1. Hoje, celebramos a Epifania
de Jesus Cristo, isto é, a celebração do universalismo cristão. É costume dizer
que toda a problemática em torno do Natal tem a marca do Ocidente litúrgico. A
Epifania é marcada pelo Oriente.
Há muitos anos descobri os Três Reis do Oriente – Gaspar,
Melchior e Baltazar – de Sophia de M.B. Andresen. Trata-se de uma multifacetada
teologia narrativa muito original. É um grande poema em prosa e um poema não
suporta nem dá explicações. Apresento apenas uma pequena passagem, só como
convite a uma nova leitura, perante as dimensões da crise actual, na Igreja e
na sociedade.
Os três reis têm inquietações muito diferentes, mas aqui,
vou fixar-me na figura de Baltazar.
Este, depois de ter observado tudo, decepcionado com as
consultas aos homens das ciências e da política, virou-se para a religião.
(…) Na manhã seguinte, dirigiu-se ao templo de todos os
deuses. E leu estas palavras gravadas na pedra do primeiro altar: «Eu sou o
deus dos poderosos e àqueles que me imploram concedo a força do domínio, eles
nunca serão vencidos e serão temidos como deuses».
Seguiu o rei para o segundo altar e leu: «Eu sou a deusa
da terra fértil e àqueles que me veneram concedo o vigor, a abundância e a
fecundidade e eles serão belos e felizes como deuses».
Encaminhou-se o rei para o terceiro altar e leu: «Eu sou
o deus da sabedoria e àqueles que me veneram concedo um espírito ágil e subtil,
a inteligência clara e a ciência dos números. Eles dominarão os ofícios e as
artes, eles se orgulharão como deuses das obras que criaram».
E tendo passado pelos três altares, Baltazar interrogou
os sacerdotes: – Dizei-me onde está o altar do deus que proteja os
humilhados e os oprimidos, para que eu o implore e adore?
Ao cabo de um longo silêncio, os sacerdotes responderam: –
Desse deus nada sabemos.
Naquela noite, o rei Baltazar, depois de a Lua ter
desaparecido atrás das montanhas, subiu ao cimo dos seus terraços e disse: –
Senhor, eu vi. Vi a carne do sofrimento, o rosto da humilhação, o olhar da
paciência. E como pode aquele que viu estas coisas não te ver? E como poderei
suportar o que vi se não te vir?
A
estrela ergueu-se muito devagar sobre o Céu, a Oriente. O seu movimento era
quase imperceptível. Parecia estar muito perto da terra. Deslizava em silêncio,
sem que nem uma folha se agitasse. Vinha desde sempre. Mostrava a
alegria, a alegria una, sem falha, o vestido sem costura da alegria, a
substância imortal da alegria.
E
Baltasar reconheceu-a logo, porque ela não podia ser de outra maneira[1].
2. Quando
se diz que o cristianismo aspira a ser universal, deve acrescentar-se que tem
de respeitar e promover a originalidade de cada povo, de cada cultura. Sem esse
cuidado, seria um falso universalismo, uma abstracção. Por isso, o cristianismo
só vive bem num permanente esforço de inculturação sem fraccionismo eclesial:
todos diferentes, mas em comunhão. A pergunta que os cristãos nunca podem
evitar, em todos os tempos e lugares, é a do rei Baltazar: onde
está o altar do deus que proteja os humilhados e os oprimidos, para que eu o
implore e adore? Esta pergunta deveria percorrer as instituições
católicas.
Diz-se que se corre o risco, neste momento, de novas
divisões na Igreja. Esses movimentos reconhecem as grandes e originais
dimensões do espírito reformista do Papa Francisco. O grande empreendimento
deste Papa é a promoção de uma Igreja sinodal que implica caminhar juntos na comunhão,
na participação e na missão.
Isto, ao nível de toda a cristandade, é um longo
acontecimento que nunca pode estar resolvido. É uma Igreja em processo de
mudança e quem não perceber isto não entende nada da originalidade da
intervenção do Papa Francisco.
É
ele próprio que acaba de nos incitar a «não ter medo da diversidade de carismas
na Igreja». Pelo contrário, devemos alegrar-nos por
vivenciar esta diversidade. Os cristãos precisam de compreender e viver o
dom da diversidade. Se formos guiados pelo Espírito Santo, a riqueza, a variedade,
a diversidade, nunca provocam conflito.
No mês que é marcado, no hemisfério norte, pela Semana de
Oração pela Unidade dos Cristãos – que este ano se celebra com o lema Amarás
o Senhor teu Deus… e ao teu próximo como a ti mesmo (Lucas 10, 27) – o Papa
deixa no vídeo (04.01.2024) um apelo para que, na diversidade, «a
comunidade cristã cresça como um só corpo, o corpo de Cristo».
E conclui: «O Espírito recorda-nos que, acima de tudo, somos
filhos amados de Deus. Todos iguais no amor de Deus e todos diferentes».
É um
construir contínuo da Igreja de muitas igrejas por fidelidade aos seus começos.
3. Nunca
se deve esquecer que o grande trabalho de Jesus, com os seus discípulos, foi
fazê-los compreender que tinham de renunciar ao poder de dominação e
converter-se ao poder de serviço.
São
muitas as passagens dos Evangelhos sinópticos que realçam o contraste entre o
poder mundano e o poder de servir: Sabeis que aqueles que vemos governar as nações as dominam e
os seus grandes as tiranizam. Entre vós não deverá ser assim. Pelo contrário, quem,
entre vós, quiser ser grande, seja o vosso servidor, e quem
quiser ser o primeiro, entre vós, seja o servo de todos. Pois
o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em
resgate por todos[2].
Sem procurar a resposta à pergunta do rei
Baltazar – onde está o altar do deus que proteja os
humilhados e os oprimidos – perdemo-nos da originalidade cristã de Deus, fonte de
alegria, e andaremos sempre à deriva.
07 Janeiro 2024
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