1. Teologia e literatura não são
universos estranhos. Reconheço-me, sem dificuldade, no artigo que Alex Villas
Boas escreveu sobre as relações entre teologia e literatura, a procura de Deus
na procura do sentido humano. A literatura bíblica pode ser vista como um grande
testemunho dessa procura e até como abertura de muitos itinerários.
Neste sentido, Jesus Cristo é a própria Theopoiésis,
ou seja, poesia de Deus, pois é afectado pelo pathos divino e humano. As
parábolas e as curas de Jesus são expressão do Mistério da Sua vida de comunhão
com Deus e abertura de um caminho para essa comunhão libertadora[1].
Como escreveu José Augusto Mourão, O.P., enquanto não
sabemos o caminho, cantemos já o dom de caminhar; se estamos juntos, não
teremos medo, alguém no invisível nos espera. Plantemos flores à beira do
abismo, há-de haver no deserto um lugar de água, alguém que nos chame pelo nome
e nos acolha no termo da viagem.
2. Jesus de Nazaré subverteu a
cultura da exclusão. A noção de puro e impuro ligava a religião,
a doença e a cura. A grande peça litúrgica deste Domingo é um texto de S.
Marcos constituído por um diálogo desafiante.
Um leproso
veio ter com Jesus, caiu de joelhos e suplicou: Se quiseres, tens poder para me
curar. Compadecido, Jesus estendeu a mão, tocou-o e disse: Quero, fica curado. Imediatamente
a lepra o deixou e ficou curado. Logo o despediu, dizendo-lhe em tom
severo: Livra-te de falar disto a alguém; vai, antes, mostrar-te ao
sacerdote e oferece pela tua cura o que foi estabelecido por Moisés, a fim de
lhes servir de testemunho. Ele, porém, assim que se retirou, começou a proclamar
e a divulgar o sucedido, a ponto de Jesus não poder entrar abertamente numa
cidade; ficava fora, em lugares despovoados. E de todas as partes iam ter com
Ele[2].
O Novo Testamento (NT) foi buscar ao livro do Levítico,
a classificação de puro e impuro, aplicada a animais e a seres
humanos, resultado de alguma imperfeição ou doença que neles se possa encontrar.
Santo, que quer dizer saudável, puro, verdadeiramente Santo, é só o três vezes
Santo, Deus.
Existia uma ciência e uma técnica, no mundo judaico, para
se saber quem estava afectado por alguma impureza e como se tratava essa
situação. Se o
sacerdote, examinando-o, observar que a inflamação da chaga, sobre a parte
posterior ou anterior da cabeça, é branca-avermelhada, revestindo-se do aspecto
da lepra sobre a pele do corpo, essa pessoa era considerada leprosa, era
impura; o sacerdote declará-la-ia impura. E o leproso atingido por tal
afecção deveria rasgar as roupas, desalinhar o cabelo, tapar-se até à boca e
gritar: Impuro!... Impuro! Enquanto conservar a chaga, será
impuro, viverá isolado e a sua residência será fora do acampamento[3].
Era o mundo
classificado das doenças e das curas, mas o próprio do NT é a apresentação de
Jesus como libertador. Era a passagem de um mundo ameaçado para a libertação
humana e espiritual, resultado do inconformismo de Jesus com o reino da
fatalidade.
O que Deus
pode ou não fazer não é da nossa competência. Em qualquer dos casos, Deus
convoca-nos, a todos, a participar na cura uns dos outros, como no caso do paralítico,
que estava à beira da piscina (Jo 5, 1-17), precisando de alguém que o lançasse
à piscina quando as águas se agitavam. Na saúde e na doença, estamos sempre
dependentes uns dos outros.
3. A pior situação em que o ser humano se pode
encontrar é a do isolamento, não tendo a quem recorrer, e é uma situação
vastíssima, desde que o mundo é mundo. O próprio Deus declarou que não é conveniente que o homem esteja só (Gn 2, 18). Deus, que é amor, criou o
ser humano para a comunhão, inscrevendo no seu íntimo a dimensão das relações.
Assim, a nossa vida, plasmada à imagem da Trindade, é chamada a realizar-se
plenamente no dinamismo das relações, da amizade e do amor mútuo. Fomos criados
para estar juntos, não sozinhos. E precisamente porque este projecto de
comunhão está inscrito tão profundamente no coração humano, a experiência do
abandono e da solidão atemoriza-nos e olhamo-la como dolorosa, desumana. E isto
agrava-se ainda mais no tempo da fragilidade, da incerteza e da insegurança,
causadas muitas vezes pelo aparecimento de alguma doença grave, ou em situações
de exclusão, como aconteceu no período da pandemia.
Ao mesmo
tempo, diz o Papa, associo-me, pesaroso, à condição de sofrimento e solidão de
quantos, por causa da guerra e suas trágicas consequências, se encontram sem
apoio nem assistência: a guerra é a mais terrível das doenças sociais e as
pessoas mais frágeis pagam-lhe o preço mais alto.
Contudo, é
preciso assinalar que, mesmo nos países que gozam da paz e de maiores recursos,
o tempo da velhice e da doença é vivido frequentemente na solidão e, por vezes,
até no abandono. Esta triste realidade é consequência sobretudo da cultura do individualismo,
que exalta a produção a todo o custo e cultiva o mito da eficiência,
tornando-se indiferente, e até implacável, quando as pessoas já não têm as
forças necessárias para lhe seguir o passo. Torna-se então cultura do descarte,
na qual, as pessoas já não são vistas como um valor primário a respeitar e
tutelar, especialmente se são pobres ou deficientes, se “ainda não servem”, como
os nascituros, ou “já não servem”, como os idosos (Fratelli tutti, 18).
Esta lógica
permeia também, infelizmente, certas opções políticas, que não conseguem
colocar, no centro, a dignidade da pessoa humana com as suas carências e nem
sempre proporcionam as estratégias e recursos necessários, para garantir a todo
o ser humano o direito fundamental à saúde e o acesso aos cuidados médicos. Ao
mesmo tempo, o abandono das pessoas frágeis e a sua solidão acabam favorecidos
ainda pela redução dos cuidados médicos apenas aos serviços de saúde, sem serem
sabiamente acompanhados por uma aliança terapêutica entre médico,
paciente e familiar[4].
Não só neste
Dia Mundial dos Doentes, mas sempre, os doentes, os frágeis, os pobres devem estar
no coração de todos, todos, no centro das nossas solicitudes humanas e cuidados
pastorais.
11 Fevereiro 2024
[1] Cf. Alex
Villas Boas, Teologia e Literatura, in Cenáculo, Revista dos
Alunos da Faculdade de Teologia – Braga, nº 222, pp. 51-61
[2] Mc 1,
40-45
[3] Cf. Lev
13, 1-46
[4] Cf.
Mensagem do Papa para o Dia Mundial do doente, www.vatican.va
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