1. Pode parecer uma banalidade
dizer que o conhecimento do mapa mundial das guerras só interessa para descobrir
os caminhos possíveis da paz. O Papa Francisco, no seu discurso anual ao Corpo
Diplomático acreditado na Santa Sé, mostrou-nos, de forma documentadíssima, a
nossa tarefa urgente de desenvolver todo o género de iniciativas para encontrar
os caminhos da paz, num mundo semeado de guerras. Estas não são inevitáveis,
são um desafio à nossa imaginação. Quando temos pela frente um mapa tão
pormenorizado, embora não seja exaustivo, é avassalador. Pode gerar um
sentimento de impotência absoluta.
O Papa mostra, pelo contrário, que a paz é possível.
Exige uma mobilização geral, a partir de esforços locais e globais. Por isso, não
estamos dispensados de conhecer os interesses de quem faz e promove as monstruosidades
da guerra[1].
Não é um conhecimento inútil, pois é preciso tornar evidente, para todos, essas
monstruosidades.
O Papa Francisco não se cansa de repetir: quem faz a
guerra esquece a humanidade. Não parte do povo, não olha para a vida
concreta das pessoas, mas coloca acima de tudo interesses egoístas, de parte e
de poder. A guerra baseia-se na lógica diabólica e perversa das armas, que é
contraditória com a vontade de Deus. E, assim, vai contra as pessoas comuns que
desejam a paz; e que, em cada conflito, são as verdadeiras vítimas que pagam as
loucuras da guerra com a própria pele.
Estas loucuras já foram descritas pelo Padre António
Vieira (1608-1697): «É a guerra aquele monstro que se sustenta das fazendas, do
sangue, das vidas e, quanto mais come e consome, tanto menos se farta. É a
guerra aquela tempestade terrestre que leva os campos, as casas, as vilas, os castelos,
as cidades e, talvez num momento, sorve os reinos e monarquias inteiras. É a
guerra aquela calamidade composta de todas as calamidades em que não há mal
algum que se não padeça ou se não tema, nem bem que seja próprio e seguro – o
pai não tem seguro o filho; o rico não tem segura a fazenda; o pobre não tem
seguro o seu suor; o nobre não tem segura a honra; o eclesiástico não tem
segura a imunidade; os religiosos não têm segura a sua cela; e até Deus, nos
templos e nos sacrários, não está seguro»[2].
Como dizia Martin Luther King (1929-1968), o que me preocupa não é nem o grito
dos corruptos, dos violentos, dos desonestos, dos sem carácter, dos sem
ética... O que me preocupa é o silêncio dos bons.
2. É atribuída a António Guterres esta síntese: Não pode
haver paz duradoura sem solidariedade. Não há coesão social sem direitos
humanos. Não há justiça sem igualdade.
Como se diz na Encíclica Fratelli Tutti (2020), durante décadas, pareceu que o mundo
tinha aprendido com tantas guerras e fracassos e, lentamente, ia caminhando
para várias formas de integração. Por exemplo, avançou o sonho duma Europa
unida, capaz de reconhecer raízes comuns e regozijar-se com a diversidade que a
habita. Lembremos «a firme convicção dos Pais fundadores da União Europeia, que
desejavam um futuro assente na capacidade de trabalhar juntos para superar as
divisões e promover a paz e a comunhão entre todos os povos do
continente». E ganhou força também o desejo duma integração
latino-americana, e alguns passos começaram a ser dados. Noutros países e
regiões, houve tentativas de pacificação e reaproximações que foram
bem-sucedidas e outras que pareciam promissoras.
Mas
a história dá sinais de regressão. Reacendem-se conflitos anacrónicos que se
consideravam superados, ressurgem nacionalismos fechados, exacerbados,
ressentidos e agressivos. Em vários países, uma certa noção de unidade do povo
e da nação, penetrada por diferentes ideologias, cria novas formas de egoísmo e
de perda do sentido social mascaradas por uma suposta defesa dos interesses
nacionais. Isto lembra-nos que «cada geração deve fazer suas as lutas e as
conquistas das gerações anteriores e levá-las a metas ainda mais altas. É o
caminho.
O
bem, como aliás o amor, a justiça e a solidariedade não se alcançam duma vez para
sempre; hão de ser conquistados cada dia. Não é possível contentar-se com o que
já se obteve no passado nem instalar-se a gozá-lo, como se esta situação nos
levasse a ignorar que muitos dos nossos irmãos ainda sofrem situações de exploração
que nos interpelam a todos.
«Abrir-se
ao mundo» é uma expressão de que, hoje, se apropriaram a economia e as
finanças. Refere-se exclusivamente à abertura aos interesses estrangeiros ou à
liberdade dos poderes económicos para investir, sem entraves nem complicações, em
todos os países. Os conflitos locais e o desinteresse pelo bem comum são
instrumentalizados pela economia global para impor um modelo cultural único.
Esta cultura unifica o mundo, mas divide as pessoas e as nações, porque «a
sociedade cada vez mais globalizada torna-nos vizinhos, mas não nos faz
irmãos». Encontramo-nos mais sozinhos do que nunca neste mundo
massificado, que privilegia os interesses individuais e debilita a dimensão
comunitária da existência.
Em
contrapartida, aumentam os mercados, onde as pessoas desempenham funções de
consumidores ou de espectadores. O avanço deste globalismo favorece normalmente
a identidade dos mais fortes que se protegem a si mesmos, mas procura dissolver
as identidades das regiões mais frágeis e pobres, tornando-as mais vulneráveis
e dependentes. Desta forma, a política torna-se cada vez mais frágil perante os
poderes económicos transnacionais que aplicam o lema «divide e reinarás».
Pelo
mesmo motivo, favorece também uma perda do sentido da história que desagrega
ainda mais. Nota-se a penetração cultural duma espécie de «desconstrucionismo»,
em que a liberdade humana pretende construir tudo a partir do zero. De pé,
deixa apenas a necessidade de consumir sem limites e a acentuação de muitas
formas de individualismo sem conteúdo[3].
3. Antes de terminar esta crónica, é
importante referir que o Papa Francisco, no passado dia 10, recebeu os representantes
do DIALOP (Projecto de Diálogo Transversal). Trata-se de uma iniciativa nascida,
em 2014, entre socialistas e cristãos para uma ética social comum e uma
ecologia integral.
O
Papa salientou que é na imaginação que a inteligência, a experiência e a
memória histórica se encontram para criar, aventurar-se e arriscar novos
caminhos de paz. Recordou ainda que, ao longo dos séculos, foram os grandes
sonhos de liberdade e igualdade, de dignidade e fraternidade – reflexo do sonho
de Deus – que produziram avanços e progressos.
O
DIALOP exige coragem para romper moldes pré-fabricados e atenção aos mais débeis,
os que mais precisam de leis que os respeitem.
14
Janeiro 2024
[1] Cf.
Discurso do Papa francisco aos Membros do Corpo Diplomático acreditado junto da
Santa Sé para as felicitações de Ano Novo, 08.01.2024, www.vatican.va
[2] Sermão
histórico nos anos da Rainha D. Maria Francisca de Saboia, 1668
[3] Fratelli
Tutti, nº 10-13
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