1. Certos acontecimentos pedem-nos disponibilidade para intervir
e pensar o mundo de novo. Diz-se que os portugueses são repentinos perante desafios
inesperados, mas pouco constantes em se manterem abertos aos problemas novos
que acontecem na vida social, política, científica e cultural do nosso tempo.
Desconfio destas caracterizações algo aforísticas. Parece-me que
os nossos decisores políticos, sem autoritarismo, foram acertando o passo para tentar
um objectivo complexo sintetizado pelo Primeiro-Ministro: «A
primeira prioridade foi conter a pandemia sem matar a economia. A nova
prioridade que temos agora é a de reanimar a economia sem deixar descontrolar a
pandemia. Há uma coisa que sabemos: não podemos morrer da cura»[1].
A nova prioridade vai ser a
mais complicada. Será possível vencer a exuberância das manifestações recíprocas
e espontâneas sem anestesiar a cordialidade? Já teremos interiorizado que, à
solta, continuamos a ser uma ameaça de contágio e de sermos contagiados, deitando
a perder o que foi conseguido no isolamento?
Perante esse perigo não se
pode obedecer apenas aos impulsos do sentimento e ao arbítrio individual. As
orientações elaboradas, de forma convergente, pela DGS e pelas diversas instâncias
dos poderes legítimos, devem merecer a nossa atenção. Dado que a liberdade de
expressão, em Portugal, não está posta em causa, é sempre possível apontar o
dedo aos abusos. Mas o mundo não se reduz a Portugal, à União Europeia, aos
paraísos dos ricos, nem às ânsias das confissões religiosas – que têm
manifestado um sentido exemplar da responsabilidade – em reabrir as suas
portas.
Acordei a pensar numa questão
que me tem acompanhado, de diversas maneiras, durante este tempo de quarentena:
a questão levantada por aquelas pessoas que lutam, dia a dia, para não deixar ninguém para trás, sobretudo aqueles
e aquelas cuja única carta de recomendação é a de fazerem parte da nossa
família humana. Quando alguém descobre, na prática da sua vida, que os mais desprezados
são pessoas da sua família, nesse momento, nasce de novo para um mundo novo em
gestação há milhões de anos e de parto muito difícil.
Sei que,
em muitos países, há cristãos que ganham o pão de cada dia actuando no mundo da
saúde, da economia, da cultura e da política. Não se confundem com um partido.
Podem pertencer a diferentes partidos ou a nenhum. Não se limitam a ser um alerta
permanente para as consequências concretas das desigualdades que bradam aos
céus, desigualdades gritantes que se renovam e crescem aumentando sempre as
defesas da sua impunidade. Tentam criar formas de vida e propostas que provem
que não estamos condenados a um mundo que reproduz sempre a mesma cena
denunciada por Cristo: uns à mesa faustosa
e outros à porta expostos à compaixão dos cães[2].
Para trilhar esse caminho,
a laicidade do Estado pode ajudar a Igreja a testemunhar a diferença radical de
Cristo nas lutas pelos diversos poderes no mundo actual.
Nestas crónicas, já tentei,
várias vezes, mostrar que o Nazareno afirmou-se como um homem livre, ao vencer
as tentações diabólicas que o pretendiam atrair para os caminhos da dominação
económica, política e religiosa. Não lhes cedeu, mas depressa muitos se deram
conta que ele era a subversão da sociedade dominada pela idolatria do dinheiro,
alavanca de todas as formas de dominação e exclusão.
Não criou um poder político alternativo aos
poderes do seu tempo. Foi morto por uma coligação
de Herodes e Pôncio Pilatos com as nações pagãs e os povos de Israel[3]. Segundo S. João, Jesus
declarou que o seu Reino não era do mundo político romano, nem das pretensões
de Israel. Esses eram reinos da mentira e da violência e o que Ele pretendia
era que, no mundo, reinasse a verdade, a justiça e a misericórdia[4]. A pregação e a
intervenção de Jesus não foi a de um pregador de abstracções ou de
generalidades, mas de parábolas, forma de interrogar tudo e todos. Era concreto
no que dizia e no que fazia. O seu enfrentamento foi muito claro com o império
do dinheiro que esmagava os pobres e os doentes. Os ricos só pelo milagre da
conversão se poderiam salvar.
2. A
Igreja nascente não deixou de testemunhar uma nova forma de viver, nem sob o
ponto de vista económico nem sob o ponto de vista social e de fazer frente ao
poder que exigia o seu silenciamento. Não era um império económico que desejava
realizar. Chegou ao ponto de concretizar um mundo às avessas do que existia: a
partilha total dos bens, em que ninguém tivesse de mais e em que não faltasse o
que era preciso[5].
Na passagem para o século
II, temos a célebre carta a Diogneto que mostra que os cristãos, embora
perseguidos, já estavam por toda a parte. Não eram concorrentes do poder, mas
pela sua forma de viver, tornavam-se a alma do mundo a alterar.
Com o tempo, a Igreja
institucional cedeu a todas as formas de poder. S. Francisco e S. Domingos
procuraram sair da fortaleza do mundo feudal, mas a reforma do Concílio de
Trento criou uma nova fortaleza contra a liberdade, em nome da posse fanática
da verdade. O enfrentamento com a Modernidade teve várias expressões. O Syllabus (1864), de Pio IX, é o catálogo
de todas as condenações.
3. A
chamada Doutrina Social da Igreja – de facto a Doutrina dos Papas desde os
finais do século XIX – confrontou-se, desde o começo, com o capitalismo. Não
pretendia recusá-lo nem aceitá-lo em bloco. As encíclicas, desde a Rerum Novarum (1891) de Leão XIII até à Centesimus Annus (1991) de João Paulo
II, pretendiam corrigi-lo, alterar-lhe o rumo, torná-lo mais humanizado e menos
selvagem[6].
O Papa Francisco não
aceita a lógica do capitalismo. O percurso de todo o seu pontificado veio dar a
uma nova pérola evangélica:
«Nesta festa da Divina Misericórdia, o
anúncio mais encantador chega através do discípulo mais atrasado. Só faltava
ele, Tomé. Mas o Senhor esperou por ele. A misericórdia não abandona quem fica
para trás. Agora, enquanto pensamos numa recuperação lenta e fadigosa da
pandemia, é precisamente este perigo que se insinua: esquecer quem ficou para
trás. O risco é que nos atinja um vírus ainda pior: o da indiferença egoísta.
Transmite-se a partir da ideia que a vida melhora se vai melhor para mim, que
tudo correrá bem se correr bem para mim. Começando daqui, chega-se a seleccionar
as pessoas, a descartar os pobres, a imolar no altar do progresso quem fica
para trás. Esta pandemia, porém, lembra-nos que não há diferenças nem
fronteiras entre aqueles que sofrem. Somos todos frágeis, todos iguais, todos
preciosos. Oxalá mexa connosco dentro o que está a acontecer: é tempo de
remover as desigualdades, sanar a injustiça que mina pela raiz a saúde
da humanidade inteira! … Isto não é ideologia; é cristianismo»[7].
Não é preciso dizer mais
nada.
26. Abril. 2020
[1] Expresso, 18. 04. 2020
[2] Lc 16, 14-31
[3] Act 4, 27
[4] Jo 18, 12-40
[5] Act 4, 32-35; 2, 44-45
[6] Cf. Compêndio da Doutrina Social da Igreja, do Conselho Pontifício
“Justiça e Paz”, PRINCIPIA, 2005
[7] Homilia do Papa
Francisco, no II Domingo de Páscoa, 19 de Abril de 2020