quarta-feira, 30 de outubro de 2019

TÒ MARIA VINHAS ( Viseu1955) - Dois livros publicados

O nosso colega António Maria Vinhas ( Viseu 1953 ) tem dois livros publicados. Podem encontra-los e adquiri-los nos sites que se seguem:

ZÉ SANTANA E O EXTRATERRESTRE
https://ebooks.spautores.pt/book/ze-santana-e-o-extraterrestre/U0K842

O VAGABUNDO QUE VEIO DO CÉU
https://ebooks.spautores.pt/book/o-vagabundo-que-veio-do-ceu/P0K843

Deliciem-se e inspirem-se. Boas leituras.

segunda-feira, 21 de outubro de 2019

O PODER DA ARTE Frei Bento Domingues O.P.


1. Escrevi este texto para introduzir uma conversa com este título, na Livraria Arquivo de Leiria. É, por isso, anterior à conversa e não o seu reflexo. É um atrevimento que só me compromete a mim.

A palavra poder evoca realidades muito contrastadas. Tanto pode designar uma pessoa cheia de saúde, capaz de enfrentar os múltiplos desafios da vida quotidiana, como exprimir a debilidade extrema: não poder falar, não poder andar, não poder ver, não poder ouvir, não poder respirar, não poder trabalhar e sentir essas dolorosas ausências. Um hospital mostra esse contraste entre as pessoas que cuidam e os doentes que a elas recorrem porque reconhecem nelas o poder de conseguir remédio para superar o mal que as atingiu.

Fala-se, noutro sentido, da conquista do poder, seja ele económico, político ou religioso, por vias democráticas, legítimas ou, então, do acesso a esses mundos através da violência física e psicológica ou da astúcia fraudulenta. Quando é competente e é conseguido por caminhos eticamente legítimos, acaba por se traduzir em formas de serviço público. Quando segue as vias da fraude e da violência, não se destina a servir e a libertar, mas a dominar. A dominação pode ser económica, política, militar ou religiosa ou agregar todas essas formas, como acontece com o poder totalitário.

2. Perguntam-me qual é o poder de uma obra de arte. Não se confunde com nenhuma das formas já referidas. Não se mede pelo seu alcance utilitário. Não serve para outra coisa melhor do que ela própria. Não é catalogada nas obras de misericórdia, de beneficência ou da maldade. Não copia a natureza, não a duplica nem a representa.

 Diz-se que o poder da arte resulta da capacidade enigmática de certas obras provocarem a ruptura com as evidências convencionais da realidade e de criarem um novo e inconfundível mundo de experiências de fruição estética, pela densidade das emoções que desperta.

Quando se insiste que essas obras não copiam a natureza, não a duplicam, não a representam, procura-se destruir as ilusões que as próprias reconfigurações das obras artísticas podem ocasionar e que impedem o acesso à criação que as torna únicas, inconfundíveis.

        A experiência da fruição estética é uma participação no mundo da imaginação criadora do artista, imaginação liberta e libertadora. Subversiva por ser o que é.

        Numa entrevista a Ai Weiwei, artista chinês, activista, dissidente, preso e exilado, foi-lhe perguntado: a arte pode ser uma ameaça para o poder totalitário? «Acho que sim. Eles passam o tempo todo a dizer às pessoas que são poderosos. No entanto, só são poderosos porque utilizam a violência, recorrendo à força do Exército. É um poder feito de armas. Não são poderosos de pensamento, não são poderosos de espírito. Não são sequer capazes de nos olhar na cara ou ir a uma escola de arte. Não têm qualquer capacidade argumentativa. Que poder podem ter? Quão poderosos podem ser? É por isso que a arte é importante. Fala pelo e através do pensamento das pessoas e não quer saber da violência para nada. A arte tem mais poder do que eles. A arte mostra o poder do pensamento humano, o poder da nossa imaginação»[1].

3. A arte questiona o mundo das aparências e suscita obras que testemunham o poder da imaginação criadora, provocando emoções de pura beleza. Onde havia apenas uma pedra de mármore, Michelangelo extraiu a sua Pietà, que não estava na pedra, mas no poder da sua imaginação transfiguradora, presente em todas as formas de arte, seja no campo da música, da literatura, do teatro, da pintura, da escultura ou da arquitectura.

Todas essas formas tiveram, ao logo da história dos povos e das culturas, as expressões mais surpreendentes e todas suscitam a mesma pergunta: o que há de especial nessas expressões que as torna autênticas obras de arte e lhes dá um poder de sedução inconfundível?

Essa resposta deveria surgir daquilo que se chama estética, mas esta lida com o enigma. Não existe uma ciência objectiva para discernir o que é e o que não é uma obra de arte. Quando é que o arranjo dos sons produz uma música sublime? Quando é que o arranjo das palavras produz um poema, um romance, um conto aos quais se volta sempre? Quando é que o arranjo das cores produz uma pintura que desloca multidões para a contemplar? Quando é que o trabalho sobre a madeira ou a pedra produz uma escultura? Quando é que a construção de um espaço constitui uma obra de arquitectura?

Entre os muitos arranjos das palavras, dos sons, das cores, dos trabalhos em madeira, pedra ou metal uns são considerados obras de arte impressionantes e outros são considerados irrelevantes, banais, para não dizer pirosos ou foleiros. A divulgação da mediocridade encadernada, pintada ou musicada, servida por alguns meios de comunicação, tem o enorme poder de poluir o gosto, impossibilitando uma autêntica experiência estética.

De matérias banais podem ser feitas obras geniais e de matérias nobres podem sair produtos que só o mau gosto pode consumir.

Sem evocar, aqui, os grandes monumentos da Ásia, da Índia, das Américas, da Europa, podemos perguntar o que seria, por exemplo, da Itália sem o poder das suas imensas obras de arte? Que seria de Paris sem a catedral de Notre Dame? Mais perto de nós, que seria de Lisboa sem os Jerónimos, de Alcobaça sem o seu mosteiro, da Batalha sem o convento de Nossa Senhora das Vitórias, de Tomar sem o convento de Cristo?

Qual é o poder de todas essas obras, para além do lucro económico que o turismo consegue? Não sei responder. Verifico, apenas, que testemunham de uma beleza que, se os seus suportes materiais pudessem, seria eterna. Os seus autores morrem, elas não. Toda a grande obra de arte, a começar pela música, levanta sempre a questão da sua humana e divina transcendência, sem a nomear. Provocam emoções que nenhum mundo pode conter, porque são a reconfiguração de um mundo que excede todos os mundos. A sua materialidade sugere o imaterial, porque a sua linguagem é sempre metafórica, de múltiplas significações, inesgotáveis e resistentes a qualquer comentário.

Deixo, para uma próxima oportunidade, o comentário de uma obra apresentada, na passada quinta-feira[2], que testemunha, o poder que a arte moderna tem de evocar, na sua imanência, a transcendência humana e divina.



20. 10. 2019



[1] Por Alexandra Carita, Revista do Expresso, 12. Outubro, 2019, pp.34-40
[2] João Alves da Cunha e João Luís Marques (Coord.), Dominicanos. Arte e arquitectura portuguesa. Diálogos com a Modernidade, Edição de CEHR UCP e do ISTA, 2019.

terça-feira, 15 de outubro de 2019

Em missão «non-stop»! - João Terixeira DM

1. Ser cristão é estar sempre
em missão.
Em todo o tempo e
em toda a parte, é para
a missão que tem de estar
(sempre) voltada a nossa
acção.
2. Esta é a maior urgência.
Só que, muitas vezes, parecemos
«cristãos em sonolência».
Andamos muito acomodados,
em estado de letargia. E
nem sequer reparamos que,
em cada instante, Jesus nos
envia (cf. Mc 16, 15).
3. Chegou, por isso, a hora
de despertar (cf. Rom 13, 11).
É o momento de cada um à
missão se entregar. A missão
não é difícil de descrever. E é
imensamente bela para viver.
A missão consiste em «levar
» e «trazer». Está, pois, em
missão quem «leva» e «traz».
O cristão é aquele que «leva»
Cristo a todos e procura «trazer
» todos para Cristo.
4. É claro que a resposta
pode não vir de todos. Mas a
proposta não pode deixar de
chegar a todos.
Num tempo em que a vergonha
desapareceu, não tenhamos
vergonha de falar
de Cristo, em propor o seguimento
de Cristo.
5. A missão só se faz por
inteiro quando colocamos
o anúncio de Cristo em
primeiro.
Caso contrário, não saímos
dos preâmbulos, dos intróitos
e dos projectos. Já temos
numerosas palavras sobre a
missão. Assim sendo, é hora
de avançarmos para a missão.
6. Do mandato missionário
de Jesus (cf. Mc 16, 15), não
basta reter o «ide» nem tão-
-pouco memorizarmos o «ide
por todo o mundo».
É preciso ir por todo o
mundo «anunciar o Evangelho
». Só assim é que o mandato
está completo, embora
nunca concluído.
7. O anúncio do Evangelho
de Jesus – e do Jesus do Evangelho
– é um trabalho permanente,
extenso e intenso.
É um trabalho para toda a
vida e para envolver a vida toda:
por dentro e por fora, no
contacto pessoal e na actividade
comunitária, para os outros
e com os outros.
8. Este anúncio tem a forma
de testemunho. Só quem
vive Jesus está em condições
de ajudar a viver Jesus.
É a presença de Jesus em
nós que nos impele a fazer o
que Jesus fez: a dar a vida pelos
outros.
9. O mundo será uma fraternidade
se ao Evangelho
guardarmos fidelidade.
Aquele que Se apresentou
como Servo – e Servidor – (cf.
Lc 22, 27) é quem mais nos
habilita a construir a (tão desejada)
«civilização do amor».
10. O serviço é o grande
conteúdo da missão. Mobilizemo-
nos para ela a partir do
mais fundo do nosso coração.
Nunca paremos de servir.
E a Jesus estaremos sempre
a seguir.

domingo, 13 de outubro de 2019

EM MUDANÇA ACELERADA Frei Bento Domingues, O.P.


1. Poderá a hierarquia da Igreja católica mudar não apenas de orientação, mas sobretudo a velha prática de adiar soluções urgentes para um futuro indefinido?

      A pergunta é antiga e percorre toda a história de reformas dentro da Igreja. Eu próprio conheço esse lamento desde a minha juventude. Quando agora se diz que o Papa Francisco está a alterar perigosamente o rumo da Igreja, provocando muitas resistências e ameaças de cisma, há sempre quem acrescente, com algum cepticismo: são maiores as mudanças no discurso do que na realidade dos factos. Mais uma vez, está a perder-se um momento de graça divina e de inadiável necessidade eclesial.

Isto sabe a conversa de velhos: velhos conservadores e velhos progressistas. Não esqueço, no entanto, que foi de um velho, minado por doença incurável, que saíram as palavras e os gestos mais audaciosos no século XX. Foram os do papa João XXIII. Os seus sucessores não perceberam que a autêntica virtude da prudência abre luz verde à audácia das decisões ponderadas, superando a linguagem do oportuno e inoportuno. Para trás não há paz e não é do império da mesmice que se podem esperar soluções inéditas.

Se olharmos para a fotografia do Sínodo dos bispos dedicado ao tema os jovens, a fé e o discernimento vocacional, 2018, temos a evidência de que não foi um sínodo de jovens. Foram bispos com idade de pais e avós a tentar entender os jovens sem, talvez, se darem conta que já não se trata dos jovens que eles tinham conhecido quando trabalharam – os que trabalharam – com essas idades. A cultura, que só pretende garantir o futuro repetindo o passado, não entende o espírito cristão: Eis que eu faço novas todas as coisas[1]

Importa perceber que estamos noutro mundo que é necessário conhecer e assumir, se pretendermos animá-lo de uma novidade mais profunda que supere esta Era da mera produção, do consumo e do divertimento.

Tomo, como parábola desta situação, um fragmento do texto de António Guerreiro, A geração dos filhos sem pais[2].

Também os Bispos se reuniram numa época em que «entre a geração dos alunos e a dos professores existe um fosso, um hiato enorme que não é possível disfarçar e tem terríveis consequências. Esse hiato já seria grande e nefasto em quaisquer circunstâncias; ele é colossal sob as novas condições de transmissão do saber, da experiência, dos costumes, dos códigos de comportamento, em que se acelerou de maneira vertiginosa o tempo da inflexão e interrupção de uma cadeia hereditária.

O “antigamente” já não é o tempo dos avós, é o tempo da nossa experiência: quem entrar hoje numa escola depois de um interregno de dez anos (dantes, considerava-se que as gerações se sucediam de 30 em 30 anos) entra num mundo diferente daquele que conheceu. Ou melhor, só não entra num mundo completamente diferente porque os professores são os mesmos, e quase todos a pensar na reforma. Quem não sentiu já, regressando à escola ou à universidade por onde passou, a estranheza inquietante que isso provoca?».

2. Na cerimónia em que o Bispo José Tolentino Mendonça foi incluído no colégio cardinalício, sendo um dos membros mais novos, o espectáculo que as televisões ofereceram era o de termos entrado num mundo em que a respeitabilíssima terceira idade é prevalecente no governo da Igreja.

No dia seguinte, foi a abertura do Sínodo sobre a Amazónia. O espectáculo não mudou. A homilia do Papa Francisco é, no entanto, de antologia: «Se tudo continua igual, se os nossos dias são pautados pelo “sempre se fez assim”, então o dom desaparece, sufocado pelas cinzas dos medos e pela preocupação de defender o status quo». Teve o cuidado de lembrar que Bento XVI já tinha escrito: «a Igreja não pode, de modo algum, limitar-se a uma pastoral de “manutenção” para aqueles que já conhecem o Evangelho de Cristo. O ardor missionário é um sinal claro da maturidade de uma comunidade eclesial».

Francisco sublinhou: «Porque a Igreja está sempre em caminho, sempre em saída; nunca fechada em si mesma. Jesus veio trazer à terra, não a brisa da tarde, mas o fogo».

Não se trata do fogo devastador da Amazónia, mas da virtude da prudência. Esta não pode ser confundida com atitudes de timidez ou de medo que paralisam, mas de audácia. É a virtude das decisões corajosas que se impõem a quem tem responsabilidades de governar e não de paralisar. O melhor será ler o texto na íntegra[3].

A corajosa homilia do Papa, na abertura do Sínodo dos Bispos sobre a Amazónia, situa-se, no entanto, num mundo de pais e avós.

Se a sociedade vive em mudança acelerada, a hierarquia eclesiástica continua em velocidade reduzida ou, como se diz, a “passos de caracol”, sobretudo quando se trata de abordar questões que exigem soluções urgentes.

Se não nos resignarmos a uma Europa auto centrada, preocupada apenas com a desaceleração económica mundial que a vai afectar e donde desertam as interrogações mais profundas, acerca do sentido da vida pessoal e colectiva, colaboramos num mundo sem alma, sem compaixão, miseravelmente egoísta.

3. Não me parece que, para já, a religião esteja em condições de oferecer a energia necessária para levantar essas questões de fundo, que só podem nascer do reconhecimento da dimensão transcendente da vida humana.

A situação religiosa dos jovens, na Europa, está descrita num estudo recente da Universidade inglesa St. Mary, de Londres (2014-2016). É uma situação impressionante em países de tradição cristã. Em 12 países deste continente, a maioria dos jovens, entre os 16 e 29 anos, admitem que não são crentes e que nunca ou quase nunca vão à Igreja ou rezam.

A República Checa é o país menos religioso da Europa: 91% dos jovens confessa que não tem qualquer filiação religiosa. A seguir vem a Estónia, a Suécia, os Países Baixos onde a percentagem dos jovens sem religião está entre os 70% a 80%. Também noutros países, França, Espanha, se pode observar o declínio da crença religiosa.

Nesta crónica não podemos enumerar a situação de todos os países. O responsável deste estudo, Stephen Bullivant, perante este e outros dados, declarou que na Europa a religião está a morrer.

Como cristão não penso que seja o fim. É um desafio para a chamada Nova Evangelização. Sei que a situação actual dos ministérios ordenados da Igreja Católica não está em condições de dinamizar uma resposta a esse desafio. A ordenação de homens casados e de mulheres é indispensável, se não repetirem os caminhos que não levam a lado nenhum, mas o fim de um mundo pode e deve ser para as pessoas de fé e de esperança activa, o nascimento de um outro.

Ao terminar esta crónica recebi a notícia da morte da Manuela Silva, uma das mais empenhadas militantes católicas das causas sociais e da renovação da Igreja em Portugal.

13. 10.2019



[1] Apocalipse 21, 5
[2] Público, Ípsilon, 04.10.2019
[3] Homilias no site do Vaticano

MOÇAMBIQUE- Por mares dantes navegados

Caríssimos amigos e presidentes das Associadas, boa noite!

Está em preparação a VIª etapa do projecto "Por Mares Dantes Navegados" que nos levará a Moçambique, mais concretamente a Maputo e à diocese de Inhambane acompanhando o trabalho pastoral dos jesuítas, dos salesianos, dos missionários da Consolata e de uma paróquia daquela Diocese.

Para a visita a Moçambique definimos dois objectivos principais: por um lado, olhar a realidade através da acção missionária das Ordens Religiosas acima referidas; por outro, tomar conhecimento do lugar e importância dos catequistas na evangelização das comunidades locais.

Partiremos a 5 de Julho de 2020, ao serão, e regressaremos no sábado, dia 18 do mesmo mês; faremos apenas um único grupo de 25 participantes. Ainda não temos valores definidos, mas apontamos para um montante idêntico ao de Angola (1.800€). Para que este valor não suba, precisamos de comprar os bilhetes de avião o mais rapidamente possível.

Estamos a preceder do seguinte modo: logo que alguém nos informe do seu desejo em participar e, se ainda houver vagas, compramos-lhe o bilhete, sabendo que quanto mais tarde se comprar mais caro ficará. Também informamos que, uma vez comprado o bilhete o seu valor não será reembolsado, excepto nos casos previstos pelo seguro da viagem.

Junto segue ficha de inscrição.

Com os melhores cumprimentos.
P. Armindo Janeiro.
www.uasp.pt | Faceboock.com/uasp


terça-feira, 8 de outubro de 2019

TEOLOGIA E LITERATURA Frei Bento Domingues, O.P.


1. A fonte de toda a teologia cristã é o chamado Novo Testamento (NT) que, por sua vez, é uma inovadora interpretação da Bíblia Hebraica ou, como é usual dizer-se, do Antigo Testamento (AT). Hoje, encontramos todos os livros da Bíblia de épocas, autores, géneros literários e línguas diferentes, encadernados num só volume. Podem dar a ilusão de constituírem apenas um livro, quando a própria palavra Bíblia significa livros. É preferível, por isso, falar de teologias e não de teologia do AT ou do NT. A expressão muito usada, como diz a Bíblia, não pode indicar nada de muito preciso.

Nessa biblioteca, coexistem, na teia contraditória das experiências humanas narradas, apresentações de Deus cheias de contrastes irredutíveis. O próprio Jesus diz, aos seus interlocutores rabínicos: disseram-vos, mas eu digo-vos. Sustentava muitas vezes o contrário do que vinha nas Sagradas Escrituras.

 Para quem tem uma noção de livros divinamente inspirados, como ditados de Deus, pode ser levado a pensar que Deus não se levanta todos os dias com a mesma disposição, pois são-lhe atribuídas afirmações que não batem certo umas com as outras. A inspiração divina acontece através de múltiplas e complexas mediações humanas. Quando se afirma que a Bíblia é palavra de Deus importa não esquecer que se trata de uma metáfora para dizer que aquela literatura, sem a referência ao Deus sem nome, seria impossível.

 Pelo caminho da sua escrita poética, narrativa, romanesca, sapiencial, a Bíblia revela a profundidade e a complexidade que nenhum dilúvio poderá vencer. Como nota o Prof. José Augusto Ramos, “poderíamos por isso, dizer, sem qualquer intenção de sectarismo, que, em termos históricos e culturais, a Bíblia hebraica completa é a Bíblia cristã. Uma antologia literária que começa no Génesis e termina muito bem no Apocalipse[1].

      Ao dizer que o terminal das virtudes teologais – fé, esperança e caridade - é Deus, mistério inabarcável, vemos que as mediações que O referem e procuram tactear são múltiplas. Não se pode crer sem querer e sem as interpretar.

 Sendo as fontes da teologia cristã uma antologia literária, surge a pergunta: que aconteceu para que a prática da teologia eclesiástica se tenha, em geral, divorciado da literatura viva dos poetas, dos romancistas e dos dramaturgos?

Teologia e literatura deixaram de se reconhecer mutuamente, são dois universos que não têm uma fronteira comum. Quem o disse foi um teólogo, P. Duployé, ao defender a célebre tese, La religion de Péguy, na Faculdade de Letras da Universidade de Estrasburgo[2]. Depois desse acontecimento, foram bastantes os que se apaixonaram, simultaneamente, pela teologia e pela literatura[3]. J.-P. Jossua O.P., tem trabalhado, há muitos anos, na prática e na construção da théologie littéraire, aquela que descobre afinidades entre teologia e literatura. Não são mundos justapostos.

A literatura, no sentido moderno da palavra, não implica o apagamento de uma tensão com o absoluto. O romance testemunha, por vezes, questões nascidas de uma dúvida radical acerca da fé religiosa, mas também existem muitos romances que manifestam a presença de preocupações e experiências de ordem religiosa no coração da vida quotidiana, mesmo que o verdadeiro romance encerre sempre um carácter subversivo pela sua ironia e pluralismo. A teologia podia tirar daí o seu bem, no caso de se abrir à imaginação, à metáfora, à narração, respeitando a autonomia da literatura e resistindo à tentação de a instrumentalizar.

2. Manuel António Ribeiro escreveu um texto sobre as Reconfigurações de Deus na literatura moderna[4] que interessa a esta crónica. Afirma que é um dado facilmente verificável que se esvaneceram, desde há décadas, os escritores com a estatura dos franceses Mauriac, Péguy, Claudel, Bernanos, nomes que se tornaram referências de vulto, ao trazerem para a literatura uma tematização aderente ao mistério da existência humana, visto à luz do discurso teológico do catolicismo. Fora do espaço gaulês, Graham Greene e T. S. Eliot são outros exemplos representativos de uma tendência de sinal semelhante. Todavia, há muito que deixaram de ter grande acolhimento editorial os estudos críticos que enfatizam mais a vertente “cristã” ou “religiosa” do que a dimensão literária das obras.

Este articulista pensa, que se pode afirmar que depois da morte de François Mauriac (1970), a literatura entendida como veículo da “causa cristã” passou a ter uma presença pouco relevante na crítica literária. Isto não quer dizer que não persistam escritores em cujas criações transparecem imaginários e pressupostos de conteúdo cristão. Nenhum deles, porém, é identificado como escritor católico, nem sequer como escritor cristão. Eles próprios preferiam que se falasse de católicos que são escritores. A razão por esta preferência é muito simples. Não se deseja fazer da literatura uma ferramenta ao serviço de uma causa ideológica, seja ela qual for.

Este estudo não esquece que ao lado e para além dessas cautelas e polémicas nunca deixaram de existir reflexões sobre o fenómeno literário, assentes na preocupação de discernir a componente religiosa como interrogação ou iluminação. Lembra, a este propósito, a grande obra de Charles Moeller, Littérature du XXe siècle et Christianisme (5 vol., 1953-1975).

3. Já existem muitas referências à dimensão religiosa e cristã na literatura portuguesa dos últimos séculos. Para superar o seu carácter fragmentário seria preciso um plano de investigação e de publicação que, para ser executado com êxito, exige uma ou várias equipes de estudiosos. A seara é vasta e os operários deste empreendimento são poucos e dispersos. Desde, por exemplo, Antero de Quental, Fernando Pessoa, José Régio, até Sophia de Mello Breyner, Agustina Bessa-Luis, Herberto Helder, Lídia Jorge, António Lobo Antunes, etc. existe um mundo literário que tem a ver com o fenómeno religioso e que não deve nem pode ser esquecido pelo mundo dos teólogos.

Seria injusto não lembrar que contamos com alguns casos que uniram ou unem prática literária e prática teológica. Alfredo Teixeira estudou o caso emblemático de Frei José Augusto Mourão[5]. José Tolentino Mendonça é o autor português de escrita de teologia literária mais conhecida e reconhecida. Esperamos que o cardinalato não o retire da sua vocação teológica e literária



07.10.2019



[1] Communio XXXI (2014/4), p.400
[2] Cf. M. D. Chenu, La littérature comme « lieu » de la théologie, RSCFT, Tome LIII, 1969, pp. 70-80.
[3] Cf. Revista Concilium, nº115 (1976/5) dedicado às relações entre teologia e literatura.
[4] Communio XXXI (2014/4), p.409-414
[5] A errante sonoridade de Deus. Revisitando José Augusto Murão, Communio XXXI (2014/4) p 415-428

CRÓNICA DO FALAR "LISBOETÊS" - Vital Moreira

De súbito, o homem do quiosque de Lisboa a quem eu pedira os meus jornais habituais interpelou-me:

- O senhor é do Norte, não é?

Respondi-lhe que não, que nasci na Bairrada e que resido há quase 40 anos em Coimbra. Fitou-me perplexo. Logo compreendi que do ponto de vista de Lisboa tudo o que fique para cima de Caneças pertence ao Norte, uma vaga região que desce desde a Galiza até às portas da capital. Foi a minha vez de indagar porque é que me considerava oriundo do Norte. Respondeu de pronto que era pela forma como eu falava, querendo com isso significar obviamente que eu não falava a língua tal como se fala na capital, que para ele, presumivelmente, não poderia deixar de ser a forma autorizada de falar português. Foi a primeira vez que tal me aconteceu. Julgava eu que falava um português padrão, normalmente identificado com a forma como se fala "grosso modo" entre Coimbra e Lisboa e cuja versão erudita foi sendo irradiada desde o século XVI pela Universidade de Coimbra, durante muitos séculos a única universidade portuguesa. Afinal via-me agora reduzido à patológica condição de falante de um dialecto do Norte, um desvio algo assim como a fala madeirense ou a açoriana. Na verdade - logo me recordei -, não é preciso ser especialista para verificar as evidentes particularidades do falar alfacinha dominante. Por exemplo, "piscina" diz-se "pichina", "disciplina" diz-se "dichiplina". E a mesma anomalia de pronúncia se verifica geralmente em todos os grupos "sce" ou "sci": "crecher" em vez de "crescer", "seichentos" em vez de "seiscentos", e assim por diante.O mesmo sucede quando uma palavra terminada em "s" é seguida de outra começada por "si" ou "se". Por exemplo, a expressão "os sintomas" sai algo parecido com "uchintomas", "dois sistemas" como "doichistemas". Ainda na mesma linha a própria pronúncia "de Lisboa" soa tipicamente a "L'jboa".Outra divergência notória tem a ver com a pronúncia dos conjuntos "-elho" ou" -enho", que soam cada vez mais como "-ânho" ou "-âlho", como ocorre por exemplo em "coelho", "joelho", "velho", frequentemente ditos como "coâlho", "joâlho" e "vâlho". Uma outra tendência cada vez mais vulgar é a de comer os sons, sobretudo a sílaba final, que fica reduzida a uma consoante aspirada. Por exemplo: "pov'" ou "continent'", em vez de "povo" e de "continente". Mas essa fonofagia não se limita às sílabas finais. Se se atentar na pronúncia da palavra "Portugal", ela soa muitas vezes como algo parecido com "P'rt'gâl".O que é mais grave é que esta forma de falar lisboeta não se limita às classes populares, antes é compartilhada crescentemente por gente letrada e pela generalidade do mundo da comunicação audiovisual, estando por isso a expandir-se, sob a poderosa influência da rádio e da televisão. Penso que não se trata de um desenvolvimento linguístico digno de aplauso. Este falar português, cada vez mais cheio de "chês" e de "jês", é francamente desagradável ao ouvido, afasta cada vez mais a pronúncia em relação à grafia das palavras e torna o português europeu uma língua de sonoridade exótica, cada vez mais incompreensível já não somente para os espanhóis (apesar da facilidade com que nós os entendemos a eles), mas inclusive para os brasileiros, cujo português mantém a pronúncia bem aberta das vogais e uma rigorosa separação de todas as sílabas das palavras. A propósito do português do Brasil, vou contar uma pequena história que se passou comigo. Na minha primeira visita a esse país, fui uma vez convidado para um programa de televisão em Florianópolis (Santa Catarina). Logo me avisaram que precisava de falar devagar e tentar não comer os sons, sob pena de não ser compreendido pelo público brasileiro, que tem enormes dificuldades em compreender a língua comum, tal como falada correntemente em Portugal. Devo ter-me saído airosamente do desafio, porque, no final, já em "off", o entrevistador comentou: "O senhor fala muito bem português." (Queria ele dizer que eu tinha falado um português inteligível para o ouvido brasileiro.) Não me ocorreu melhor do que retorquir:- Sabe, fomos nós que o inventámos...Por vezes conto esta estória aos meus alunos de mestrado brasileiros, quando se me queixam de que nos primeiros tempos da sua estada em Portugal têm grandes dificuldades em perceber os portugueses, justamente pelo modo como o português é falado entre nós, especialmente no "dialecto" lisboetês corrente nas estações de televisão. Quando deixei o meu solícito dono do quiosque lisboeta do início desta crónica, pensei dizer-lhe em jeito de despedida, parafraseando aquele episódio brasileiro: -Sabe, a língua portuguesa caminhou de norte para sul...Logo desisti, porém. Achei que ele tomaria a observação como uma piada de mau gosto. Mas confesso que não me agrada nada a ideia de que, por força da força homogeneizadora da televisão, cada vez mais portugueses sejam "colonizados" pela maneira de falar lisboeta. E mais preocupado ainda fico quando penso que nessa altura provavelmente teremos de falar em inglês para nos entendermos com os espanhóis e - ai de nós! - talvez com os próprios brasileiros...

ESTUDAR ANTES DE PREGAR Frei Bento Domingues, O.P.


1. Em Serralves, no passado dia 19, fui convidado a participar numa conferência com Lídia Jorge, sobre O pensamento como pré-escrita. A moderadora, Luísa Meireles, lembrou que o assunto envolve múltiplas vertentes – literárias, filosóficas, religiosas, semânticas, etc. – com a liberdade de tudo o que cada um quisesse abordar. A conferência foi aberta por Paulo Mendes Pinto e pela música de Pedro Abrunhosa. Não me pertence, a mim, fazer qualquer juízo sobre o que, ali, aconteceu.

Escrever, escrevo, mas não sou escritor nem ficaria infeliz se nada tivesse escrito. Tive de escrever, no âmbito da teologia, muitos textos que me pediram para várias revistas ou de colaboração em obras colectivas, assim como introduções e prefácios sem conta. Fui solicitado por muitas instituições culturais do país, para conferências e debates sobre A Religião dos Portugueses, publicada em 1988, corrigida e aumentada na reedição de 2018, organizada por António Marujo e Maria Julieta Mendes Dias. Desde os inícios do Público, fui convidado para escrever, ao Domingo, uma crónica que se tem mantido até hoje. Deu origem a vários livros, editados pela Figueirinhas e, depois, pela Temas e Debates.

Como disse, não sou escritor nem pertenço à Ordem dos Escritores, mas à Ordem dos Pregadores. É esse o sentido de acrescentar, à assinatura de tudo o que escrevo, O.P. o que ainda intriga alguns leitores.

Até ao século XIII, a Ordem dos Pregadores era identificada com a Ordem dos Bispos. Houve, por isso, resistências a dar este nome a uma Ordem Religiosa. A própria Bula pontifícia, que recomendava a Fundação de S. Domingos (1170-1221), foi corrigida de “Ordem dos que pregam” para Ordem dos Pregadores, aqueles que são “totalmente dedicados ao anúncio da palavra de Deus”.

Este acontecimento revelou-se extremamente fecundo. Fez com que, muitos párocos e várias Congregações religiosas se convertessem a esta missão que é responsabilidade de toda a Igreja.

     Porque será que a chamada Ordem dos Pregadores produziu, muito cedo, grandes teólogos escritores – basta pensar em Alberto Magno e Tomás de Aquino – e a escrita de místicos famosos, como Mestre Eckhart e Catarina de Sena?

      Existe uma resposta óbvia, cunhada pela expressão: verba volant, scripta manent (as palavras voam, os escritos permanecem).

O acto de escrever é paradoxal: por um lado, procura reter a palavra para que ela atravesse o tempo e o espaço; por outro, ao ser fixada, por vários processos, em signos inalteráveis, perde a voz, o som, a vida. Ficam apenas letras, como traços da passagem de um vivente desaparecido. É uma morte à espera de leitores que a provoquem, a interroguem, a ressuscitem. Um escrito é um morto que pode sobreviver ao seu autor pela energia que transmitir. Um texto não fala se não for provocado.

Antes da palavra e antes da escrita existem várias formas de pensamento fecundado por experiências e emoções vitais. Costumamos dizer que, no começo, era a Palavra: Logos. Poder-se-ia dizer também que, no começo, era o Silêncio. Este, porém, está carregado de palavras. Só sabemos o que os outros pensam se eles o disserem ou escreverem, o resto é “adivinhação”. Diz-se que os tagarelas falam antes de pensar, umas vezes arrependem-se disso, outras não.

Seja como for, só se conhece a distinção entre ser humano e simples animal pela palavra. Existem animais que podem ser treinados para repetir o que os humanos lhes ensinam. Apesar de todo o animalismo reinante, ainda não se conhece nenhuma biblioteca organizada pelos habitantes dos jardins zoológicos ou da selva. Tudo o que é escrito sobre os animais é feito por uns animais que falam e escrevem, organizando sistemas de signos convencionais, em línguas muito diferentes e em registos linguísticos muito diversos.

2. Não sei o que se passa com os escritores e artistas criativos antes da obra que colocam ao nosso dispor. Sei o que muitos deles disseram. No campo da teologia, conheço a recomendação de S. Pedro: estai sempre prontos a dar razão da vossa esperança a todo aquele que vo-la pede; fazei-o, porém, com mansidão e respeito[1]. Não é uma tarefa especializada. É a situação para a qual todo o cristão se deve preparar.

Um pregador, aquele que faz da sua vida o testemunho do Evangelho, não se deveria atrever a pregar sem perguntar, primeiro, se recebeu a graça da pregação, graça do Espírito Santo, o único verdadeiramente entendido no que a Deus diz respeito[2]. A seguir, pertence-lhe estudar. O conhecimento por afinidade espiritual não dispensa as filosofias e as diversas ciências, pois tem de mostrar como é que é verdade aquilo que confessa, na fé, ser verdade[3]. Não basta a ortodoxia do Credo. A sua repetição não produz saber. Sem a pergunta essencial, fica a cabeça vazia. Tem de investigar, cogitar, contemplar ferverosamente, antes de falar, pregar ou escrever.

Humberto de Romans, O.P. ( ca. 1200 -1277)[4] observou: foi com a Ordem dos Pregadores que, pela primeira vez, estudo e vida religiosa se uniram, numa união sempre frágil que precisa de ser assumida, diariamente, como tarefa prioritária.

Acerca da teologia, Bento XVI recordou uma anedota dos seus primeiros anos como professor na Universidade de Bonn: em cada semestre, havia um dia académico, no qual, os professores de todas as Faculdades se apresentavam aos alunos. Nessa altura, a Universidade sentia-se orgulhosa das suas duas Faculdades de Teologia (uma católica e outra protestante), ainda que nem todos os professores partilhassem a fé cristã. Esta situação não se alterou mesmo quando, em certa ocasião, um dos professores tivesse dito que, nessa Universidade, havia algo de estranho, pois tinha duas Faculdades que se ocupavam de algo que não existia: Deus.

Desde a Idade Média, o mundo cultural mudou muito. Nessa altura, o pregador tinha de estar preparado não só para testemunhar Aquele em quem acreditava, mas para dialogar com os judeus e os muçulmanos. Hoje, o diálogo inter-religioso é muito mais vasto e não pode esquecer os agnósticos, os ateus e os indiferentes.

3. O catolicismo convencional gera um pensamento rotineiro que não se deixa interrogar nem pode questionar o status quo da vida da Igreja nas homilias, na administração dos sacramentos, na catequese, etc. etc.. É o maior obstáculo à nova e antiga evangelização.

Veio o Papa Francisco e desconstruiu esse mundo convencional e, daí o grito: ai que ele está a dar cabo da Igreja na sua vida interna e na sua relação com o mundo. É verdade! O vinho novo da sua intervenção, pelo exemplo e pela palavra, rebenta com os odres velhos do conformismo.

29. Setembro. 2019



[1] 1Pd 3, 15-16
[2] Rm 8, 23-27
[3] S. Tomás, Questiones Quodlibetales, 4. q. 9. a. 3.
[4] A Pregação, Tenacitas, 2012