1. Podemos
chamar etiologias míticas às narrativas que tentam explicar a origem de certas crenças,
costumes, rituais, memórias, acontecimentos e monumentos que escapam à
evidência racional. A Torre de Babel, de que fala a Bíblia (Génesis 11, 1-9), situa-se
nesse universo mítico. As dificuldades que a multiplicidade das línguas nos
causa seria um castigo divino.
O melhor é começar por ler
essa célebre narrativa: «Em toda a Terra, havia somente uma língua e empregavam-se as mesmas
palavras. Emigrando do oriente, os homens encontraram uma
planície na terra de Chinear e nela se fixaram. Disseram uns
para os outros: vamos fazer tijolos e cozamo-los ao fogo. Utilizaram o tijolo
em vez da pedra e o betume serviu-lhes de argamassa. Depois
disseram: vamos construir uma cidade e uma torre, cujo cimo atinja os céus.
Assim, havemos de nos tornar famosos e evitamos que nos dispersemos por toda a
superfície da Terra».
Ficamos com a ideia de que Deus ficou assustado
com esta ousadia dos seres humanos que ambicionavam transformar-se em seus
rivais.
«O Senhor reagiu: Eles constituem apenas um povo
e falam uma única língua. Se principiaram desta maneira, coisa nenhuma os
impedirá, de futuro, em realizarem todos os seus projectos. Vamos,
pois, descer e confundir de tal modo a sua linguagem que não consigam
compreender-se uns aos outros.
«E o Senhor dispersou-os dali por toda a
superfície da Terra e suspenderam a construção da cidade. Por
isso, foi-lhe dado o nome de Babel, visto ter sido lá que o Senhor
confundiu a linguagem de todos os habitantes da Terra e foi também dali que o Senhor
os dispersou».
Este mito etiológico não vem
apenas na Bíblia. Esta recebe-o da cultura ambiente. Tem paralelos sumério e
assírio, greco-romano e outras tradições antigas[1].
Está colado à experiência humana muito dolorosa de querer comunicar com outros
seres humanos e não conseguir por causa de línguas diferentes.
Vendo bem, o que parece assustar
a Deus é a destruição da diversidade humana: não aceita uma só língua para
todos os povos. É uma apologia da diversidade e do apreço por todas as
diferenças culturais. A tendência para a uniformidade é imperialista,
totalitária, elimina a diferença em favor do mais forte, do mais poderoso.
Já me referi, várias vezes,
a um texto exemplar de J. P. Audet, um grande exegeta, no qual sustenta que, na
Bíblia, não existe o equivalente do mito de Prometeu tal como este vem
apresentado em Hesíodo e Ésquilo.
Nesse mito, os deuses
escondem aos seres humanos o segredo da vida feliz. Aquilo que os seres humanos
precisam para fazer a sua vida, por sua conta e risco, o fogo (ciências e
técnicas), tem de ser arrancado aos deuses contra a sua vontade, como o fez
Prometeu. Deuses e seres humanos são rivais. A felicidade dos deuses é a
desgraça dos seres humanos e a felicidade dos seres humanos é uma usurpação aos
deuses. Nada disto na Bíblia. Aí, a terra é dada ao homem e à mulher para que a
dominem e façam dela a sua morada.
A pastorícia, a agricultura,
a música, as técnicas, os negócios, as ciências e a sabedoria não são roubos a Deus.
São acontecimentos normalíssimos, embora não assim o trabalho escravizante,
fruto de um ser humano que se desorienta e desorienta a vida toda, que se perde
do seu irmão e perde o seu irmão[2].
2.
Estamos a celebrar a festa cristã do Pentecostes. Conheci muito bem uma leitura
que contrapunha radicalmente o mito de Babel ao Pentecostes cristão. Era só
este o defensor da diversidade. Na leitura que acabei de fazer, este contraste fica
muito atenuado.
O Pentecostes cristão
inscreve-se numa tradição judaica, numa festa agrícola, na qual, é celebrada a
entrega dos Dez Mandamentos no Monte Sinai (a Lei), 50 dias depois do
Êxodo.
Para S. Lucas, os Actos
dos Apóstolos são a primeira história da Igreja. É o próprio Lucas que o
conta.
«No meu
primeiro livro, ó Teófilo, narrei as obras e os ensinamentos de Jesus, desde o
princípio até ao dia em que, depois de ter dado, pelo Espírito Santo, as suas
instruções aos Apóstolos que escolhera, foi arrebatado ao Céu»[3].
«Quando
chegou o dia do Pentecostes, encontravam-se todos reunidos no mesmo
lugar. De repente, ressoou, vindo do céu, um som comparável ao de forte
rajada de vento, que encheu toda a casa onde eles se encontravam. Viram então
aparecer umas línguas, à maneira de fogo, que se iam dividindo, e poisou uma
sobre cada um deles.
«Ficaram
todos cheios do Espírito Santo e começaram a falar outras línguas, conforme o
Espírito lhes inspirava que se exprimissem. Ora, residiam em Jerusalém judeus
piedosos provenientes de todas as nações que há debaixo do céu. Ao ouvir
aquele ruído, a multidão reuniu-se e ficou estupefacta, pois cada um os
ouvia falar na sua própria língua. Atónitos e maravilhados, diziam: Mas
esses que estão a falar não são todos galileus? Que se passa então, para
que cada um de nós os oiça falar na nossa língua materna? (…) Ouvimo-los
anunciar, nas nossas línguas, as maravilhas de Deus!
«Estavam
todos assombrados e, sem saber o que pensar, diziam uns aos outros: Que
significa isto? Outros, por sua vez, diziam, troçando:
Estão cheios de vinho doce.
«De pé, com
os Onze, Pedro ergueu a voz e dirigiu-lhes então estas palavras: Homens da
Judeia e todos vós que residis em Jerusalém, ficai sabendo isto e prestai
atenção às minhas palavras. Não, estes homens não estão
embriagados como imaginais, pois, apenas vamos na terceira hora do dia. Mas tudo isto é a realização do que disse o profeta Joel: Nos últimos dias, diz o Senhor, derramarei o meu
Espírito sobre toda a criatura. Os vossos filhos e as vossas filhas hão-de
profetizar; os vossos jovens terão visões e os vossos velhos terão sonhos»[4].
Sem a subversão da festa
judaica do Pentecostes – da Lei do Sinai – não haveria a festa aberta a todos
os povos de todas as línguas e culturas. É o anúncio da única globalização
desejável, a do Espírito que tudo fecunda, sem nada apagar.
3. O
Evangelho de S. João, ao terminar, adverte: «Jesus realizou muitos outros
sinais na presença dos discípulos, que não estão escritos neste livro. Mas
estas coisas foram escritas para que acrediteis que Jesus é o Cristo, o filho
de Deus e, para que, acreditando, tenhais vida em nome dele».
Este Evangelho concentrou
tudo no dia de Páscoa: «Ao entardecer no mesmo dia, primeiro da semana, e
estando as portas trancadas onde estavam os discípulos devido ao medo dos
judeus, veio Jesus e pôs-se de pé no meio deles e diz-lhes: Paz para vós.
E dizendo isto, mostrou-lhes as mãos e o lado. Então os discípulos alegraram-se
ao verem o Senhor. Jesus falou-lhes de novo: Paz para vós. Tal como o
Pai me enviou, eu envio-vos a vós. E dizendo isto, soprou e diz-lhes: Recebei
o Espírito Santo».
O seu Pentecostes deve
tornar-se a missão da Igreja entre todos os povos, de todos os tempos. É o
sonho do universalismo cristão!
28 Maio 2023