domingo, 26 de abril de 2020

NÃO DEIXAR NINGUÉM PARA TRÁS Frei Bento Domingues, O.P.


1. Certos acontecimentos pedem-nos disponibilidade para intervir e pensar o mundo de novo. Diz-se que os portugueses são repentinos perante desafios inesperados, mas pouco constantes em se manterem abertos aos problemas novos que acontecem na vida social, política, científica e cultural do nosso tempo.

Desconfio destas caracterizações algo aforísticas. Parece-me que os nossos decisores políticos, sem autoritarismo, foram acertando o passo para tentar um objectivo complexo sintetizado pelo Primeiro-Ministro: «A primeira prioridade foi conter a pandemia sem matar a economia. A nova prioridade que temos agora é a de reanimar a economia sem deixar descontrolar a pandemia. Há uma coisa que sabemos: não podemos morrer da cura»[1].

A nova prioridade vai ser a mais complicada. Será possível vencer a exuberância das manifestações recíprocas e espontâneas sem anestesiar a cordialidade? Já teremos interiorizado que, à solta, continuamos a ser uma ameaça de contágio e de sermos contagiados, deitando a perder o que foi conseguido no isolamento?

Perante esse perigo não se pode obedecer apenas aos impulsos do sentimento e ao arbítrio individual. As orientações elaboradas, de forma convergente, pela DGS e pelas diversas instâncias dos poderes legítimos, devem merecer a nossa atenção. Dado que a liberdade de expressão, em Portugal, não está posta em causa, é sempre possível apontar o dedo aos abusos. Mas o mundo não se reduz a Portugal, à União Europeia, aos paraísos dos ricos, nem às ânsias das confissões religiosas – que têm manifestado um sentido exemplar da responsabilidade – em reabrir as suas portas.

Acordei a pensar numa questão que me tem acompanhado, de diversas maneiras, durante este tempo de quarentena: a questão levantada por aquelas pessoas que lutam, dia a dia, para não deixar ninguém para trás, sobretudo aqueles e aquelas cuja única carta de recomendação é a de fazerem parte da nossa família humana. Quando alguém descobre, na prática da sua vida, que os mais desprezados são pessoas da sua família, nesse momento, nasce de novo para um mundo novo em gestação há milhões de anos e de parto muito difícil.

  Sei que, em muitos países, há cristãos que ganham o pão de cada dia actuando no mundo da saúde, da economia, da cultura e da política. Não se confundem com um partido. Podem pertencer a diferentes partidos ou a nenhum. Não se limitam a ser um alerta permanente para as consequências concretas das desigualdades que bradam aos céus, desigualdades gritantes que se renovam e crescem aumentando sempre as defesas da sua impunidade. Tentam criar formas de vida e propostas que provem que não estamos condenados a um mundo que reproduz sempre a mesma cena denunciada por Cristo: uns à mesa faustosa e outros à porta expostos à compaixão dos cães[2].

Para trilhar esse caminho, a laicidade do Estado pode ajudar a Igreja a testemunhar a diferença radical de Cristo nas lutas pelos diversos poderes no mundo actual.

Nestas crónicas, já tentei, várias vezes, mostrar que o Nazareno afirmou-se como um homem livre, ao vencer as tentações diabólicas que o pretendiam atrair para os caminhos da dominação económica, política e religiosa. Não lhes cedeu, mas depressa muitos se deram conta que ele era a subversão da sociedade dominada pela idolatria do dinheiro, alavanca de todas as formas de dominação e exclusão.

 Não criou um poder político alternativo aos poderes do seu tempo. Foi morto por uma coligação de Herodes e Pôncio Pilatos com as nações pagãs e os povos de Israel[3]. Segundo S. João, Jesus declarou que o seu Reino não era do mundo político romano, nem das pretensões de Israel. Esses eram reinos da mentira e da violência e o que Ele pretendia era que, no mundo, reinasse a verdade, a justiça e a misericórdia[4]. A pregação e a intervenção de Jesus não foi a de um pregador de abstracções ou de generalidades, mas de parábolas, forma de interrogar tudo e todos. Era concreto no que dizia e no que fazia. O seu enfrentamento foi muito claro com o império do dinheiro que esmagava os pobres e os doentes. Os ricos só pelo milagre da conversão se poderiam salvar.

2. A Igreja nascente não deixou de testemunhar uma nova forma de viver, nem sob o ponto de vista económico nem sob o ponto de vista social e de fazer frente ao poder que exigia o seu silenciamento. Não era um império económico que desejava realizar. Chegou ao ponto de concretizar um mundo às avessas do que existia: a partilha total dos bens, em que ninguém tivesse de mais e em que não faltasse o que era preciso[5].

Na passagem para o século II, temos a célebre carta a Diogneto que mostra que os cristãos, embora perseguidos, já estavam por toda a parte. Não eram concorrentes do poder, mas pela sua forma de viver, tornavam-se a alma do mundo a alterar.

Com o tempo, a Igreja institucional cedeu a todas as formas de poder. S. Francisco e S. Domingos procuraram sair da fortaleza do mundo feudal, mas a reforma do Concílio de Trento criou uma nova fortaleza contra a liberdade, em nome da posse fanática da verdade. O enfrentamento com a Modernidade teve várias expressões. O Syllabus (1864), de Pio IX, é o catálogo de todas as condenações.

3. A chamada Doutrina Social da Igreja – de facto a Doutrina dos Papas desde os finais do século XIX – confrontou-se, desde o começo, com o capitalismo. Não pretendia recusá-lo nem aceitá-lo em bloco. As encíclicas, desde a Rerum Novarum (1891) de Leão XIII até à Centesimus Annus (1991) de João Paulo II, pretendiam corrigi-lo, alterar-lhe o rumo, torná-lo mais humanizado e menos selvagem[6].

O Papa Francisco não aceita a lógica do capitalismo. O percurso de todo o seu pontificado veio dar a uma nova pérola evangélica:

«Nesta festa da Divina Misericórdia, o anúncio mais encantador chega através do discípulo mais atrasado. Só faltava ele, Tomé. Mas o Senhor esperou por ele. A misericórdia não abandona quem fica para trás. Agora, enquanto pensamos numa recuperação lenta e fadigosa da pandemia, é precisamente este perigo que se insinua: esquecer quem ficou para trás. O risco é que nos atinja um vírus ainda pior: o da indiferença egoísta. Transmite-se a partir da ideia que a vida melhora se vai melhor para mim, que tudo correrá bem se correr bem para mim. Começando daqui, chega-se a seleccionar as pessoas, a descartar os pobres, a imolar no altar do progresso quem fica para trás. Esta pandemia, porém, lembra-nos que não há diferenças nem fronteiras entre aqueles que sofrem. Somos todos frágeis, todos iguais, todos preciosos. Oxalá mexa connosco dentro o que está a acontecer: é tempo de remover as desigualdades, sanar a injustiça que mina pela raiz a saúde da humanidade inteira! … Isto não é ideologia; é cristianismo»[7].

Não é preciso dizer mais nada.



26. Abril. 2020





[1] Expresso, 18. 04. 2020
[2] Lc 16, 14-31
[3] Act 4, 27
[4] Jo 18, 12-40
[5] Act 4, 32-35; 2, 44-45
[6] Cf. Compêndio da Doutrina Social da Igreja, do Conselho Pontifício “Justiça e Paz”, PRINCIPIA, 2005
[7] Homilia do Papa Francisco, no II Domingo de Páscoa, 19 de Abril de 2020

segunda-feira, 20 de abril de 2020

ANTROPOLOGIA DA ESPERANÇA ACTIVA Frei Bento Domingues, O.P.


1. De uma descendência de animais, hoje desaparecidos, na qual se incluíam geleias marinhas, vermes rastejantes, peixes viscosos, mamíferos peludos, este neto de peixe, este sobrinho-neto de lesma, tem direito a um certo orgulho de alguém bem sucedido. De uma certa descendência animal, que em nada parecia votada a um tal destino, saiu o animal extravagante que viria a inventar o cálculo integral e a sonhar com a justiça[1].

A este delicioso texto do biólogo Jean Rostand (1877-1977) junto outro mais recente – situado em plena crise provocada pelo covid-19 – e um pouco menos eufórico de Arlindo Oliveira, Professor do IST:

«A espécie humana tem, do seu lado, uma capacidade única para perceber os mecanismos usados pelas outras espécies. É essa capacidade, a inteligência, que nos distingue dos outros animais e dos outros organismos. É essa capacidade que nos permitirá ultrapassar, sem danos significativos para a civilização, mais esta batalha pela sobrevivência. Que não será a última, nem a mais severa. Outros vírus, outras bactérias e outras doenças, potencialmente mais letais, continuarão a ameaçar a nossa sobrevivência como indivíduos e, no caso mais dramático, como espécie. Mas a inteligência humana coloca do nosso lado um arsenal de capacidade inigualável, que permitirá combater qualquer ameaça desta natureza. O maior inimigo da espécie humana não são os vírus, as bactérias ou qualquer outro animal. O nosso maior inimigo somos nós mesmos porque, pela primeira vez, uma espécie tem a capacidade de se autodestruir. Esse é o maior risco para a espécie humana, aquele contra o qual devemos estar precavidos e atentos»[2].

A morte dos indivíduos não atinge a espécie humana que também não tem um prazo eterno de garantia. A ciência e a tecnologia ainda não conseguiram extinguir a benéfica ilusão do desejo de viver, como diria Freud. O ser humano é estruturalmente desejo. A antropologia, antes de o tentar explicar, deve saber reconhecê-lo.

Devemos a I. Kant uma formulação admirável sobre a dignidade da nossa condição: o ser humano não tem preço, tem valor. Não é um meio para algo de mais valioso a que deva ser sacrificado.

As suas famosas perguntas: que posso eu conhecer, que devo eu fazer, que me é permitido esperar, estão todas condensadas nesta – o que é o homem? Eu prefiro perguntar o que é o ser humano?

Para ele, a resposta pertence à antropologia. O filósofo judeu, Martin Buber, fez-lhe uma observação pertinente. Kant tem, nos seus escritos, um conjunto de preciosas observações sobre o conhecimento do homem. Não abordou, no entanto, nenhum dos problemas que a antropologia implica: o lugar especial do homem no cosmos, a sua relação com o destino e com o mundo das coisas, a compreensão dos seus semelhantes, a sua existência como aquele que sabe que vai morrer, a sua atitude em todos os encontros, ordinários e extraordinários, com o mistério.

Martin Heidegger, o filósofo do assombro perante o acto puro de existir e que sabia unir pensamento e poesia, atribui a incongruência de Kant ao próprio carácter indeterminado da sua pergunta, “O que é o homem?”… Quer dizer, a pergunta acerca do que ele pode conhecer implica uma limitação, pois supõe também o que ele não pode conhecer, a finitude humana, que é a própria essência da nossa existência. Por isso, em lugar da antropologia surgiu uma ontologia fundamental.

Seja como for, a antropologia filosófica não quer conhecer o ser humano como um pedaço da natureza nem pode contentar-se em fazer dele apenas uma questão metafísica: deve estudar o ser humano na sua complexa integridade.

Se o fixarmos como um objecto, ficamos apenas com uma coisa da natureza, não com uma subjectividade irredutível. Quem o investiga não pode fazer de conta que não está implicado nessa investigação.

O romancista Georges Bernanos advertiu: «Se os vossos actos, os vossos sentimentos, mesmo as vossas ideias, não são mais do que simples deslocamentos moleculares, um trabalho químico e mecânico comparável ao da digestão, em nome de quem, em nome de quê, quereis que eu vos respeite?».

2. Nesta crise não faltou quem afirmasse que está a ser um erro perder tempo, espaço, dinheiro com a assistência aos idosos. É simplesmente antieconómico. Devia-se deixar que o vírus covid-19 fizesse o seu trabalho de eliminar os inúteis e reservar os cuidados com os humanos produtivos ou que possam vir a ser produtivos. Não fazer despesas com os funerais: a vala comum permite uma igualdade que lhes foi negada enquanto viveram.

O desejo infinito de viver é uma megalomania alimentada pela religião sob a capa da esperança, quando sabemos que a morte não pede nada, não fala. É o ponto final na comunicação.

O Papa Francisco tem outra ideia: «O túmulo é o lugar donde, quem entra, não sai. Mas Jesus saiu para nós, ressuscitou para nós, para trazer vida onde havia morte, para começar uma história nova no ponto onde fora colocada uma pedra em cima. Ele, que derrubou a pedra da entrada do túmulo, pode remover as rochas que fecham o coração. Por isso, não cedamos à resignação, não coloquemos uma pedra sobre a esperança. Podemos e devemos esperar, porque Deus é fiel. Não nos deixou sozinhos, visitou-nos: veio a cada uma das nossas situações, no sofrimento, na angústia, na morte. A sua luz iluminou a obscuridade do sepulcro: hoje quer alcançar os cantos mais escuros da vida. Minha irmã, meu irmão, ainda que no coração tenhas sepultado a esperança, não desistas! Deus é maior. A escuridão e a morte não têm a última palavra. Coragem! Com Deus, nada está perdido»[3].

3. Quando se pergunta, o que será a nossa situação ao terminar esta pandemia, o Papa responde que depende da opção que tomarmos: «ou a nossa aposta será pela vida, pela ressurreição dos povos, ou será pelo deus dinheiro: voltar à sepultura da fome, da escravidão, das guerras, das fábricas de armas, das crianças sem escolas... aqui está a sepultura!»[4].

A reconstrução da vida das pessoas, dos países, dos continentes, é incompatível com a nostalgia de um estilo de vida que alimentou desigualdades infames entre pessoas, grupos, países e continentes. Estivemos e estamos no mesmo barco, durante muitos meses, mas não da mesma maneira. As desigualdades abissais entre ricos e pobres não foram apagadas. É tempo de começar algo de novo, não perder as experiências admiráveis dos que apostaram em não deixar ninguém para trás.

Contra o desânimo, esperança activa. A mensagem Urbi et Orbi, do dia de Páscoa, tem emprego para todos.



19. Abril. 2020



[1] Este fragmento serviu de epígrafe a um meu antigo depoimento sobre ressurreição: a minha alma não sou eu.
[2] Público (06. 04. 2020)
[3] Homilia do Papa na Vigília Pascal
[4] Homilia do Papa na Missa de 13. 04. 2020

domingo, 12 de abril de 2020

A MORTE NÃO PODE SER A ÚLTIMA PALAVRA Frei Bento Domingues, O.P.


1. Não há liturgia cristã que suspenda as leituras do Antigo e do Novo Testamentos, por vezes acompanhadas pela grande música e integradas numa celebração ritual. Na Semana Santa são, por regra, muito mais abundantes. Exigem o auxílio de uma boa cultura bíblica, bastante ausente da maioria das assembleias. Não se deve confundir uma celebração litúrgica com uma imaginária reconstituição do passado, do mundo que já não existe. É certo que algumas homilias tentam situá-las no presente mediante considerações e aplicações, muitas vezes de pendor pietista e moralizante que amortecem a imaginação em vez de a incendiar. Existem e sempre existiram belas excepções.

  O mundo desses textos, a história turbulenta e dilacerada da Cristandade em que foram acolhidos, pensados, celebrados, traídos e retomados como fonte de luz, não fazem do Cristianismo uma religião do Livro como acontece, por exemplo, com o Islão.

Não pode haver culto da Sagrada Escritura. Sagrado é Aquele de quem elas testemunham, Aquele que se fez “carne”, isto é, fragilidade humana. O Verbo de Deus não se fez Livro.

  Tudo quanto se escreveu no âmbito da fé cristã, bebido em muitas fontes culturais, não foi para encher bibliotecas de erudição ou para alimentar escolas esotéricas. Foi para mostrar algo de absolutamente extraordinário que nenhum livro pode conter, mas apontar e testemunhar por uma vida feita dom. Jesus Cristo não é apenas nosso contemporâneo. É a interrogação mais radical à nossa contemporaneidade, interrogação que se procurou e procura abafar dentro e fora das Igrejas.

 Como não sei usar o seu estilo criativo das parábolas, vou supor e imaginar, de forma tosca, algumas interrogações como esta: porque continuais a fazer do dinheiro, de tudo o que ele representa, o vosso deus? Ainda não reparaste que o actual modelo de sociedade e de globalização não vos pode salvar? Trabalhais admiravelmente no desenvolvimento das ciências e das tecnologias com resultados espantosos, mas para quê? Que mundo procurais e que elas podem ajudar a construir? Não vos dais conta que se continuardes a ceder às tentações da dominação económica, política e religiosa, a nível local e global, não estais a construir sociedades abertas, democráticas, mas a fortalecer e a fechar as pessoas no egoísmo, o grande vírus do presente e do futuro?

     Não vale a pena repetir que o ser humano não tem conserto. Estamos sempre a tempo, em qualquer idade, de nascer de novo. Como esta crise monstruosa está a revelar, existem incontáveis pessoas que ganham nova vida gastando-se a dar consolo e esperança. São muitas as que acordam com a pergunta: em que posso ajudar pelo desenvolvimento dos meus talentos, das minhas capacidades? Sempre conheci santos e santas que orientavam e orientam o seu percurso humano pela máxima antiga e sempre nova: o bem é para fazer e o mal, para evitar. O resto pode transformar-se em conversa pretensiosa, farisaica, para evitar nascer de novo. 

Seja como for, a presença misteriosa, divina, em todo o ser humano, não substitui a sua criatividade nem atenta contra a sua autonomia e liberdade.

       2. Segundo os Actos dos Apóstolos, o próprio S. Paulo, para introduzir a sua fé na ressurreição de Cristo, recorre à literatura gentia que, tacteando, confessava que Deus não está longe de nós, pois Nele vivemos, nos movemos e existimos. Somos da sua raça[1].

       O Domingo é dedicado à celebração semanal da Páscoa para reconhecer, na partilha do pão, a presença transformante de Cristo no quotidiano de toda a semana. Está na origem da grande celebração anual.

        Odo Casel (1886-1949) [2], monge beneditino, fez um grande esforço   para mostrar que a liturgia é a presença actual do mistério pascal. Reencontrou-se com a autêntica cristologia de Tomás de Aquino que defendia que a actividade histórica de Jesus não ficou no passado, mas atinge presencialmente todos os tempos e lugares, por ser obra de Deus na intervenção humana de Cristo[3]. Esta presença actuante é acolhida quando hoje o nosso agir se identifica com o sentido do itinerário histórico de Cristo que passou fazendo o bem[4].

Jesus não escreveu nada. Não pediu aos seus discípulos que escrevessem a sua mensagem, mas que testemunhassem com a vida o seu Testemunho. O facto é que, passados alguns anos, surgiram muitos escritos sobre a pessoa de Jesus, sobre a sua actividade e sobre a sua mensagem. A Primeira Carta aos Tessalonicenses é considerada o escrito mais antigo, geralmente datado do ano 50. Mais tarde, surgiram os outros textos do Novo Testamento, no seio de comunidades que viviam ligadas pela fé a Jesus ressuscitado sem texto.

Com o tempo, às primeiras comunidades de discípulos, não bastou viver da fé em Jesus ressuscitado e das narrativas orais que partilhavam com aqueles que tinham andado com Jesus. Dessa situação, nasceram os 4 Evangelhos, em lugares diversos e de comunidades com problemáticas diferentes. Tinham fontes comuns e fontes próprias.

3. Estamos no Domingo de Páscoa. As narrativas pascais[5] deixam muitos fiéis perplexos. O Ressuscitado aparece, nuns casos na Galileia, noutros em Jerusalém e nos seus arredores. Na primeira versão do Evangelho de Marcos, o Ressuscitado não aparece a ninguém. Foi-lhe depois acrescentado um final que já integra o de outras narrativas. Há, no entanto, um traço comum: a ressurreição é inesperada, não se pode descrever, não é de ordem histórica, mas é real, porque o real não se limita ao que a história pode documentar. A linguagem das narrativas das aparições de Jesus é muito divertida pelos seus contrastes, pois está diante de uma grande dificuldade: como mostrar que é o mesmo antes e depois da ressurreição, mas não é nada da mesma maneira? Usa um artifício para mostrar a continuidade e a ruptura. Não vou entrar nessa apresentação que exigiria explicações que não cabem nas dimensões desta crónica.

Não acredito que a morte seja a última palavra da nossa vida.

No cemitério de Castro Daire, foi fixado um poema de Frei José Augusto Mourão (1947-2011) que é cantado em todos os funerais. No convento de S. Domingos, pertence à liturgia de Sexta-Feira Santa. Só a Páscoa de sempre celebra a sua memória:

Não pode a morte reter-me na cruz./Não pode o mundo arrancar-me à raiz/ Ao pé de Deus hei-de sempre viver/ Com Deus cheguei e com Ele vou partir// A tua vida me toma e transporta/ Teu sangue inunda meu corpo de paz/ Vejo as mãos do Senhor glorioso/ Nas minhas mãos a memória de Deus// A Ti, Senhor, meus desejos regressam/ Findo o andar, disponíveis as mãos/ Abre meu corpo ao devir que não sei/ Eu chamo a esperança pelo nome de Deus.



12. Abril. 2020



[1] Act 17, 28-29
[2] O Mistério do Culto Cristão, Secretariado Nacional de Liturgia, 2019
[3] S. T. 3, q. 58, a. 1
[4] Act 10, 38-39
[5] Mc 16; Mt 28; Lc 24; Jo 20-21

quinta-feira, 9 de abril de 2020

SANTA PÁSCOA - uasp


Quando eu for levantado da terra, atrairei todos a mim! (Jo 12,32)

A UASP deseja à suas Associadas, antigos alunos dos Seminários, seus familiares e amigos, uma Santa Páscoa! 


www.uasp.pt | Faceboock.com/uasp


VOTOS DE SANTA PÁSCOA

Caros Colegas e Amigos
Mesmo que sem autorização do autor, vou fazer minha a Saudação Pascal do "gurú" da nossa Associação, o nosso muito querido colega e amigo Pe Manuel Augusto. Apesar de estar a viver no "olho do furacão", encontrou tempo e ânimo para nos confortar com a esperança na alegria da Ressurreição por que todos ansiamos nestes tempos conturbados que nos foi dado viver.


Para o Pe. Manuel Augusto e para todos vós os meus votos de uma Santa Páscoa em meu nome e em nome da AAA Combonianos

António Pinheiro




-------- Forwarded Message --------
Subject: Saudação Pascal
Date: Thu, 9 Apr 2020 09:28:33 +0200
From: Manuel Augusto Ferreira <malfmccj@gmail.com>
To: Antonio Pinheiro <aspinheiro@clix.pt>


Estimado António Joaquim!
Uma palavra, da minha parte, para te procurar e encontrar, apesar da quarentena que nos isola. É Páscoa de Cristo e, por tradição e por fé, procuramo-nos para trocar votos de felicidade e alegria.
Por um momento, quase cedia à dificuldade de o fazer, dadas as circunstâncias em que vivemos: como desejar feliz páscoa, quando estamos todos envoltos em sofrimento e incerteza, a viver um tempo, nunca imaginado, em que tudo fica suspenso e incerto? Como falar de Páscoa, quando somos forçados a vivê-la sem liturgia, sem flores e sem cânticos, sem abraços de alegria?
Mas, de seguida, pensei que, no nosso isolamento, todos nos desejamos mais, em comunhão espiritual; todos esperamos uma palavra de esperança, um gesto de amizade que nos recuperem para a alegria de viver.
Não que eu possa dizer essa palavra ou adiantar esse gesto... Mas nas palavras e gestos que nos trocamos, ajudamo-nos a abrir as nossas vidas a Quem a pode dizer, a Quem o pode fazer...
A Deus que a diz, a nós como disse a Cristo, no silêncio do seu sofrimento, na noite de sábado santo: “Tu és meu filho, hoje te exalto!” A Deus que, nos caminhos do nosso isolamento, nos espera sempre com um abraço de Amor que nos reconduz à Vida.
Sim, uma palavra que anuncie uma passagem (páscoa é passagem!) da incerteza à esperança, da tristeza à alegria, do sofrimento à vida em plenitude, do egoísmo ao amor.
Nas presentes circunstâncias experimentamos que a vida é frágil, sempre ameaçada; é dom recebido para partilhar. Somos criados por Amor, para dar Amor e fazer crescer a Vida; para tecer a nossa pequena história com o amor criador de Deus, nela fazendo entrar (com a paixão dos enamorados da Vida) a Beleza, a Bondade e o Bem, que são nomes de Deus (também).
Haja Páscoa! Como foi para Cristo, assim seja para ti e para os teus, para nós, para toda a humanidade nesta hora de fragilidade.
Com amizade,
P. Manuel Augusto

Manuel Augusto Lopes Ferreira
Missionari Comboniani
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segunda-feira, 6 de abril de 2020

TECER REDES DE ESPERANÇA Frei Bento Domingues, O.P


1. Li comovido e meditei a homilia do Papa Francisco, do dia 27 de Março, na Praça vazia de S. Pedro, cheia do mundo inteiro. Dou graças a Deus pela presença activa desta voz que congrega as energias de todas as pessoas que tecem redes de esperança, neste tempo ferido de guerras, fomes, exclusões e agora pelo devastador covid-19.

Essa voz de um corpo fragilizado reúne, no mesmo cuidado, os povos do Oriente e do Ocidente, do Norte e do Sul, crentes e não crentes, a começar pelos mais pobres, doentes e desprotegidos, acompanhados pelas pessoas que arriscam a própria vida para não deixarem esse vasto mundo sem protecção e consolo.

 São estas pessoas que estão a incarnar, de forma heróica, nestes meses de Março e Abril – e não sabemos por quanto tempo ainda serão indispensáveis – a ética samaritana a que me referi nesta coluna[1].

Esta pandemia está a precisar de muitas redes de cirineus que ajudem a levar a cruz das suas inumeráveis vítimas, agora e no futuro. Também elas precisam da manifestação da solidariedade agradecida de todos os cidadãos de alma magnânima.

Hoje, é Domingo sem Ramos das muitas comunidades cristãs de todos os continentes. Pode-se falar de Semana Santa por causa do infinito perdão pedido por Jesus Cristo, do alto da cruz, para todos os que colaboraram no seu assassinato legalizado com apoio popular. É uma celebração que nasce das narrativas do Novo Testamento, acerca das quais dispomos de excelente produção de crítica histórica, exegética, teológica e litúrgica, bastante ignorada[2].

 Como escreveu Frederico Lourenço, na sua introdução aos Evangelhos, é provável que estes quatro textos nem merecessem, ao leitor culto da época, o alto estatuto de literatura. No entanto, estes textos conquistaram o mundo antigo, tanto grego como romano.

Lendo-os dois mil anos depois, acrescenta, não é difícil perceber porquê. Sobre um desses textos já se escreveu que se trata do «mais divino de todos os livros divinos»: na verdade, essa descrição assenta a qualquer um deles. São textos que – com a sua mensagem sublime veiculada por palavras cuja beleza desarmante ainda deixa arrepiado quem os leu e releu ao longo da sua vida inteira – estão simplesmente numa categoria à parte.

    São textos insubstituíveis, confessa o tradutor de tantas obras-primas da nossa Antiguidade, porque a verdade é esta: tanto crentes como não crentes andaremos às voltas com Jesus nas nossas cabeças, enquanto houver seres humanos sobre a Terra[3].

2. Neste Domingo, é proclamada a Paixão de Jesus Cristo segundo S. Mateus. Quem se deixar iluminar pela música que ela provocou, em J.S. Bach, talvez possa descobrir o que nenhuma teologia pode conseguir.

Sob acção dessa luz, Eduardo Lourenço escreveu um texto, sem data, que é preciso ler e reler e do qual não resisto a deixar aqui alguns recortes: «no abismo intemporal onde a música me mergulhou, sumiu-se a luz monótona da lâmpada, a nitidez da hora nocturna, o meu próprio peso terrestre e mortal. “O céu não será o céu se lá não se tocar João Sebastião”.

«(…) A mim próprio, o dialecta incurável da conciliação dos contrários, o sofista triste da esperança terreste pregada aos outros, a magia humana de João Sebastião Bach arranca-me por momentos da árida e solitária planície da Insignificação, de que sou caminheiro sem tréguas. As lágrimas correm sem vergonha na minha face de homem rendido e humilde e o canto imortal rasga a minha carne até lá onde eu gosto de imaginar que está o mais profundo que me sustenta com o grito inexpiável do chamamento à única presença que desde a infância eu sei que importa à minha vida.

«(…) Entre tantas formas de tentação, e só aqueles que nada têm a perder não sabem o que é a tentação, a tentação de Deus é a mais perigosa, a mais irresistível, porque Deus é a forma que em absoluto convém à nossa alma»[4].

3. Numa das anáforas mais usadas na liturgia Eucarística, a evocação da Última Ceia é introduzida por uma expressão arrepiante: Na hora em que Ele Se entregava, para voluntariamente sofrer a morte, tomou o pão... Quem compôs esta anáfora e os que a usam não se dão conta do seu horror?

Os romanos usavam os três tipos mais cruéis de executar os condenados: agonizar na cruz, ser devorado pelas feras e ser queimado vivo.

A crucifixão não era uma simples execução, mas uma lenta tortura. Ao crucificado não se danificava nenhum órgão vital. Por isso, a sua agonia podia prolongar-se durante longas horas e até dias. Cícero chamou-lhe o suplício mais cruel e terrível.

Era normal combinar o castigo básico da crucifixão com humilhações e tormentos. Os dados são arrepiantes. Não era invulgar mutilarem o crucificado, vazarem-lhe os olhos, queimarem-no, flagelarem-no e torturarem-no de diversas formas, antes de o suspenderem da cruz. O modo de levar a cabo a crucifixão ficava entregue ao sadismo dos verdugos. Morto era pasto dos abutres[5].

Dizer que Jesus se entregou voluntariamente a este tipo de crueldade é blasfemar. Quando S. João põe na boca de Cristo, «ninguém me tira a vida, sou eu que a dou» refere-se a uma realidade completamente diferente[6].

 Jesus não foi obrigado a seguir a missão libertadora que empreendeu adulto, livremente, como graça do Espírito Santo. Foi escolha sua e, quando o prenderam, não renegou o caminho que escolhera, de alma e coração: dar vida e esperança às vítimas da injustiça e de todas as formas de opressão.

Nunca desejou a morte. Lutou contra ela e chorou a morte de um grande amigo. Não traiu. Nenhuma ameaça, nenhuma tortura o levou a trair, nem mesmo a da morte, o seu projecto libertador[7].

Jesus não encarou a morte como Sócrates: Sócrates mandou oferecer um galo ao deus da medicina, Asclépio, porque finalmente o envenenamento libertava-o da prisão do corpo. Jesus Cristo sentiu todo o horror da morte a ponto de perguntar por Deus: meu Deus, Meu Deus porque me abandonaste? No entanto, não encarou a morte como um niilista: nas tuas mãos entrego o meu espírito.

A morte não podia ser a última palavra porque, na sua morte, Jesus deu futuro àqueles que o matavam.



05. Abril. 2020



[1] Público, 22. 03. 2020
[2] Em José Antonio Pagola, Jesus. Uma abordagem histórica, Gráfica de Coimbra 2, 2008 e Michel Quesnel, Jesus. O Homem e o Filho de Deus, Gradiva, 2005, podem encontrar a bibliografia de referência.
[3] Frederico Lourenço, Bíblia. Novo Testamento. Os Quatro Evangelhos, Vol. I, Quetzal, 2016
[4] Eduardo Lourenço, Tempo da Música. Música do Tempo, Gradiva, 2017, 50-51; 124; 147; 157
[5] José Antonio Pagola, Op. cit., 387-426
[6] Jo 10, 16-18
[7] Lc 4, 16-30