sábado, 29 de junho de 2024

Immanuel Kant: O Homem e Deus Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia 29 Junho 2024

 Immanuel Kant: O Homem e Deus

Anselmo Borges

Padre e professor de Filosofia

29 Junho 2024

Neste tempo dominado por maquinarias de estupidificação, quando o que mais

falta é, por isso mesmo, pensar criticamente, não podia deixar passar o terceiro

centenário do seu nascimento sem uma brevíssima referência. Refiro-me a

Immanuel Kant, que nasceu no dia 22 de Abril de 1724 em Königsberg, antiga

Prússia, actualmente Kaliningrado, um enclave russo entre a Polónia e a Lituânia, e

que morreu nessa mesma cidade no dia 12 de Fevereiro de 1804. É lá, na catedral

de Kaliningrado, que se encontra uma lápide com a sua frase célebre: “Duas coisas

enchem a mente de uma admiração e um respeito sempre novos e crescentes

quanto mais frequentemente e com maior persistência delas se ocupa a reflexão: o

céu estrelado sobre mim e a lei moral em mim”.

Kant, um dos maiores filósofos de sempre, deixou um legado essencial: uma atitude

de pensamento crítico que vá ao essencial. “Sapere aude!” Ousa saber, ousa pensar,

atreve-te a saber, atreve-te a pensar! “Que é Iluminismo? O Iluminismo é a

libertação do ser humano da sua incapacidade culpada. A incapacidade significa a

impossibilidade de servir-se da sua inteligência sem a guia de outro. Esta

incapacidade é culpada porque a sua causa não reside na falta de inteligência mas

na falta de decisão e coragem para servir-se por si mesmo dela sem a tutela de

outro. Sapere aude! Tem a coragem de servir-te da tua própria razão!”

Em síntese, a obra de Kant vai ao encontro destas três perguntas essenciais: “Que

posso saber?”, “Que devo fazer?”, “O que é que me é permitido esperar?”

Na sequência do sua “revolução copernicana” quanto ao conhecimento, concluiu

que, escapando à experiência, Deus e a imortalidade não podem ser conhecidos.

Não são demonstráveis.

Como agir bem, moralmente? Há para isso um critério seguro? Este critério não

está em seguir os desejos ou inclinações pessoais, os hábitos de acção dos grupos

ou países. Esse critério também não se encontra na busca da felicidade. Para Kant,

esse critério consiste num “imperativo categórico”. Em que consiste? Se queremos

saber se uma acção é moral, deve-se sujeitar a máxima ou regra pela qual nos

guiamos a um teste de universalização. Assim, numa das suas formulações: “Age

como se a máxima da tua acção devesse ser erigida pela tua vontade em lei

universal de natureza”. Quando agimos, se queremos saber se estamos a agir

moralmente, perguntemos: o que aconteceria se todos aplicassem a regra ou

máxima. Um exemplo: a mentira. É moral mentir? Para sabê-lo, perguntemos: é

universalizável? O que sucederia se todos mentissem? É evidente que a própria

mentira se tornaria absurda, pois mentir só vale, isto é, só tem eficácia, no

pressuposto de que as pessoas confiam no que alguém lhes diz. Portanto, mentir é

imoral. Outro exemplo, este pela positiva: aliviar o sofrimento dos desgraçados.

Neste caso, os sofrimentos próprios da condição humana encontrariam sempre um

alívio. Aí está, pois, uma acção moral. Kant segue, portanto, na sua apreciação

moral, um critério racional em autonomia. Mas, uma vez que nem sempre é fácil

este critério da universalização, Kant propõe outra formulação do mesmo

imperativo categórico: “Age de tal modo que trates a humanidade tanto na tua

pessoa como na pessoa de todos os outros sempre como um fim, nunca como um

simples meio”. Cá está, pois: as coisas têm um preço, porque são meios, o Homem

não tem preço, mas dignidade, porque é fim.

Do dever moral enquanto imperativo categórico, seguem-se os chamados

postulados da razão prática.

Em primeiro lugar, a liberdade. Diz Kant: “Podes, porque deves”. Se deves, podes; é

pela lei moral que sabemos que somos livres; agir moralmente é afirmar a

liberdade, que não é arbítrio, e, por isso, educar tem de ser educar para a liberdade.

Neste sentido, há um célebre exercício mental na sua Crítica da razão prática, que

obriga a pensar. Suponhamos que alguém, sob pena de morte imediata, se vê

confrontado com a ordem de levantar um falso testemunho contra uma pessoa que

sabe ser inocente. Nessas circunstâncias e por muito grande que seja o seu amor à

vida, pensará que é possível resistir. “Talvez não se atreva a assegurar que assim

faria, no caso de isso realmente acontecer; mas não terá outro remédio senão

aceitar sem hesitações que tem essa possibilidade.” Existem as duas

possibilidades: resistir ou não. “Julga, portanto, que é capaz de fazer algo, pois é

consciente de que deve moralmente fazê-lo e, desse modo, descobre em si a

liberdade que, sem a lei moral, lhe teria passado despercebida.”

A esperança da felicidade, imortalidade e Deus. Não é critério da moralidade a

busca da felicidade. Mas quem cumpre o seu dever moral incondicional torna-se

digno de ser feliz. Este merecer ser feliz mostra-se no exemplo acabado de

apresentar. Suponhamos que a pessoa preferiu de facto ser morta a levantar um

falso testemunho contra o inocente. Casos destes acontecem, há muitos exemplos

históricos. Ora, a ligação entre o dever cumprido e a felicidade não se dá neste

mundo, pelo contrário, o cumprimento do dever implicou dar a vida. Por isso,

postula-se a imortalidade e exige-se moralmente que Deus exista.

Embora nunca tenha saído da sua cidade natal, tinha ideias cosmopolitas e é dele a

expressão Völkerbund (Liga de Povos) como organização internacional em ordem à

paz mundial, concretizada no século XX na Sociedade das Nações e na ONU.

P. S. Estimados leitores e leitoras, até Agosto!

ONDE ESTÁ O TEU TESOURO? Pe. Manuel João, MC

 ONDE ESTÁ O TEU TESOURO?

 

Ano A - 17o domingo do tempo comum
Mateus 13,44-52

 

Neste domingo concluímos a leitura do capítulo 13 do evangelho de Mateus, o terceiro discurso de Jesus, no qual ele apresenta o Reino de Deus através de sete parábolas. Hoje apresenta-nos as três últimas, contadas aos apóstolos: o tesouro escondido, o negociante de pérolas e a rede que apanha toda a espécie de peixes. As duas primeiras são semelhantes e falam-nos da alegria daqueles que descobriram o Reino. A terceira é semelhante à do trigo e do joio de domingo passado, ou seja, fala da coexistência do bem e do mal. 

 

1. QUEM são os buscadores de tesouros e pérolas

 

O reino dos Céus é semelhante a um tesouro escondido num campo. O homem que o encontrou tornou a escondê-lo e ficou tão contente que foi vender tudo quanto possuía e comprou aquele campo”.

As histórias de tesouros são sempre cativantes, tanto hoje como no tempo de Jesus. Numa terra muitas vezes palco de guerras, era comum esconder as riquezas quando o inimigo chegava, enterrando-as no campo ou no chão da casa antes de fugir, na esperança de as recuperar mais tarde, o que nem sempre acontecia. Ainda hoje acontece os arqueólogos encontrarem “tesouros” de moedas durante as escavações. Ora, este pobre agricultor da parábola é um dos felizardos que, por um golpe de sorte, encontra a grande oportunidade da sua vida e não a deixa escapar: cheio de alegria, vende todos os seus bens para comprar aquele campo! 

 

O reino dos Céus é semelhante a um negociante que procura pérolas preciosas. Ao encontrar uma de grande valor, foi vender tudo quanto possuía e comprou essa pérola”.

No Oriente, as pérolas eram consideradas o bem mais precioso, como os diamantes para nós. Eram o símbolo da beleza, daí que “Peniná”, “Pérola”, fosse também um nome dado às raparigas (ver 1 Samuel 1,2). O negociante da parábola andava à procura destas pérolas e, quando encontrou uma de grande valor, também ele não hesitou em vender todos os seus bens para a comprar.

Ambos, o pobre camponês e o rico comerciante, têm o mesmo comportamento: encontram, vão, vendem tudo e compram. Mas enquanto o camponês encontra o tesouro por um golpe de sorte, o comerciante encontra a pérola, talvez após uma longa busca. 

Nós somos esses buscadores de tesouros e pérolas, de riqueza e beleza, de perfeição e infinito. A nossa vida é um campo semeado de tesouros escondidos debaixo dos nossos pés, mas a lama impede-nos de os ver. A nossa vida é um bazar de pérolas, mas demasiado empoeiradas para perceber o seu esplendor. E acontece também que sacrificamos tudo, a vida e a alma, deslumbrados por um falso tesouro, para nos encontrarmos com um punhado de moscas nas mãos.

 

2. O QUE são o tesouro e a pérola?

 

O que é esse tesouro ou essa pérola? Para Salomão, é a Sabedoria (primeira leitura). Para o salmista, é a Lei, a Torah (Salmo 118). Para São Paulo, é a vocação cristã (segunda leitura). Para Jesus, é o Reino. Mas poderíamos refletir sobre as duas parábolas, alargando as suas perspectivas.

 

O tesouro é, antes de mais, Cristo. Por ele, os apóstolos renunciaram a tudo, e muitos outros o fizeram depois deles. Paulo considerava tudo como lixo em comparação com Cristo (Filipenses 3,8). Muitos cristãos estão prontos a dar a vida para não o perderem. Mas há também aqueles que não descobriram este tesouro nele, como o jovem rico que se afastou triste. Como Judas, que o vendeu por trinta moedas. Como muitos cristãos que, de facto, talvez nunca o tenham encontrado e por isso facilmente o trocam por uma 'quinquilharia' qualquer. 

Também nós somos o tesouro, a pérola que Cristo encontrou no campo ou no mercado do mundo. É por isso que Cristo nos resgatou “não a preço de coisas corruptíveis, como a prata e o ouro... mas com o seu precioso sangue” (1 Pedro 1,18-19).

Pérolas ou tesouros são também as pessoas que nos rodeiam, embora escondidos por detrás dos seus limites, defeitos e misérias. 

 

3. ONDE encontrar o tesouro?

 

Onde e como encontrar o tesouro ou a pérola? Não é preciso ir longe, atravessar mares e montanhas, subir aos céus ou descer às profundezas... (Deuteronómio 30,11-14). Mas deixem-me contar-vo-lo através duma história chassídica (o chassidismo é um movimento espiritual judaico): a história do rabino Eisik, filho do rabino Jekel de Cracóvia. 

 

Após anos e anos de dificuldades, que não tinham abalado a sua confiança em Deus, recebeu em sonho a ordem de ir a Praga procurar um tesouro debaixo da ponte que conduzia ao palácio real. Quando o sonho se repetiu pela terceira vez, Eisik pôs-se a caminho e chegou a Praga a pé. Mas a ponte era vigiada dia e noite por sentinelas e ele não teve coragem de escavar no local indicado. No entanto, regressou à ponte todas as manhãs, percorrendo-a até ao fim da tarde. Por fim, o capitão dos guardas, que tinha reparado nas suas idas e vindas, aproximou-se dele e perguntou-lhe amigavelmente se tinha perdido alguma coisa ou se estava à espera de alguém. Eisik contou-lhe o sonho que o tinha trazido do seu país distante. O capitão desatou a rir: “E tu, pobre coitado, vieste até aqui a pé por causa de um sonho? Ha, ha, ha! Estás bem arranjado se confias em sonhos! Então eu também para seguir um sonho que tive devia ter ido até Cracóvia, à casa de um judeu, um tal Eisik, filho de Jekel, para procurar um tesouro debaixo da sua lareira! Eisik, filho de Jekel, estás a brincar? Estou a ver-me a entrar e a vasculhar todas as casas de uma cidade onde metade dos judeus se chama Eisik e a outra metade Jekel!” E voltou a rir-se. Eisik despediu-se dele, voltou para a sua casa e desenterrou o tesouro escondido debaixo da sua lareira!
Há algo que não se pode encontrar em parte alguma do mundo e, no entanto, há um lugar onde se pode encontrar: lá onde nós nos encontramos !
(de Martin Buber, “O caminho do homem”)

P. Manuel João Pereira, comboniano
Castel d'Azzano (Verona) 28 de Julho de 2023

P. Manuel João Pereira Correia mccj
p.mjoao@gmail.com
https://comboni2000.org

quarta-feira, 26 de junho de 2024

Sem Deus, que futuro? Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia 22 Junho 2024

 Sem Deus, que futuro?

Anselmo Borges

Padre e professor de Filosofia

22 Junho 2024

Concretamente nestes tempos de globalização, torna-se mais claro que não haverá

paz entre as nações sem diálogo inter-religioso. Como não se cansou de repetir o

teólogo Hans Kung: “Não haverá paz entre as nações sem paz entre as religiões.

Não haverá paz entre as religiões sem diálogo entre as religiões. Não haverá

diálogo entre as religiões sem critérios éticos globais. Não haverá sobrevivência do

nosso globo sem um ethos global, um ethos mundial.”

O diálogo inter-religioso é mais do que simples tolerância religiosa, pois é

exigência do próprio Absoluto a que todas as religiões estão referidas. Precisamos

de todas as religiões para tentar dizer melhor, embora sempre na gaguez quase

muda, o Mistério que sempre transcenderá o que dele possamos pensar e dizer. As

religiões estão referidas ao Absoluto, mas não são o Absoluto. Neste sentido, o

místico diria: Deus é “nada” de todas as religiões. Mestre Eckhart pedia a Deus que

o libertasse de “Deus”, isto é, dos seus conceitos, imagens e representações de

Deus.

Deste diálogo fazem parte também os ateus, não os ateus vulgares, mas os ateus

que sabem o que isso quer dizer, porque são eles quem constantemente pode

colocar, tem colocado e coloca os crentes de sobreaviso quanto ao perigo da

superstição, da idolatria e da desumanidade que as religiões muitas vezes

transportaram e transportam consigo.

Quando se pensa na coragem heróica necessária para, em tempos de hegemonia

religiosa confessional e sabendo que se corria o risco da prisão, da morte no

cadafalso e da “certeza” do inferno, ousar, em nome da dignidade humana, do

respeito para com Deus, das exigências mínimas da razão, lutar contra a

superstição e contra o ridículo clerical-eclesiástico, surge-nos do mais íntimo e

fundo de nós o sentimento de veneração e de reconhecimento de “santidade” em

relação a muitos daqueles que, a maior parte das vezes em sentido pejorativo,

ficaram na história como críticos da religião e até ateus. Esses não são santos de

nenhuma igreja, mas são com certeza “santos” da Humanidade.

Impressiona que hoje o cristianismo, que é uma fonte de liberdade e de libertação -

estou convicto de que é a maior na história da Humanidade -, para muitos já não

exerça fascínio. Surpreende que, frente a Deus, enquanto o Infinito é a verdade do

finito, grande número de homens e mulheres se mantenham indiferentes ou até O

recusem pura e simplesmente. Há múltiplas razões explicativas desta indiferença e

recusa. Uma delas, que não será a menor, prende-se com a imagem de Deus

transmitida pelos crentes. Muitas vezes o Deus que aparece é um Deus menor,

triste, invejoso, impeditivo da liberdade, da autonomia, do novo, que envenena o

amor, a alegria e a criação. Depois, os crentes teriam de cindir a vida: a vida

propriamente dita e uns enclaves de beatice. Não se caminha livre, erguido, inteiro,

autónomo, solidário, na busca, correndo riscos. Como homens e mulheres

humanos, justos, criadores. Perante uma imagem de Deus que humilha e

atemoriza, ergue-se então, como escreveu o filósofo Carlos Díaz, a tentação de

“matar Deus com medo que Deus me mate a mim”.

Hoje, a questão essencial é que se corre o risco de já nem sequer se colocar a

questão de Deus, nem sequer como questão. Ora, não é o que já está a acontecer

nesta nossa sociedade de imediatismo disperso, de hiperactividade, num tempo

descontinuado?... Como escreveu Byung-Chul Han no seu recente livro Vita

Contemplativa referindo-se a esta sociedade: “A actual crise religiosa não se pode

simplesmente atribuir ao facto de termos perdido toda a fé em Deus ou

determinadas crenças terem passado a inspirar-nos desconfiança. A um nível mais

profundo, esta crise indica que estamos a perder cada vez mais capacidade

contemplativa. A crescente compulsão para produzir e comunicar dificulta a

permanência no contemplativo. A religião requer uma atenção especial.

Malebranche refere-se à atenção como a oração natural da alma. Hoje, a alma já

não ora. Pelo contrário, produz-se. É precisamente à sua hiperactividade que se

deve a perda da experiência religiosa. A crise religiosa é uma crise de atenção.”

Espíritos eminentes preveniram para os perigos, sendo urgente preparar-se para o

pior. Václav Havel, o grande dramaturgo e político, pouco tempo antes de morrer

surpreendeu muitos ao declarar que “estamos a viver na primeira civilização

global” e “também vivemos na primeira civilização ateia, numa civilização que

perdeu a ligação com o infinito e a eternidade”, temendo, também por isso, que

caminhe para a catástrofe. Karl Rahner, talvez o maior teólogo católico do século

XX - tive o privilégio de tê-lo como professor -, perguntava: “O que aconteceria se a

simples palavra ‘Deus’ deixasse de existir?” E respondia: “A morte absoluta da

palavra ‘Deus’, uma morte que eliminasse até o seu passado, seria o sinal, já não

ouvido por ninguém, de que o Homem morreu.” Neste domínio, o perigo maior

provém de a questão de Deus já não ser sequer questão. Como escreveu o

historiador Georges Minois, o mundo parece encontrar-se hoje perante um facto

decisivo e mesmo único: se, independentemente da sua resposta positiva ou

negativa, o Homem já não vir pura e simplesmente necessidade de colocar a

questão de Deus, isso significa que, pela primeira vez na sua história, a

Humanidade sucumbe à imediatidade, a uma visão fragmentária do aqui e agora e

“abdica da sua procura de sentido”.

segunda-feira, 24 de junho de 2024

NASCEU O RISO, NASCEU CRISTO Frei Bento Domingues, O.P. 23 Junho 2024

 

NASCEU O RISO, NASCEU CRISTO

Frei Bento Domingues, O.P.

23 Junho 2024

 

1. Desde há muito tempo, que ouço dizer que a Igreja Católica foi a mãe da tristeza e desenvolveu uma moral de tristes para tristes. E não só. Passou a transferir-se esse comportamento para o próprio Jesus que chorou e não riu. Ora, isso não tem sentido nenhum. Se era um ser humano, o mais normal é que tivesse tido muitas situações que o fizeram rir. São célebres e numerosos os jantares em que participava. O Evangelho de S. Lucas registou: «veio João Baptista que não come pão e não bebe vinho, e dizeis: o demónio está nele! Veio o Filho do Homem que come e bebe e dizeis; eis aí um glutão e beberrão, amigo de publicanos e pecadores»[1]. Em S. Marcos, os escribas diziam, Belzebu está nele. É pelo príncipe dos demónios que ele expulsa os demónios[2].

Isidro Lamelas, OFM, especialista em Teologia Patrística, retomou a história do riso, com um belo título, Felizes os que choram… de alegria. Cristianismo e humor[3].

Concede que a Igreja Católica e os seus pregadores não conviveram bem com o riso e o humor. Fez um percurso entre os filósofos da Antiguidade até aos nossos tempos.

«Entre os antigos, que desde cedo se ocuparam do riso como assunto sério perfilaram-se duas atitudes ou correntes face ao humor: teria razão Demócrito, que passou a vida a rir, ou Heraclito, que preferiu sempre as lágrimas. Estes dois nomes tornaram-se os protótipos lendários de duas visões e atitudes contrapostas perante o mundo e a vida: Heraclito, “o obscuro”, solidário dos homens e complacente com este “vale de lágrimas” que é o mundo; Demócrito, indiferente aos males que afligem o mundo, face ao qual mantém a distância que lhe permite rir de tudo e de todos.

«À vetustíssima pergunta, “rir ou chorar?”, os autores cristãos foram dando uma resposta em continuidade com os moralistas antepassados, preferindo quase sempre a via de Heraclito. Herdeiro desta moralização do riso, o Pe. António Vieira dedica um dos seus sermões em defesa das “Lágrimas de Heraclito, contra o riso de Demócrito”».

Maria Rueff, no Encontro do Papa com os humoristas, ofereceu-lhe um sermão de Natal de Santo António (século XIII) e que deixo, aqui, apenas uma passagem: «O Anjo disse aos pastores: Anuncio-vos uma grande alegria. Nasceu-vos hoje um Salvador. Com isto está de acordo o que se diz no Génesis: Nasceu Isaac. E disse Sara: Deus me deu riso, e todo aquele que ouvir rirá juntamente comigo. Sara interpreta-se princesa ou carvão. É figura da Virgem gloriosa, princesa e nossa Rainha, inflamada pelo Espírito Santo, como se fora um carvão. Deus fê-la hoje riso, porque dela nasceu o nosso riso: “Anuncio-vos uma grande alegria, porque nasceu o riso, nasceu Cristo.” Nós ouvimos hoje isto do anjo: Todo aquele que ouvir rirá juntamente comigo.

«Riamo-nos, portanto, e alegremo-nos juntamente com a Virgem Santíssima, porque Deus nos deu o riso, isto é, a causa de nos rirmos e de nos alegrarmos com ele e nela: Nasceu-vos hoje um Salvador».

2. Sou testemunha do comportamento ambíguo em algumas aldeias do Norte. Conheci um pároco que aceitou, sem entusiasmo, a seguinte orientação: se queres ser da juventude da Acção Católica, e deves ser, não podes dançar. Era de um concelho em que, ao fim dos trabalhos agrícolas, dançavam e cantavam, isto sobretudo a partir do mês de Maio. Ouvi um padre, aliás muito piedoso, gritar uma das maiores barbaridades, através do alto-falante: preferia ver-vos em sangue, no hospital de S. Marcos, do que ver-vos a dançar.

Por outro lado, também conheci uma freguesia em que o senhor abade, nas frequentes novenas, convidava sempre dois pregadores. Um para a meditação da manhã, muito sisudo, e outro para a noite, muito divertido, fazendo rir com histórias fantásticas e exemplares, para preparar um bom sono reparador.

Para tentar encerrar de vez esse capítulo, como já disse na crónica anterior, o Papa convocou os humoristas com esta mensagem: Tenho grande estima pelos artistas que se expressam com a linguagem da comédia, do humor, da ironia. Quanta sabedoria há aí! De todos os profissionais que trabalham na televisão, no cinema, no teatro, nos media impressos, com músicas, nas redes sociais, vós estais entre os mais amados, procurados e aplaudidos. Certamente porque sois bons, mas há também outro motivo: cultivais o dom de fazer rir.

3. Segundo a Voz Portucalense (VP), o P. Sérgio Leal, que participou na Assembleia Mundial Párocos pelo Sínodo (29/04-02/05 2024), disse que «alguns sacerdotes revelaram que as principais resistências ao Sínodo vêm de padres e bispos». Assinalou, porém, que o exercício sinodal é imprescindível para a renovação eclesial, isto é, caminhar juntos na missão de evangelizar[4].

No entanto, o Papa não perdeu a esperança de que os padres e os bispos vão descobrindo, a ritmos diferentes, o caminho da preparação do Sínodo 2021-2024[5]. E declarou: «De tão óbvio que é, quase parece banal afirmá-lo, mas isso não o torna menos verdadeiro: a Igreja não poderia caminhar sem o vosso empenho e serviço. Por isso quero começar por vos exprimir gratidão e estima pelo trabalho generoso que diariamente realizais, semeando o Evangelho nos vários tipos de terreno.

«Como se pode verificar nestes dias de partilha, as paróquias, onde realizais o vosso ministério, encontram-se em contextos muito diversos: desde paróquias situadas nas periferias das grandes cidades – conheci-as por experiência directa em Buenos Aires – até paróquias vastas como províncias nas regiões menos densamente povoadas; desde as localizadas nos centros urbanos de muitos países europeus, onde antigas basílicas acolhem comunidades cada vez mais pequenas e envelhecidas, até àquelas onde se celebra debaixo duma grande árvore, misturando-se o canto dos pássaros com as vozes de tantas crianças.

«Os párocos conhecem tudo isto muito bem… Conhecem de perto a vida do povo de Deus, as suas fadigas e alegrias, as suas carências e riquezas. É por isso que uma Igreja sinodal tem necessidade dos seus párocos: sem eles, nunca poderemos aprender a caminhar juntos, nunca poderemos entrar naquele caminho da sinodalidade que é precisamente o caminho que Deus espera da Igreja do terceiro milénio»[6].

A questão da Esperança é a questão do sentido da vida. Que será de mim? Qual é a meta da viagem? Qual é o destino do mundo?  Se o caminho da vida não tem sentido, se não há nada no princípio e no fim, então perguntamo-nos por que deveríamos caminhar. Daqui nasce o desespero do ser humano, a sensação da inutilidade de tudo. E muitos poderiam revoltar-se: esforcei-me por ser virtuoso, prudente, justo, forte, temperante. Fui também um homem ou uma mulher de fé... De que serviu o meu combate, se tudo acaba aqui? Se faltar a esperança, todas as outras virtudes correm o risco de se desmoronar e de acabar em cinzas[7].

 



[1] Lc 7, 33-36; 5, 29-30 e paralelos

[2] Cf. Mc 3, 22

[3] Cf. 7Margens, 13.06.2024

[4] Cf. Rui Saraiva, Voz Portucalense, 06.06.2024, p.8

[5] Ler o belo texto do Papa Francisco, Bula de Proclamação do Jubileu Ordinário do Ano 2025, «Spes non confundit – a esperança não engana», 09 Maio 2024

[6] Cf. Carta do Papa Francisco aos Párocos, 02. Maio. 2024, www.vatican.va

[7] Cf. Audiência do dia 8 de Maio 2024, www.vatican.va

A nossa vida entre duas margens - Pe. Manuel João, MC

 A nossa vida entre duas margens

Ano B – Tempo Comum – 12o domingo 
Marcos 4,35-41: “Passemos à outra margem!”

No domingo passado, ouvimos duas breves parábolas tomadas do quarto capítulo do Evangelho de Marcos, dedicado às parábolas. Hoje, o Evangelho apresenta-nos o episódio da tempestade acalmada, que conclui o capítulo. Este relato de São Marcos é de uma grande riqueza simbólica que pode escapar -nos se o lermos apenas como mais um dos muitos milagres realizados por Jesus.

Comecemos pelo convite de Jesus: “Passemos à outra margem”. Este convite pode ser uma chave de leitura da nossa vida humana e cristã. Nós passamos de margem em margem, até alcançar a margem eterna. Gostaria de mencionar três dessas “passagens” como um estímulo para discernir quais margens nos aguardam hoje.

Jesus disse aos seus discípulos: Passemos à outra margem do lago”
Da nossa margem para a outra margem!

A passagem a que Jesus se refere, no Evangelho de hoje, é muito específica. Trata-se de deixar a margem familiar do Israel crente para ir em direção à margem dos povos pagãos. É a passagem para a missão da igreja. Esta passagem nunca foi fácil e tranquila. Passar para “a outra margem” implicou enfrentar um mar de obstáculos, perseguições, preconceitos, riscos e incertezas.

Um exemplo emblemático é o caso de Paulo e dos seus companheiros em missão, convidados a passar da margem oriental para a Europa: “Durante a noite, Paulo teve uma visão: era um macedônio que o suplicava: Vem para a Macedónia e ajuda-nos! Depois que teve essa visão, procuramos imediatamente partir para a Macedónia, concluindo que Deus nos havia chamado para anunciar-lhes o Evangelho.” (Atos dos Apóstolos 16,9-10).

O convite de Jesus, no entanto, é uma metáfora da vida e da nossa existência. A vida exige de nós uma grande flexibilidade. Não se cresce sem passagens. Às vezes, essas passagens ocorrem naturalmente, sem traumas. Outras vezes, são dolorosas e requerem a travessia de um mar tempestuoso, na escuridão da noite e com ventos contrários, correndo o risco de naufragar. A vida exige de nós uma grande disponibilidade – mental, psíquica e espiritual – para a mudança. Muitas vezes resistimos, preferimos permanecer no “aquém” conhecido e tranquilo, em vez de ir em direção ao “além” incerto e desconhecido. Mas quem pára está perdido, ou até mesmo morto, como costumamos dizer.

A vida não gosta de imobilismo, seja na vida natural ou na vida de fé. Às vezes, enfrentar o desafio da mudança é-nos imposto pela própria vida: um luto, uma doença, uma crise matrimonial, uma relação rompida... É preciso coragem para enfrentar certas situações dramáticas e encontrar um novo equilíbrio. Outras vezes, é o próprio Senhor que nos convida a sair da nossa mediocridade, a ir ao encontro do “outro”, a acolher o pobre e o estrangeiro, a abrir-nos para a vida, a assumir um novo compromisso...

Perguntemo-nos: quais são as passagens que a minha vida me está a pedir? e como estou eu a enfrentá-las? Que travessias o Senhor me convida a fazer? Por acaso, estou a tentar evitá-las?

Mestre, não Te importas que pereçamos?”:
Da margem da dúvida à da confiança!

Nestas travessias, muitas vezes, temos de enfrentar tempestades. Então, no meio da tormenta, somos assaltados pela dúvida: é realmente verdade que o Senhor está comigo, está connosco? Esta sempre foi a Grande Tentação: “O Senhor está no meio de nós, sim ou não?” (Êxodo 17,7). Se há algo que o Senhor não suporta, é justamente isso: duvidar da sua Presença. Porque isso significa duvidar da sua essência: Emanuel, Deus connosco (Salmo 94 e a carta aos Hebreus, cap. 4). Esta tentação pode ocorrer, tanto a nível pessoal, especialmente em alguns momentos dramáticos da existência, como a nível social e eclesial, neste nosso tempo de mudanças;  poemos ser levados a pensar que não há futuro para esta sociedade ou que a barca da igreja está prestes a afundar.

Esta dúvida nunca nos abandonará definitivamente. Alguns salmos confortam-nos porque dão voz e expressão a essa nossa dúvida, que talvez, por vergonha, teríamos preferido calar: “Desperta! Por que dormes, Senhor? Levanta-te!... Por que escondes o teu rosto?... Levanta-te, vem em nosso auxílio!” (Salmo 44). Sim, muitas vezes temos a impressão de que ele está a dormir. Talvez ele durma porque confia em nós! Na verdade, ele confia-nos a continuação da sua missão. Este sono de Cristo, além disso, é uma alusão pós-pascal à sua morte e ao seu “afastamento” após a ressurreição, quando o furacão da perseguição se voltará contra os cristãos, ameaçando naufragar o frágil barco de Pedro. O sono de Jesus, no entanto, não é como o do profeta Jonas que “descendo ao porão do navio, deitou-se e dormia profundamente” (Jonas 1,5), alheio à angústia de seus companheiros de viagem que enfrentavam a tempestade. O sono de Jesus é o sono da confiança do Salmista: “Em paz me deito e logo adormeço, porque só tu, Senhor, me fazes habitar em segurança.” (Salmo 4,9). Jesus, além disso, tem o coração do amante: “Eu durmo, mas o meu coração vigia” (Cântico dos Cânticos 5,2). Ele, Jesus, dorme na popa, ou seja, no leme, mas seu coração vigia pelos seus companheiros de viagem.

Não nos iludamos. Toda a nossa jornada de fé será uma passagem permanente da dúvida à confiança, até alcançar a margem da serenidade do abandono filial.

Porque estais tão assustados? Ainda não tendes fé?”
Da margem da incredulidade à da fé!

A incredulidade deixa Deus fora do barco. Conta-se apenas com as próprias forças. Às vezes, nem contamos com os outros porque “quem faz por si, faz por três!”, diz o provérbio. Trata-se de uma lógica prometeica, voluntarista e individualista da vida. Isso pode acontecer também connosco, que acreditamos. Pensamos estar a navegar no barco de Cristo, mas, na verdade, embarcámos noutro barco, o do materialismo ou do espírito mundano, do poder ou do bem-estar. No barco de Cristo, prevalece a lógica do risco, do dar a vida, enquanto no barco do mundo predomina a lei do “salve-se quem puder!”.

Perguntemo-nos, então, se estamos no barco certo quando enfrentamos certas passagens ou travessias decisivas da nossa existência. Uma coisa é viajar com Jesus, mesmo que pareça estar a dormir, e outra é tê-lo esquecido na margem. Esta é a tentação de prescindir da fé ao enfrentar os problemas concretos da vida. Pior ainda se domesticamos um Jesus à nossa medida! Cristo deve ser tomado “como ele é”: “Levaram-no consigo, assim como estava, no barco”. E “assim como ele é” sempre nos surpreenderá: “Quem é este homem, que até o vento e o mar lhe obedecem?”.

P. Manuel João Pereira Correia mccj 
Verona, 20 de junho de 2024

P. Manuel João Pereira Correia mccj
p.mjoao@gmail.com

 

domingo, 16 de junho de 2024

O cómico e o riso no Vaticano Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia 15 Junho 2024

 O cómico e o riso no Vaticano

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

15 Junho 2024

1. Este texto foi escrito antes da realização de um acontecimento que julgo muito
significativo e que teria lugar no Vaticano no dia de ontem: o encontro do Papa Francisco
com mais de 100 humoristas de todo o mundo, entre eles Joana Marques, Maria Rueff e
Ricardo Araújo Pereira.

Um encontro organizado pelo Dicastério para a Cultura e a Educação e pelo Dicastério da
Comunicação. O seu objectivo: “estabelecer um diálogo entre a Igreja Católica e os
humoristas”. “Francisco reconhece o grande impacto que a arte da comédia tem no mundo
da cultura contemporânea. Através do talento humorístico e do valor unificador do riso nos
dias de hoje, são oferecidas reflexões únicas sobre a condição humana e a situação histórica.
Além disso, a arte da comédia pode contribuir para um mundo mais empático e solidário”,
referia o comunicado do Vaticano, acrescentando que “o encontro entre Francisco e os
actores cómicos do mundo pretende celebrar a beleza da diversidade humana e promover
uma mensagem de paz, amor e solidariedade, e promete ser um momento significativo de
diálogo intercultural de partilha de alegria e esperança.”

2. Estando a escrever antes do acontecimento, só posso esperar que assim seja. E, sobre o
tema, deixo aí algumas reflexões, já por vezes aqui expandidas.

A Igreja oficial nunca se deu muito bem com o humor e o riso. Por exemplo, ainda vivi
tempos nos quais durante o Carnaval, nos seminários, havia a chamada “Exposição do
Santíssimo Sacramento” e durante o dia e a noite rezava-se pelos pecadores e fazia-se
penitência em reparação pelos pecados daqueles dias. Sou sincero: nunca percebi em que
diferiam os pecados do Carnaval dos pecados dos outros dias.

Até se generalizou a ideia de que Jesus nunca se riu. Na verdade, de Jesus diz-nos o
Evangelho que chorou: chorou pela morte do seu amigo Lázaro e Jerusalém... Não se diz que
riu. Mas já Santo Tomás de Aquino observou que é evidente que Jesus riu. A prova: Jesus é
homem e rir é característica essencial, distintiva, do ser humano. Jesus participou em festas
de casamento e alguém imagina uma festa de casamento sem risos? Uma boa piada pode
estabelecer pontes, o riso é cura. Lá está Kant: para aliviar as agruras da vida, o Céu deu-nos
três coisas: “a esperança, o sono e o riso”.

Digo: ai da Igreja e dos crentes, ai das instituições, sem a crítica por vezes mordaz, que pode
ajudar a curar. Só nas ditaduras é que não se pode fazer humor nem rir dos poderes
instituídos. Ai de cada uma e cada um de nós, se não souber rir-se de si mesmo, de si
mesma, das suas manias e disparates… O que não se pode não se deveria é cair no riso
alarve, na piada boçal e ofensiva, que apenas significam falta de inteligência. Ah! o riso
também ajuda a curar a vaidade oca, e ele há tanta, tanta vaidade oca: “Mesmo no mais alto
trono do mundo, está-se sentado sobre o cu”, escreveu Montaigne.
Na Idade Média, realizava-se a chamada Festa dos Loucos, uma crítica brutal ao poder
eclesiástico. Elegia-se, entre os subdiáconos, um senhor da festa, designado “Bispo”. Esse
subdiácono, o grau mais baixo da hierarquia, era vestido de Bispo, colocado em cima de um
burro, e entrava na igreja com a face voltada para a cauda, de costas para o altar. Em certos
momentos, o celebrante e o povo zurravam. Na entrega simbólica do “báculo” episcopal
entoava-se o Magnificat o hino de louvor que o Evangelho coloca na boca de Maria
naquele passo: “Deus derrubou os poderosos e exaltou os humildes.” Sobre a Festa dos
Loucos pronunciou-se a Faculdade de Teologia de Paris em 1444, justificando-a: “Os nossos
eminentes antepassados permitiram esta festa. Porque haveria ela de ser-nos interdita?”
Neste descalabro burlesco, dever-se-ia ver, no limite, a urgência de não confundir o Sagrado
em si mesmo com as mais variadas formas idolátricas com que tantas vezes os crentes se
lhe dirigem.

A propósito da força crítica da piada e da caricatura, fica aí esta sobre o Vaticano e todo
aquele luxo, que blasfema do Evangelho de Jesus, no fausto de uma procissão com cardeais,
arcebispos, bispos, monsenhores, com mitras, tricórnios, alguns vestidos de púrpura…
Aconteceu que São Pedro veio à janela do Céu e viu aquilo. Estarrecido, chamou Jesus, que
olhou e apenas disse: “E pensarmos nós, Pedro, que começámos aquilo, entrando de burro
em Jerusalém onde fui crucificado pelos poderes do Templo e do Império... Lembras-te?!

Sim, Francisco socorre-se também do bom humor, e todos os dias reza a “Oração do bom
humor”, oração atribuída a São Tomás Moro, o autor de A Utopia, o ex-chanceler que não se
esqueceu de levar a gorjeta para o carrasco que ia decapitá-lo. Francisco recomendou-a
também aos membros da Cúria Romana, onde tem tantos adversários e até inimigos, a
quem falta o bom humor divino: “Dá-me, Senhor, uma boa digestão e também algo para
digerir./ Dá-me um corpo saudável e o bom humor necessário para mantê-lo./ Dá-me uma
alma simples que sabe valorizar tudo o que é bom/ e que não se amedronta facilmente
diante do mal, /mas, pelo contrário, encontra os meios para voltar a colocar as coisas no seu
lugar./ Concede-me, Senhor, uma alma/ que não conhece o tédio,/ os resmungos,/ os
suspiros/ e as lamentações,/ nem os excessos de stress por causa desse estorvo chamado
‘Eu’./ Dá - me, Senhor, o sentido do bom humor./ Concede-me a graça de ser capaz de uma
boa piada, uma boa piada para descobrir na vida um pouco de alegria/ e poder partilhá-la
com os outros./ Ámen