segunda-feira, 12 de fevereiro de 2024

JESUS CRISTO, PARÁBOLA DE DEUS Frei Bento Domingues, O.P.

 

1. Teologia e literatura não são universos estranhos. Reconheço-me, sem dificuldade, no artigo que Alex Villas Boas escreveu sobre as relações entre teologia e literatura, a procura de Deus na procura do sentido humano. A literatura bíblica pode ser vista como um grande testemunho dessa procura e até como abertura de muitos itinerários.

Neste sentido, Jesus Cristo é a própria Theopoiésis, ou seja, poesia de Deus, pois é afectado pelo pathos divino e humano. As parábolas e as curas de Jesus são expressão do Mistério da Sua vida de comunhão com Deus e abertura de um caminho para essa comunhão libertadora[1].

Como escreveu José Augusto Mourão, O.P., enquanto não sabemos o caminho, cantemos já o dom de caminhar; se estamos juntos, não teremos medo, alguém no invisível nos espera. Plantemos flores à beira do abismo, há-de haver no deserto um lugar de água, alguém que nos chame pelo nome e nos acolha no termo da viagem.

2. Jesus de Nazaré subverteu a cultura da exclusão. A noção de puro e impuro ligava a religião, a doença e a cura. A grande peça litúrgica deste Domingo é um texto de S. Marcos constituído por um diálogo desafiante.

Um leproso veio ter com Jesus, caiu de joelhos e suplicou: Se quiseres, tens poder para me curar. Compadecido, Jesus estendeu a mão, tocou-o e disse: Quero, fica curado. Imediatamente a lepra o deixou e ficou curado. Logo o despediu, dizendo-lhe em tom severo: Livra-te de falar disto a alguém; vai, antes, mostrar-te ao sacerdote e oferece pela tua cura o que foi estabelecido por Moisés, a fim de lhes servir de testemunho. Ele, porém, assim que se retirou, começou a proclamar e a divulgar o sucedido, a ponto de Jesus não poder entrar abertamente numa cidade; ficava fora, em lugares despovoados. E de todas as partes iam ter com Ele[2].

O Novo Testamento (NT) foi buscar ao livro do Levítico, a classificação de puro e impuro, aplicada a animais e a seres humanos, resultado de alguma imperfeição ou doença que neles se possa encontrar. Santo, que quer dizer saudável, puro, verdadeiramente Santo, é só o três vezes Santo, Deus.

Existia uma ciência e uma técnica, no mundo judaico, para se saber quem estava afectado por alguma impureza e como se tratava essa situação. Se o sacerdote, examinando-o, observar que a inflamação da chaga, sobre a parte posterior ou anterior da cabeça, é branca-avermelhada, revestindo-se do aspecto da lepra sobre a pele do corpo, essa pessoa era considerada leprosa, era impura; o sacerdote declará-la-ia impura. E o leproso atingido por tal afecção deveria rasgar as roupas, desalinhar o cabelo, tapar-se até à boca e gritar: Impuro!... Impuro! Enquanto conservar a chaga, será impuro, viverá isolado e a sua residência será fora do acampamento[3].

Era o mundo classificado das doenças e das curas, mas o próprio do NT é a apresentação de Jesus como libertador. Era a passagem de um mundo ameaçado para a libertação humana e espiritual, resultado do inconformismo de Jesus com o reino da fatalidade.

O que Deus pode ou não fazer não é da nossa competência. Em qualquer dos casos, Deus convoca-nos, a todos, a participar na cura uns dos outros, como no caso do paralítico, que estava à beira da piscina (Jo 5, 1-17), precisando de alguém que o lançasse à piscina quando as águas se agitavam. Na saúde e na doença, estamos sempre dependentes uns dos outros.

3. A pior situação em que o ser humano se pode encontrar é a do isolamento, não tendo a quem recorrer, e é uma situação vastíssima, desde que o mundo é mundo. O próprio Deus declarou que não é conveniente que o homem esteja só (Gn 2, 18). Deus, que é amor, criou o ser humano para a comunhão, inscrevendo no seu íntimo a dimensão das relações. Assim, a nossa vida, plasmada à imagem da Trindade, é chamada a realizar-se plenamente no dinamismo das relações, da amizade e do amor mútuo. Fomos criados para estar juntos, não sozinhos. E precisamente porque este projecto de comunhão está inscrito tão profundamente no coração humano, a experiência do abandono e da solidão atemoriza-nos e olhamo-la como dolorosa, desumana. E isto agrava-se ainda mais no tempo da fragilidade, da incerteza e da insegurança, causadas muitas vezes pelo aparecimento de alguma doença grave, ou em situações de exclusão, como aconteceu no período da pandemia.

Ao mesmo tempo, diz o Papa, associo-me, pesaroso, à condição de sofrimento e solidão de quantos, por causa da guerra e suas trágicas consequências, se encontram sem apoio nem assistência: a guerra é a mais terrível das doenças sociais e as pessoas mais frágeis pagam-lhe o preço mais alto.

Contudo, é preciso assinalar que, mesmo nos países que gozam da paz e de maiores recursos, o tempo da velhice e da doença é vivido frequentemente na solidão e, por vezes, até no abandono. Esta triste realidade é consequência sobretudo da cultura do individualismo, que exalta a produção a todo o custo e cultiva o mito da eficiência, tornando-se indiferente, e até implacável, quando as pessoas já não têm as forças necessárias para lhe seguir o passo. Torna-se então cultura do descarte, na qual, as pessoas já não são vistas como um valor primário a respeitar e tutelar, especialmente se são pobres ou deficientes, se “ainda não servem”, como os nascituros, ou “já não servem”, como os idosos (Fratelli tutti, 18).

Esta lógica permeia também, infelizmente, certas opções políticas, que não conseguem colocar, no centro, a dignidade da pessoa humana com as suas carências e nem sempre proporcionam as estratégias e recursos necessários, para garantir a todo o ser humano o direito fundamental à saúde e o acesso aos cuidados médicos. Ao mesmo tempo, o abandono das pessoas frágeis e a sua solidão acabam favorecidos ainda pela redução dos cuidados médicos apenas aos serviços de saúde, sem serem sabiamente acompanhados por uma aliança terapêutica entre médico, paciente e familiar[4].

Não só neste Dia Mundial dos Doentes, mas sempre, os doentes, os frágeis, os pobres devem estar no coração de todos, todos, no centro das nossas solicitudes humanas e cuidados pastorais.

 

 

11 Fevereiro 2024



[1] Cf. Alex Villas Boas, Teologia e Literatura, in Cenáculo, Revista dos Alunos da Faculdade de Teologia – Braga, nº 222, pp. 51-61

[2] Mc 1, 40-45

[3] Cf. Lev 13, 1-46

[4] Cf. Mensagem do Papa para o Dia Mundial do doente, www.vatican.va

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