1. Quem se sentir
desafiado por Jesus Cristo não deve ignorar que, para além da sua experiência
vital e do conhecimento afectivo, tem de recorrer também aos estudos que ajudam
a ler os escritos do Novo Testamento (NT) e os ziguezagues da sua influência,
ao longo dos séculos. A não ser que se aposte na preguiça piedosa: quanta mais
ignorância, mais devoção.
Os resultados da investigação histórica e os frutos da hermenêutica
das configurações simbólicas, legadas pelas primeiras gerações cristãs, não
devem servir apenas para compor as estantes das bibliotecas das faculdades de
teologia.
O seu estudo livre e rigoroso será sempre o
melhor remédio contra a manipulação de algumas censuras eclesiásticas, feita em
nome da salvaguarda da fé. Só é possível acreditar, de modo decente,
interpretando e dialogando com outras interpretações. Como já disse nestas
crónicas, a defesa da tradição cristã não se faz com os métodos das indústrias
de conserva. É vitalizada no confronto e no diálogo com os desafios de cada
época, na diversidade dos povos, a partir dos guetos sociais e culturais
criados pelos interesses financeiros e económicos da nova desordem do mundo.
Segundo o exegeta Xabier
Pikaza, neste momento, a preocupação desses estudos deslocou-se
da problemática do Jesus da história e do
Cristo da fé para a investigação das origens do cristianismo: como surgiu a
Igreja e qual o seu sentido? Não está centrada apenas no Nazareno, ocupa-se
cuidadosamente dos seus primeiros seguidores. Aqueles que nos deram a conhecer o
Mestre também precisam de ser conhecidos.
S. Lucas escreveu a sua obra entre os anos 90 e 100 d.C.. De
origem pagã, mas talvez prosélito judeu, conhecia a Bíblia Grega, a dos LXX. Foi
o primeiro autor cristão a apresentar a história de Jesus e do seu movimento,
segundo os modelos judeu e helenista
[1], sendo, também, o primeiro
a interessar-se pela identidade social da Igreja e pelo lugar que ela ocupa na
história, como movimento messiânico. Não tenta mostrar, em primeiro lugar, como
é que as coisas se passaram. Interessa-lhe fazer entender a perspectiva da
missão de Paulo que desembocou em Roma, capital do Império.
Sobre este fundo,
destaca os dois polos da sua obra, o judaico e o helenista ou romano. O judaico
mantem-se como raíz, pois constitui a origem e o destino israelita de Jesus e o
princípio da Igreja em Jerusalém
[2]
O polo romano constitui o enquadramento final e definitivo
da Igreja que chegou a Roma e onde Paulo estava preso, mas anunciava
abertamente o Evangelho. Esta perspectiva é muito sugestiva, mas exclui as
Igrejas da Síria e da Ásia Menor
[3].
No desenho deste cenário, Lucas idealiza e destaca as origens da Igreja
em torno de Pedro e dos Doze, quando de facto, como se sabe desde o princípio,
a origem real das igrejas ou comunidades foi muito mais ampla e plural.
Se as outras
grandes “testemunhas” do NT (Marcos e Mateus, Paulo e João…) não precisaram de
escrever uma história da Igreja foi porque, do seu ponto de vista, ela já estava
incluída nas narrativas dos seus Evangelhos.
2. Xabier
Pikaza chama a atenção para uma obra original de “desconstrução” do segundo
livro de Lucas, os Actos dos Apóstolos (Act), feita por um destacado investigador
espanhol[4] que se tornou uma autoridade
na interpretação das origens cristãs.
Esta desconstrução pôs em causa a visão mais clara do
nascimento e expansão da Igreja que tínhamos. Começa-se a saber, agora, que essa
obra não conta a história da Igreja primitiva. É uma interpretação muito particular. Lucas construiu uma tese. Desconstruindo essa interpretação, recuperam-se possíveis materiais
mais antigos e valorizam-se outras fontes do NT (Paulo, tradição evangélica,
etc.). Talvez se torne possível reconstruir melhor a história das igrejas do princípio
e de forma mais ampla.
Neste livro, há personagens importantes que
dominam, por algum tempo, a trama deste “romance” (os Doze e Pedro, os
helenistas e Estêvão, Filipe, Tiago…), mas acabam todos por ficar em segundo
plano. Actuam por um momento e, cumprida a sua missão, desaparecem. Quem
garante a unidade e a continuidade da Igreja é a acção do Espírito Santo que a vai
conduzindo de Jerusalém a Roma. O grande protagonista desta obra é o Espírito
Santo.
3. Cumpriu-se a
promessa:
Recebereis a Força do Espírito Santo, que virá sobre vós. Sereis, então,
minhas testemunhas em Jerusalém, em toda a Judeia e Samaria e até aos confins
da terra. Dito isto, elevou-se à vista deles e uma nuvem o ocultou aos seus
olhos[5].
Cumpriu-se a
promessa, em parte. A promessa não era colocar os discípulos pasmados a olhar
para o céu: Jesus agora está com o Deus que está com todos em todo o mundo. Não
adianta ir procurá-lo à Terra Santa, terra
da violência sacralizada.
O segredo da
simbólica da Ascensão é o Pentecostes, uma Igreja de saída que o Papa Francisco
veio acordar. Convite para o próximo Domingo.
17.05.2014
[4] Senén Vidal, Hechos
de los apóstoles y orígenes cristianos, Sal Terrae, Santander 2015.