domingo, 31 de maio de 2020

A LOUCURA MUNDANA E O DOM DA SABEDORIA Frei Bento Domingues, O.P.


1. O título desta crónica foi-me imposto por algumas reacções a vários acontecimentos locais e globais – uns mais recentes e outros mais antigos – de consequências que não são fáceis de apagar.

O mais recente, o covide-19, obrigou muita gente a tornar-se monge trapista à força e outra a descer à cova de modo clandestino, sem poder despedir-se de familiares ou amigos.

 Vivemos, agora, a febre de recuperar o exercício da liberdade que o medo, as leis e as normas de alguns Estados e Religiões condicionavam. Não falta quem receie que esta febre se transforme num libertário exercício de alguma estupidez ou acentue as dificuldades dos chamados “bairros sociais”, onde as condições de habitação e de circulação, que o trabalho exige, criem novos focos de expansão da pandemia. Pelos vistos, é menos arriscada uma viagem a Marte do que o percurso de um pobre para os seus locais de trabalho diário.

O Primeiro Ministro formulou, no entanto, um princípio de sabedoria prática que mantém toda a sua pertinência: «O primeiro dever, de cada uma e de cada um de nós, é cuidar do próximo. É o de evitar que, por negligência, por desconhecimento, ponhamos em risco a saúde do outro».

Existem normas estudadas para que uma pessoa possa conviver sem contaminar nem ser contaminada. Exigem o incómodo de serem observadas. Mas, já estou a prever o lamento tardio se as coisas correrem mal pela insensatez pessoal ou de grupo: o desconfinamento foi muito precipitado! Não me consola a conversa que se está a difundir: se acontecer um novo surto, já sabemos como reagir! Não saberemos sem aprender, agora, a evitá-lo.

Agustina Bessa Luís dizia que somos um povo de reacções repentinas. Damo-nos mal com a sabedoria que é a virtude arquitecta da vida pessoal, social e política de boa cidadania.

Existe quem decida mais depressa do que pensa. Como escreveu Peter Sloterdijk, o activista não tem a capacidade nem a vontade de compreender em que bases assenta toda a moral política esclarecida: não é o fim que justifica os meios, são os meios que dizem a verdade sobre os fins. Como se sabe, as piores formas de terror são aquelas que se referem às mais eminentes intenções. Um número não negligenciável dos que se deixaram apanhar pelo demónio do bem quiseram realmente imaginar que, por vezes, o crime é a forma suprema do culto a Deus ou da efectivação do seu dever. A objecção mais eficaz contra este tipo de encantamento vem do núcleo espiritual da religião cristã, ou seja, do dogma crístico: «É pelos seus frutos que os conhecereis» (Mt 6,16)[1].

2. Hoje, os cristãos celebram a festa do Pentecostes. Segundo o Evangelho de João, mesmo depois da experiência do Cristo ressuscitado, a comunidade dos discípulos vivia trancada pelo medo. Foi o dom do Espírito Santo que a desconfinou e fez dela testemunha de um novo começo[2].

Foi, no entanto, a astúcia de S. Lucas que, depois de fazer a história do percurso de Jesus, descreveu os começos do multifacetado movimento cristão. Criou um cenário para fazer coincidir a celebração judaica da renovação da Aliança, pelo dom da Lei no Sinai, com a irrupção da Lei Nova, a da pura graça do Espírito de Cristo aberta a todos os mundos[3].

É muito belo o mito da Torre de Babel e muito mal interpretado. A diversidade das línguas e a dificuldade que ela representa, para a chamada comunicação, é um dado da experiência universal. O sonho de uma só língua precisa de um poder dominador universal que elimine todas as outras. No referido mito, é a intervenção de Deus que se opõe a esse imperialismo de destruição da diversidade linguística para a realização de projectos megalómanos[4].

Muitas vezes se contrapôs o mito do Pentecostes[5] ao da Torre de Babel, quando, de modo diferente, são ambos a apologia da diversidade. No Pentecostes, cada qual os ouvia falar na sua própria língua. Estupefactos e surpreendidos diziam: Não são todos galileus, esses que estão a falar? Como é que cada um de nós os ouve na sua própria língua materna?

O universalismo do movimento cristão não é uma razia da diversidade cultural e linguística. O desejo de catecismos universais e de um direito canónico, onde está tudo previsto, não são capazes de se converterem à diversidade turbulenta da História da Igreja. Apesar do Vaticano II, a unicidade nas expressões da Fé cristã contraria a pluralidade cultural, mesmo dentro de um só país.

3. Entre os muitos documentos do Papa Francisco, quero destacar o intitulado A Alegria da Verdade (VG), destinado a criar um novo paradigma de investigação e ensino, para as universidades católicas e pontifícias. Perante os dramáticos desafios sociais, económicos e políticos que o covid-19 impõe à sociedade e à Igreja, é fundamental perguntar o que está a ser feito desse notável e incontornável programa.

Deixo, aqui, um pequeno apontamento desse texto esquecido:

Na verdade, hoje em dia, a exigência prioritária é que todo o povo de Deus se prepare para empreender com espírito uma nova etapa da evangelização (…) E isto revela-se de valor imprescindível para uma Igreja “em saída”. Tanto mais que, hoje, não vivemos apenas uma época de mudanças, mas uma verdadeira e própria mudança de época, caracterizada por uma crise antropológica e socio-ambiental global, em que verificamos, de dia para dia, cada vez mais sintomas de um ponto de ruptura, por causa da alta velocidade das mudanças e da degradação que se manifestam, tanto em catástrofes naturais regionais como em crises sociais ou mesmo financeiras. Em última análise, trata-se de mudar o modelo de desenvolvimento global e de redefinir o progresso.

(…) Esta tarefa enorme e inadiável requer, a nível cultural da formação académica e da investigação científica, o compromisso generoso e convergente em prol duma mudança radical de paradigma. Seja-me permitido dizê-lo, para uma corajosa revolução cultural.

A este compromisso, a rede mundial de Universidades e Faculdades eclesiásticas é chamada a prestar o decisivo contributo de fermento, sal e luz do Evangelho de Jesus Cristo e da Tradição viva da Igreja sempre aberta a novos cenários e propostas.

(…) Daí, o imperativo de escutar no coração e fazer ressoar na mente o clamor dos pobres e da terra, para tornar concreta a dimensão social da evangelização como parte integrante da missão da Igreja[6].

É urgente a pergunta e a procura de uma resposta: qual é a cultura social, económica e política de professores e alunos das universidades que se dizem católicas? Um inquérito a esta questão não ficava nada mal.





31. 05. 2020





[1] Peter Sloterdijk, A Loucura de Deus. Do Combate dos Três Monoteísmos, Relógio d’Água, 2009, p. 63
[2] Jo 20, 19-23
[3] Act 1 – 3
[4] Gn 11, 1-9
[5] Act 2, 1-13
[6] Cf. VG, nº 3 e 4

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