O Homem: questão para si mesmo.
4. Somos livres?
Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
31 Agosto 2024
Esta é a pergunta decisiva. De facto, se não somos livres, o que se chama dignidade humana
pode ser uma convenção, mas não tem fundamento real.
Mas quem nunca foi assaltado pela pergunta: a minha vida teria podido ser diferente? Para
sabê-lo cientificamente, seria preciso o que não é de modo nenhum possível: repetir a vida
exactamente nas mesmas circunstâncias. Só assim se verificaria se as “escolhas” se repetiam nos
mesmos termos ou não.
Não há dúvida de que a liberdade humana é condicionada. Mas ela existe ou é uma ilusão? Não
pretendem agora neurocientistas dizer que, mediante dados da tomografia de emissão de
positrões e da ressonância magnética nuclear funcional, se mostra que afinal as nossas decisões
são dirigidas por processos neuronais inconscientes?
De qualquer modo, já em 2004, destacados neurocientistas também tornaram público
um Manifesto sobre o presente e o futuro da investigação do cérebro - cito Hans Küng, no
seu Der Anfang aller Dinge (O princípio de todas as coisas) -, revelando-se prudentes no que toca
às “grandes perguntas”: “Como surgem a consciência e a vivência do eu? Como se entrelaçam a
acção racional e a acção emocional? Que valor se deve conceder à ideia de ‘livre arbítrio’?
Colocar já hoje as grandes perguntas das neurociências é legítimo, mas pensar que terão
resposta nos próximos dez anos é muito pouco realista.” É preciso continuar as investigações, no
sentido de perceber o nexo entre a mente e o cérebro. “Mas nenhum progresso terminará num
triunfo do reducionismo neuronal. Mesmo que alguma vez chegássemos a explicar a totalidade
dos processos neuronais subjacentes à simpatia que o ser humano pode sentir pelos seus
congéneres, ao seu enamoramento e à sua responsabilidade moral, a autonomia da ‘perspectiva
interna’ permaneceria intacta. Pois também uma fuga de Bach não perde nada do seu fascínio,
quando se compreende com exactidão como está construída.”
A liberdade não é desvinculável da experiência subjectiva, da “perspectiva interna”. Essa
experiência é uma experiência transcendental, no sentido de que se afirma até na sua negação.
De facto, se tudo se movesse no quadro do determinismo total, como surgiria o debate sobre a
liberdade? Ele seria possível?
Essa experiência coloca-se concretamente no campo da moral e da responsabilidade. Neste
contexto, há um célebre exercício mental de Kant na Crítica da Razão Prática, que já aqui citei e
que é elucidativo e obriga a pensar.
Suponhamos que alguém, sob pena de morte imediata, se vê confrontado com a ordem de
levantar um falso testemunho contra uma pessoa que sabe ser inocente. Nessas circunstâncias e
por muito grande que seja o seu amor à vida, pensará que é possível resistir. “Talvez não se
atreva a assegurar que assim faria, no caso de isso realmente acontecer; mas não terá outro
remédio senão aceitar sem hesitações que tem essa possibilidade.” Existem as duas
possibilidades: resistir ou não. “Julga, portanto, que é capaz de fazer algo, pois é consciente de
que deve moralmente fazê-lo e, desse modo, descobre em si a liberdade que, sem a lei moral,
lhe teria passado despercebida.”
O que confunde frequentemente o debate é a falta de esclarecimento quanto ao que é
realmente a liberdade. Ela é a não submissão à necessidade coactiva, externa e interna, mas não
pode, por outro lado, ser confundida com a arbitrariedade e a pura espontaneidade - não
implica a espontaneidade a necessidade?
A liberdade radica na experiência originária do ser humano como dom para si mesmo.
Paradoxalmente, é na abertura a tudo, portanto, no horizonte da totalidade do ser, que ele vem
a si mesmo como eu único e senhor de si. Então, agir livremente é a capacidade de erguer-se
acima dos próprios interesses, para pôr-se no lugar do outro e agir racionalmente. Faço a
experiência de que sou dado a mim próprio como senhor de mim; portanto, sou dono de mim
(já ouvi uma criança de 6 anos dizer à mãe: “Tu não és a minha dona”) e, portanto, dono dos
meus actos e, consequentemente responsável, respondo por eles e por mim.
É preciso distinguir entre causas e razões. Quando se age sob uma causalidade constringente,
não há liberdade. Ser livre é propor-se ideais, deliberar e agir segundo razões e argumentos,
impondo limites aos impulsos, inclinações e desejos, o que mostra que o Homem pode ser
senhor dos seus actos e, assim, responsável, pode e deve responder por eles.
Só existe liberdade, se há alguém capaz de autodeterminação. A determinação por um “eu”,
segundo um juízo de valor, é que faz com que uma acção seja livre e não puro acaso ou
enquadrada no determinismo das leis naturais. Como diz P. Bieri - ver de novo citação em O
princípio de todas as coisas -, “é inútil procurar na textura material de um quadro o
representado ou a sua beleza; é igualmente inútil procurar na mecânica neurobiológica do
cérebro a liberdade ou a sua ausência. Ali, não há nem liberdade, nem falta de liberdade. Do
ponto de vista lógico, o cérebro não é o lugar adequado para esta ideia. A vontade é livre, se se
submete ao nosso juízo sobre o que é adequado querer em cada momento. A vontade carece de
liberdade, quando juízo e vontade seguem caminhos divergentes.”
Quando se pensa em profundidade e verdade, ser Homem é ser livre e, consequentemente,
responsável: responder por si e pelos outros. O que quero fazer de mim? Para onde queremos ir
verdadeiramente?
Escreve sem aplicação do novo Acordo Ortográfico
Sem comentários:
Enviar um comentário