1.
O
título desta crónica anda comigo desde 1962. Quando o dominicano brasileiro,
Frei Mateus Rocha, foi a Toulouse convidar-me para ir trabalhar no Instituto de
Teologia da Universidade de Brasília, falou-me apaixonadamente do Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães
Rosa[1]. Deixou-me o exemplar que
trazia consigo, com o aviso: vais conhecer a obra prima da literatura
brasileira e uma das mais belas expressões da teologia literária. Tinha razão.
O projecto de Brasília era do grande
antropólogo, Darcy Ribeiro, Ministro da Educação no governo de João Goulart,
derrubado por um golpe militar em 1964. A ditadura durou 21 anos. Não fui para
Brasília, mas o Grande Sertão nunca
mais me largou.
Viver é
muito perigoso é um dos refrões que ritma a poderosíssima escrita do Grande Sertão. Que viver é mesmo
perigoso já Siddhartha Gautama, chamado Buda, o iluminado (nascido em 560
a.C.), o tinha verificado quando, ao sair para fora da sua zona de grande
conforto e prazer, encontrou um velho, um doente, um cadáver e um monge pedindo
esmola. A doença, a velhice e a morte foram o começo do seu despertar para a
descoberta das causas do sofrimento e das quatro nobres verdades que conduzem à
sua superação, mediante o nobre caminho das oito virtudes.
Sem a vitória sobre o
desejo, sobre a vontade de viver, não é possível a perfeita iluminação libertadora do medo. Seja
qual for a história e a fantasia dessas narrativas, a verdade é que provocaram,
ao longo dos tempos, diversas escolas de sabedoria: o Budismo forma uma
constelação ou uma nebulosa impressionante de ensaios de sabedorias de viver,
sobretudo nas áreas culturais asiáticas.
O monaquismo ocidental, de
inspiração cristã, teve muitas expressões. S. Bento superou a acusação de parasitas
do trabalho alheio, com a regra norteada pela sabedoria de ora et labora, reza e trabalha. S. Paulo tinha sido mais sintético:
quem, podendo trabalhar, não trabalha, não coma[2].
2. O Grande Sertão situa a sua religiosidade no âmbito cristão, da forma
mais ecuménica que se possa imaginar e capaz de beber em todas as fontes. Riobaldo,
o fervoroso teólogo jagunço, tem uma experiência terrível de como é mesmo
perigoso viver, mas nunca desiste de pensar e repensar a sua fé e as suas
crenças, para não perder a esperança de tornar o homem humano. Para ele, «o existir da alma é a reza… Quando estou
rezando, estou fora da sujidade, à parte de toda a loucura. Ou o acordar da
alma é que é?»
Ele queria mesmo formar uma cidade da religião. «Às vezes, eu penso:
seria o caso de pessoas de fé e posição se reunirem, em algum apropriado lugar,
no meio dos gerais, para se viver só em altas rezas, fortíssimas, louvando a Deus
e pedindo glória do perdão do mundo. Todos vinham comparecendo, lá se
levantando enorme igreja, não havia mais crimes, nem ambição, e todo sofrimento
se espraiava em Deus, dado logo, até à hora de cada uma morte cantar.
Raciocinei isso com compadre meu Quelemém, e ele duvidou com a cabeça –
Riobaldo, a colheita é comum, mas o capinar é sozinho… – ciente me respondeu».
Este compadre é «homem de
mansa lei, coração tão branco e grosso de bom, que mesmo pessoa muito alegre ou
muito triste gosta de poder conversar com ele».
O que não entende é que
não haja Deus. «Refiro ao senhor: um outro doutor, doutor rapaz, que explorava
as pedras turmalinas no vale do Arassuaí, discorreu-me dizendo que a vida da
gente encarna e desencarna, por progresso próprio, mas que Deus não há.
Estremeço. Como não ter Deus?! Com Deus existindo, tudo dá esperança: sempre um
milagre é possível, o mundo se resolve. Mas, se não tem Deus, há-de a gente
perdidos no vai-vem, e a vida é burra. (…) Tendo Deus, é menos grave se descuidar
um pouquinho, pois, no fim dá certo. Mas se não tem Deus, então, a gente não
tem licença de coisa nenhuma! Porque existe dor. E a vida do homem está presa,
encantoada – erra rumo, dá em aleijões, como esses dos meninos sem pernas e
braços».
Com o tempo verifica que a
sonhada cidade da religião não era
boa ideia. «Neste mundo tem maus e bons – todo grau de pessoa. Mas, então,
todos são maus. Mas, mais então, todos serão bons? O correr da vida embrulha
tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois
desinquieta. O que ela quer da gente é coragem. O que Deus quer é ver a gente
aprendendo a ser capaz de ficar alegre a mais, no meio da alegria, e inda mais
alegre ainda no meio da tristeza!»
Não podendo continuar, dou
a palavra a Clarice Lispector: «Nunca vi coisa assim! É coisa mais linda dos
últimos tempos. Não sei até onde vai o poder inventivo dele, ultrapassa o
limite imaginável. Estou até tola. A linguagem dele, tão perfeita também de
entoação, é directamente entendida pela linguagem íntima da gente – e nesse
sentido, ele mais que inventou, ele descobriu, ou melhor, inventou a verdade».
3.
Neste Domingo da Santíssima Trindade, continuamos a verificar que viver é mesmo
muito perigoso. Dá medo não só pela catástrofe, em todos os domínios, que
representa o covid-19, mas sobretudo pelo mundo que nos é mostrado: a loucura
da violência racista, doméstica e do autoritarismo social e político. O homem
não é humano. O outro, na sua diferença irredutível, não é um irmão. Caso não
se deixe vergar aos caprichos de quem manda, é um potencial inimigo a abater.
Na corrente bíblica do
iaveísmo sapiencial, o ser humano é criatura à imagem de Deus. Na tradição do
Novo Testamento (NT), Deus não é solidão. Lemos, na Carta aos Romanos: Todos os que se deixam guiar
pelo Espírito são filhos de Deus. Vós não recebestes um Espírito
que vos escravize e volte a encher-vos de medo, mas recebestes um Espírito que
faz de vós filhos adoptivos. É por Ele que clamamos: Abbá, ó Pai! Esse mesmo Espírito dá testemunho ao
nosso espírito de que somos filhos de Deus. Ora, se somos filhos
de Deus, somos também herdeiros: herdeiros de Deus e co-herdeiros com Cristo[3].
A
palavra trindade não consta nas
narrativas do NT. Surgiu para sintetizar e inculturar estas narrativas, na filosofia
greco-romana e suas altas e enfadonhas subtilezas.
O
ser humano é a narrativa humana de Deus, a máxima unidade na máxima
diversidade. A unidade não absorve nem destrói a diversidade. Na Trindade
divina, as pessoas são todas diferentes, todas iguais, todas activas, todas
livres, sem subordinação de umas às outras e em perfeita comunhão. Nesse mundo,
não há dominadores e dominados.
A
Igreja, como sacramento desse modo de Deus ser Deus, pode ser uma hierarquia de
serviços, mas não uma hierarquia de pessoas que, actualmente, subordina as
mulheres à dominação masculina. Não deixa Deus ser Deus.
Sem
a procura, na sociedade e na Igreja, da máxima unidade na máxima diversidade,
será sempre muito perigoso viver.
07.
06. 2020
[1] João Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas, Companhia das
Letras, 2019
[2] 2 Ts 3, 10
[3]
Rm 8, 14-17; Gal 3, 26-28
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