por culpa ou sem culpa de um ou de ambos, o facto é que existem
rupturas sem remédio. Surgem, depois, novas uniões. Pondo de lado a leviandade
e os caprichos de muitos casos, também existem divorciados recasados que nesses
processos complicados aprofundaram e redescobriram a sua fé, que desejam
alimentar.
Como já vimos
em artigos anteriores, não são católicos excomungados. Pelo contrário, são
convidados a participar na vida da Igreja e a frequentarem a Eucaristia. Mas
são proibidos de comungar: convidados para uma refeição e impedidos de comer. À
primeira não se entende esta incongruência e à segunda, ainda menos. Invoca-se
um estado permanente de violação da aliança matrimonial. Razão apresentada:
existe uma contradição objectiva de ordem simbólica, pois a aliança entre Deus
e a Humanidade, entre Cristo e a sua Igreja é actualizada pelo laço entre
marido e mulher. O autor citado mostra, de forma analítica, que este é um
argumento falacioso. Deus é sempre fiel, mas os seres humanos não são Deus.
Podem falhar e a misericórdia de Deus nunca falha.
3. É bom não esquecer uma oração da
missa do Domingo passado: Senhor, que
dais a maior prova do vosso poder quando perdoais e vos compadeceis, derramai
sobre nós a vossa graça.
O Papa
Francisco, que tem muita graça em receber a graça de Deus, resolveu, na
audiência geral do passado dia 10, propor que a Igreja, em todas as suas
expressões, seja uma escola da
misericórdia. Não estávamos habituados. Era mais associada a um ministério
com tribunais lentos e sem piedade.
05.10.2014
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