quinta-feira, 29 de agosto de 2024

A ECOLOGIA DO CORAÇÃO - Pe. Manuel João , MC

 A ECOLOGIA DO CORAÇÃO

 

22º Domingo do Tempo Comum (B)

Marcos 7,1-23: O que sai do coração do homem é que o torna impuro!

 

Depois de cinco domingos de interrupção, hoje retomamos o percurso do evangelho de São Marcos, a partir do sétimo capítulo. Poderíamos dizer que o tema central que emerge das leituras é a Palavra de Deus. 

Esta Palavra gerou-nos, foi plantada em nós e, acolhida com docilidade, está destinada a dar frutos, diz São Tiago na segunda leitura (Tiago 1). Mas qual é a relação entre a Palavra e as “leis e preceitos”, de que fala Moisés na primeira leitura (Deuteronómio 4), e as tradições que fariseus e escribas defendem? 

Jesus responde a essa questão no trecho do evangelho de hoje.

Uma delegação de fariseus e escribas foi enviada de Jerusalém para verificar a ortodoxia desse Jesus Nazareno, que se tornara famoso e que muitos consideravam um profeta (Mc 6,14-15). Eles veem que alguns dos seus discípulos comem com as “mãos impuras”, ou seja, não lavadas, escandalizam-se e interrogam Jesus a respeito. Jesus repreende-os, chamando-os de hipócritas, citando o profeta Isaías: “Este povo honra-me com os lábios, mas o seu coração está longe de mim”. Eles cuidam do exterior, mas negligenciam o interior. Sim, têm as mãos limpas, mas o coração impuro. Jesus conclui a sua denúncia profética afirmando: “Vós anulais a palavra de Deus com a vossa tradição” (v. 13).

Pontos de reflexão

1. A conversão do olhar. A questão da pureza ritual era muito importante na época de Jesus. Grupos “puritanos” haviam adotado certas normas que diziam respeito apenas aos sacerdotes. Em si, a intenção era tornar Deus presente em cada mínima ação cotidiana. No entanto, na raiz dessa mentalidade, havia uma visão distorcida da realidade, dividida entre pessoas e coisas puras e impuras, entre o sagrado e o profano, dois mundos incomunicáveis.

Jesus veio para derrubar esse muro de separação. Ele restaura o olhar de Deus sobre a criação: “E Deus viu que era bom” (Gênesis 1). Essa mentalidade de dividir o mundo ao meio não desapareceu. Pelo contrário, pode-se dizer que é muito atual. Manifesta-se na nossa linguagem (“nós” e “eles”), na divisão entre bons e maus, na desconfiança em relação ao diferente, nas barreiras que erguemos nas nossas relações, nas fronteiras entre os povos... O Senhor convida-nos à conversão do nosso olhar para reconhecer o belo e o bom semeados por seu Espírito em todos os lugares!

2. A Palavra viva encarna-se na palavra transitória. Qual é a relação entre a Palavra de Deus e as “leis e preceitos” de que fala Moisés na primeira leitura, às quais não se deve “acrescentar ou retirar nada”? Trata-se de uma questão sempre atual: a relação entre Palavra e tradição, entre o que é essencial e o que é secundário, entre o que é perene e o que é transitório. “A Palavra do Senhor permanece para sempre” (1Pedro 1,25). A Palavra divina é imutável, mas também é uma realidade viva (Hebreus 4,12) que se encarna numa palavra humana passageira. A escrita é uma forma de captar a palavra humana, efêmera, e dar-lhe uma certa estabilidade, colocando-a por escrito, para não ser perdida. Trata-se de uma operação que na informática se chama “salvar” (to save). Mas a cultura, a mentalidade, a sensibilidade e a linguagem mudam, conforme os tempos, espaços e culturas. Para torná-la acessível, legível e compreensível, ou seja, atual, é necessário “convertê-la” (to convert) em uma forma e linguagem atualizados. Como fazê-lo e com quais critérios? “A caridade é o único critério segundo o qual tudo deve ser feito ou não feito, mudado ou não mudado”, diz o beato Isaac da Estrela (abade cisterciense do século XII).

3. A ecologia do coração. Jesus convida-nos a cuidar do coração, ou seja, da nossa interioridade, de onde provêm todas as impurezas. Jesus lista doze, um número simbólico para indicar a totalidade. Se o coração está poluído, desejos, pensamentos, palavras e ações serão contaminados. Hoje, somos particularmente sensíveis à contaminação do meio ambiente e à poluição do planeta. Seria necessária uma atenção semelhante ao nosso “planeta” interior.

A ecologia do coração, ou seja, o cuidado do nosso mundo interior, implica, antes de tudo, cultivar a consciência para reconhecer as ideias e emoções tóxicas que podem poluir nosso coração, como o orgulho, a raiva, a inveja, o ciúme... Sem a devida atenção, o nosso coração pode tornar-se um “depósito de impurezas”, nossas e dos outros. O recurso regular ao sacramento da penitência ajuda-nos a libertar-nos dessas impurezas. Mas não basta limpar o coração. É necessário torná-lo um jardim. O Jardineiro é o Espírito que, especialmente na escuta da Palavra e na oração, semeia e faz germinar em nós as sementes de todo bem. Só assim podemos ter as “mãos inocentes e o coração puro” de que fala o salmista (24,4)!

P. Manuel João Pereira Correia, mccj


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