1. Donald
Trump, não era obrigado, mas seguiu o costume de fazer o juramento de posse de
Presidente dos EUA sobre a Bíblia. Agora, acossado pelas manifestações contra a
morte do afro-americano, George Floyd, exibiu-a como autentificação divina da
sua política.
As Sociedades Bíblicas Unidas e os diferentes movimentos
bíblicos católicos não podem protestar contra o uso da obra mais traduzida e editada
no mundo. A Bíblia não é sempre inocente em relação à guerra, ao terror, à
violência.
É verdade que o movimento fundamentalista norte-americano
confessa que a Bíblia é inspirada pelo Espírito Santo, razão da inerrância das suas
escrituras. Servir-se dessa equívoca evocação, para cobertura da política nacional
e internacional de Donald Trump que destila ódio e violência, obriga a
questionar esse ambíguo biblismo.
É frequente a pergunta: não será o próprio Antigo Testamento
(AT), acolhido nas edições cristãs da Bíblia, que documenta as mais extremas e
cruéis práticas de ódio e violência, não apenas em nome de Deus, mas até por
ordem de Deus?
Não é legítimo responder com o recurso ao contexto histórico
para desculpar actuações que foram, são e serão sempre criminosas.
Comecemos pelo mais
elementar: de onde vem a palavra Bíblia?
Existia uma cidade fenícia, muito antiga, Biblos, cujas ruínas são visíveis, hoje, no Líbano. É sabido que os
fenícios inventaram um dos primeiros alfabetos com 22 signos. Desde o Século XI
a.C., Biblos era um importante lugar
de produção do papiro e tinha uma reputada escola de escribas. Não admira que
os seus escritos tenham usado o nome da cidade. A língua grega herdou a palavra
biblion para designar um escrito, um
livro. Em grego, o plural – livros – diz-se: ta biblia. Este plural usava-se, também, para designar uma
biblioteca. Alguns séculos, antes da nossa era, os judeus de cultura grega
usaram esta expressão, ta biblia,
para designar a colecção dos seus livros sagrados.
Os cristãos adoptaram o mesmo termo para estes livros que, para
eles, formam o AT. Só na Idade Média é que este plural grego foi transcrito em latim,
tal e qual, biblia, mas tornou-se um
feminino singular. O seu emprego designará, doravante, para os cristãos, o
conjunto dos livros do Antigo e do Novo Testamentos. Este feminino singular
resultou na palavra portuguesa Bíblia.
O aspecto “plural” desapareceu aparentemente na passagem do
grego para o latim, mas não alterou a realidade. A Bíblia não é um livro, mas a
“biblioteca” de um povo, formada por uma vasta colecção de livros de épocas muito
diferentes e de diversos géneros literários.
Ao apresentar-se encadernada como um só livro, aparenta uma
imaginária unidade e autonomia no seio da literatura mundial. Por isso mesmo, é
importantíssimo insistir: mesmo
encadernada num só volume, não é um livro, mas uma biblioteca de muitos
estilos, de muitas épocas, escrita ao longo de vários séculos. Ao ser
considerada, de modo incorrecto, como um ditado divino tudo se torna mais
enigmático para quem não renuncia a pensar, a interrogar e a interpretar aquele
vasto mundo[1].
2.
Na sua Autobiografia publicada em
1887, Charles Darwin conta como nasceram as suas dúvidas sobre a religião e
como chegou a perder a fé: «Dei-me conta de que no Antigo Testamento aparece um
Deus terrível, com sentimentos de um tirano vingativo; vi que a Bíblia não era
mais fiável do que os livros sagrados dos hindus, ou as crenças de qualquer
bárbaro».
Darwin
não foi o único a perder a fé com a leitura da Bíblia. Inúmeros cientistas,
filósofos, pensadores, catequistas e até simples cristãos sentiram-se
escandalizados perante este livro, onde se vê Deus a vingar-se, destruindo e
assassinando quem Lhe desobedece.
Não
faltou quem se desse ao trabalho de contar quantas pessoas, na Bíblia, aparecem
como eliminadas por Deus. E o número é arrepiante: 2.038.334 pessoas! Sem
incluir os mortos nos grandes extermínios como o dilúvio universal, a
destruição de Sodoma ou a matança dos primogénitos do Egipto, cujas cifras não
aparecem.
Parece
que, nesse tempo, o Deus da Bíblia gostava de matar os seus opositores sem o
menor escrúpulo, o que levou o inglês Derek Clayton a exclamar: «Se mais
cristãos lessem a Bíblia, haveria menos cristãos»[2].
Dissemos
que o AT é a biblioteca de um povo em todos os seus aspectos e dimensões. A sua
identidade mais saliente é a de ser um povo liberto por Deus da escravidão no
Egipto e por Ele conduzido para a terra prometida. Resultou numa aliança. Deus
é o aliado deste povo que escolheu e com o qual se comprometeu, mas que lhe
exige fidelidade a esta aliança. É uma teocracia política. Será interpretada
como devendo coincidir os interesses de Deus com os deste povo. As ambições
territoriais deste povo têm de ser defendidas por Deus, mesmo que isso implique
a destruição dos outros povos.
3.
A biblioteca do AT não é uma biblioteca de violência e de terror. Encerra as
obras mais fascinantes da literatura. Surge uma dificuldade. É tudo considerado
palavra de Deus. Muitas passagens parecem obra do diabo. Como fazer a
destrinça?
Frei
Francolino Gonçalves, investigador e professor da Escola Bíblica de Jerusalém,
desenvolveu uma investigação considerada por grandes especialistas como muito
inovadora, publicada nos Cadernos ISTA[3].
Desse
longo e complexo texto, deixo, aqui, apenas uma pequena referência que não
deturpa o essencial:
«O AT contém assim duas
representações diferentes de Iavé. Segundo uma, ele é o Deus criador que
abençoa todos os seres vivos; segundo a outra, ele é o Deus que está ligado a
Israel, o seu povo, a quem protege e salva.
Os
exegetas não prestaram a estas vozes discordantes a atenção que mereciam.
A esmagadora maioria parece nem as ter ouvido. Por isso, ficaram sem eco, não
tendo chegado ao conhecimento dos teólogos, dos pastores, nem, por maioria de
razão, do público cristão. As minhas pesquisas nesta matéria confirmaram, essencialmente,
o resultado dos estudos que referi e, além disso, levaram-me a propor uma hipótese de interpretação do conjunto
dos fenómenos religiosos do AT que é nova. A meu ver, o AT documenta a
existência de dois sistemas iaveístas diferentes: um fundamenta-se no mito da
criação e o outro na história da relação de Iavé com Israel. Simplificando,
poderia chamar-se iaveísmo cósmico ao primeiro e iaveísmo histórico ao segundo.
Contrariamente à opinião comum, a fé na criação não é um elemento recente, mas
constitui a vaga de fundo do universo religioso do AT»[4].
Jesus repudiou a violência
do AT: Ouvistes o que
foi dito: Amarás o teu próximo e
odiarás o teu inimigo. Eu, porém, digo-vos: Amai os
vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem[5]. Preferiu ser morto a matar. Voltarei a este assunto.
14. 06. 2020
[1]
Ver: Julio Trebolle Barrerra, Bíblia
Judaica e Bíblia Cristã: Introdução à História da Bíblia, Vozes, 2000;
Miguel Perez Fernández, Julio Trebolle Barrerra, José Manuel Sanchez Caro, História de la Bíblia, Trotta, 2006.
[2]
Cf. Ariel Álvarez Valdés, A Bíblia incita
à violência e à vingança, in Bíblica nº 388 (Maio-Junho 2020), p.99
[3]
Francolino J. Gonçalves, Iavé, Deus de
Justiça e de Bênção, Deus de amor e de Salvação, ISTA nº 22, ano XIV
(2009), 107-152
[4]
Op. Cit., p. 115. Os itálicos são da
minha responsabilidade.
[5]
Mt 5, 43-44
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