1. Será verdade
que, no Ocidente, as religiões com os seus dogmas, catecismos, normas morais, esgotaram
o prestígio que lhes atribuíram ao longo dos séculos? Ou será apenas a
violência, em nome de Deus, que as desacreditou? Seja como for, a religião
ganhou às religiões, a religiosidade ganhou à religião, a espiritualidade
parece ganhar à religiosidade. O mercado das espiritualidades ganhou ao das
religiões a la carte. As
espiritualidades e sabedorias do Oriente tiveram um acolhimento inesperado no
Ocidente. Mesmo no campo católico, repete-se que o século XXI ou se torna místico ou está perdido.
Quem anuncia um curso de teologia não pode esperar grande
adesão, mas se propõe um curso sobre uma espiritualidade desconhecida, e quanto
mais desconhecida melhor, terá aos seus pés um mundo de curiosos de todas as
novidades esotéricas.
Existem sabedorias e espiritualidades que não estão ligadas
a nenhuma confissão religiosa, mas constituem campos de busca de sentido
existencial.
Este Papa encerrou uma época, muito recente, confiada aos Prefeitos
da Congregação para a Doutrina da Fé, perfeitos em silenciar a liberdade no
seio da Igreja.
Ele próprio não tem boas recordações da teologia que teve de
frequentar como estudante, uma teologia de manuais, onde estavam previstas e
congeladas as teses, as perguntas e as respostas. Desde a Alegria do Evangelho que sonha com «Faculdades de Teologia onde se viva a convivialidade das
diferenças, onde se pratique uma teologia do diálogo e do acolhimento; onde se
experimente o modelo do poliedro do saber teológico, em vez de uma esfera
estática e desencarnada. Onde a investigação teológica seja capaz de se
comprometer com um cativante processo de inculturação».
Está
convencido que tanto «os bons teólogos, como os bons pastores, têm o cheiro do
povo e da estrada e, com a sua reflexão, derramam óleo e vinho sobre as feridas
dos homens». Para ele, a teologia deve ser «a expressão de uma Igreja que é um
“hospital de campanha”, que vive a sua missão de salvação e de cura no mundo! A
misericórdia não é só uma atitude pastoral, é a própria substância do Evangelho
de Jesus».
2. O Papa Francisco incita os
professores de teologia a que a centralidade da misericórdia se exprima nas
várias disciplinas: na dogmática, na moral, na espiritualidade, no direito e
assim por diante. «Sem misericórdia, a nossa teologia, o nosso direito, a nossa
pastoral, correm o risco de se afundarem na mesquinhez burocrática ou na
ideologia que, por natureza, quer domesticar o mistério».
Defende
uma teologia do acolhimento que desenvolva «um diálogo sincero com as
instituições sociais e civis, com os centros universitários e de investigação,
com os líderes religiosos e com todas as mulheres e homens de boa vontade». A
construção na paz de uma sociedade inclusiva e fraterna, assim como a protecção
da criação, exige a colaboração de todos.
Está
convencido de que este modo de proceder dialógico é a via para chegar até onde
se formam os paradigmas, os modos de sentir, os símbolos, as representações das
pessoas e dos povos. Importa «chegar até esse ponto – como “etnógrafos
espirituais” da alma do povo, digamos assim – para poder dialogar em
profundidade e, se possível, contribuir para o seu desenvolvimento». É fruto do
anúncio do Evangelho do Reino de Deus o amadurecimento de uma fraternidade cada
vez mais dilatada e inclusiva.
Nada
disto é possível sem liberdade teológica.
«Sem a possibilidade de experimentar estradas novas, não se cria nada de novo,
e não se dá espaço à novidade do Espírito do Ressuscitado». A quem sonha com
uma doutrina monolítica a ser defendida por todos, sem nuances, isto não lhe sabe bem. No entanto, é «essa variedade que
ajuda a manifestar e a desenvolver melhor os diversos aspectos da riqueza
inesgotável do Evangelho[1]». Para
conseguir este objectivo, é preciso uma revisão adequada da ratio studiorum.
Sobre
a liberdade de reflexão, o Papa observa: entre os estudiosos, é preciso avançar
com liberdade; depois, em última instância, será o magistério a dizer alguma coisa, mas não se pode fazer uma teologia sem esta liberdade. Na pregação ao
Povo de Deus, porém, não se deve ferir a sua fé com questões disputadas. Estas que fiquem entre os teólogos. É a sua
tarefa. Ao Povo de Deus é preciso dar a substância que alimente a fé e que não
a relativize.
O
Papa não está a embarcar numa onda de espiritualismo fácil. Sublinha, pelo
contrário, que o “discernimento espiritual” não exclui os contributos de
sabedorias humanas, existenciais, psicológicas, sociológicas ou morais, mas
transcende-as. «Nem sequer bastam as normas sábias da Igreja. Lembremo-nos
sempre de que o discernimento é uma graça. Em suma, o discernimento leva à
própria fonte da vida que não morre, isto é, conhecer o Pai, o único Deus
verdadeiro, e a quem Ele enviou, Jesus Cristo[2]».
Uma
teologia tão alerta só pode gerar uma espiritualidade de olhos bem abertos.
3. A dimensão espiritual,
afirmada ou negada, está presente em todas as situações da vida. Como escreve o
poeta Carlos Drummond de Andrade: Para isso fomos feitos/ para lembrar e ser
lembrados/ para chorar e fazer chorar/ para enterrar os nossos mortos/ para
isso temos braços longos para os adeuses/ mãos para colher o que foi dado/
dedos para cavar a terra/ (…) Fomos feitos para a esperança do milagre/ para a
participação da poesia/ para ver a face da morte/ de repente nunca mais
esperaremos/ hoje a noite é jovem; da morte/ apenas nascemos, imensamente.
Parece
que os poetas não acreditam que a vida será regida apenas por
super-computadores electrónicos[3]. Também
não espero que um dia vá surgir, como pensava Jean Rostand, pílulas (tão
obrigatórias como aprender a ler) destinadas a moderar a inveja, a dominar a
ambição, a reduzir o desejo de poder, da força, da violência, de predomínio (as
verdadeiras calamidades históricas) impondo aos seres humanos um sentido
universal de solidariedade.
Isto
seria um milagre: o homem tornar-se-ia humano através de um equilíbrio
biológico sabiamente conseguido pela química[4]. Mas que
teria isso a ver com um ser humano?
30. Junho. 2019
[1]
Evangelii gaudium, 40
[2]
Gaudete et exsultate, 170; para todas as questões, desta crónica,
relativas à teologia, ver: Papa Francisco, na Pontifícia Faculdade de Teologia da Itália Meridional,
Nápoles, 21.6.2019.
[3]
São cada vez mais espantosos os benefícios da inteligência artificial, assim
como as esperanças e os receios que semeiam. Cf. Arlindo Oliveira, Inteligência artificial, Fund. Francisco
Manuel dos Santos, 2019. Ainda não conheço os poemas dessa famosa inteligência.
[4]
Cf. Chianca de Garcia, Cartas do Brasil,
Edição O Independente, Lisboa, 2004, 19. 23. 132-133
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