1. No
Domingo passado, não tive condições para mandar, de Angola, a minha crónica
para o Público. A pedido do meu Provincial, vim a Luanda participar num
conjunto de iniciativas de estudo organizadas pelos dominicanos angolanos. A
perspectiva que me orienta, na realização do programa desenhado, é esta: outro mundo, outra Igreja e outra vida
dominicana são possíveis. É uma questão de fidelidade à mensagem cristã.
Jesus Cristo cresceu e foi educado nas tradições da religião de Israel. Quando
hoje se fala de inculturação do Evangelho, algumas práticas pastorais julgam
que se trata de adaptar o Evangelho a uma cultura. Se assim fosse, Jesus Cristo
não tinha nada que fazer, pois já estava moldado pela sua herança judaica, cultural
e religiosa. O que pode ser observado, tanto nos escritos de Paulo como nas
narrativas dos Evangelhos, é que Jesus de Nazaré não se apresentou para
perpetuar os costumes do seu tempo. Teve de discernir o que havia de mais vital
na herança recebida e o que havia de opressor na religião mais recomendada, sob
a invocação de Moisés: disseram-vos, mas
Eu digo-vos!
Continuamos com certas orações
que podem sugerir a consagração do conservadorismo: assim como era no princípio agora e sempre pelos séculos dos séculos, Ámen.
Ora, no principio era a criatividade. A fé cristã está ligada a um Deus que não
passou à reforma, mas que é criação contínua, suscitando criadores, não
repetidores. Rezamos para que «pelos séculos dos séculos» não se extinga a
criatividade dos que desejam ser fiéis ao Evangelho.
2.
Não
posso dizer que conheço Angola, embora noutros tempos tivesse trabalhado em
várias províncias. Conhecer um «povo de povos» é um caminho sem fim. Eu só
conheci Angola em guerra civil, nem antes nem depois. Seria estúpido fazer
considerações e comparações entre um breve passado e a realidade actual. Não
tenho vocação de repórter. Não sou sociólogo nem economista para epilogar
acerca da nova Luanda, tão diferente daquela que conheci e que também não era
um paraíso. Tenho a impressão que não foram os arquitectos paisagistas os mais consultados
para desenhar a renovação desta cidade que já conta com 7 milhões de habitantes
numa população nacional de 25 milhões. Duvido que
sejam especialistas em sistemas de transportes que obrigam as pessoas a gastar
mais tempo e energias a chegar aos seus empregos e a regressar a casa do que
propriamente no trabalho. Não seria possível e mais eficaz cruzar a cidade de
comboios e/ou de linhas de metro do que reduzir tudo a táxis e a transportes particulares?
Parece que uma economia baseada sobretudo no preço do petróleo chegou a uma
situação insustentável. Sobem os preços e baixa o poder de compra. A população
mais carenciada é sempre a que mais sofre.
De um Estado
marxista à privatização do Estado, o salto foi muito grande e a defesa dos
direitos humanos pouco acautelada. Do ponto de vista humano e cristão, quando
um Estado se coloca ao serviço de interesses privados, o bem comum é
necessariamente sacrificado. Desse modo, não haverá interesse em ampliar e
melhorar o ensino público, a todos os níveis, nem criar e desenvolver um
Serviço Nacional de Saúde eficaz.
Quem desejar
documentar-se e analisar estas questões, a nível local e nacional, poderá dirigir-se
ao Mosaiko, Instituto para a Cidadania,
fundado e assumido pelos Dominicanos em Angola, desde 1997. É um instituto
angolano sem fins lucrativos, tendo sido a primeira instituição deste país a
assumir explicitamente como missão: promover os Direitos Humanos em Angola[1].
3. Ao visitar os espaços da
Paróquia do Carmo, entregue aos dominicanos, e onde vivi um ano como professor
do Seminário de Luanda, fiquei comovido com a exposição das fotografias de frei
João Domingos, frei José João e frei Luís de França que desapareceram do nosso
convívio. São pessoas que fizeram suas as dificuldades de um povo vítima de
guerras loucas e que não se resignaram a uma paz que recusa o abraço da justiça
e a defesa dos direitos mais elementares. Os dominicanos angolanos são hoje a
garantia de que a paixão evangelizadora de São Domingos e desses irmãos vão
descobrindo e praticando caminhos de transformação da sociedade e da Igreja.
Tudo começou com
frei João Domingos, frei Gil Filipe e frei José Nunes em 1982. Foi a mão generosa
de D. Zacarias Kamwenho que os levou para Waku-Kungo (Diocese do Sumbe). Era
então uma frente de guerra entre o MPLA e a UNITA.
Este bispo, mais
tarde arcebispo do Lubango e prémio Sakharov, estava a realizar um grande plano
de evangelização inculturada na sua diocese, servindo-se do modelo tradicional Ondjango[2] e pediu a
colaboração destes missionários.
Reconhecendo o
trabalho exemplar realizado em Waku-Kungo, os dominicanos foram convocados para
uma presença mais alargada e diversificada em Angola da qual será preciso falar
noutra crónica.
Luanda, 24.07.2016
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