segunda-feira, 15 de junho de 2020

Dia de Portugal - Tolentino Mendonça

 "O QUE É AMAR UM PAíS

> Agradeço ao senhor Presidente o convite para presidir à Comissão das comemorações do dia 10 de Junho, Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades. Estas comemorações estavam para acontecer não só com outro formato, mas também noutro lugar, a Madeira. No poema inicial do seu livro intitulado Flash, o poeta Herberto Helder, ali nascido, recorda justamente «como pesa na água (...) a raiz de uma ilha». Gostaria de iniciar este discurso, que pensei como uma reflexão sobre as raízes, por saudar a raiz dessa ilha-arquipélago, também minha raiz, que desde há seis séculos se tornou uma das admiráveis entradas atlânticas de Portugal.
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> É uma bela tradição da nossa República esta de convidar um cidadão a tomar a palavra neste contexto solene para assim representar a comunidade de concidadãos que somos. É nessa condição, como mais um entre os dez milhões de portugueses, que hoje me dirijo às mulheres e aos homens do meu país, àquelas e àqueles que dia-a-dia o constroem, suscitam, amam e sonham, que dia-a-dia encarnam Portugal onde quer que Portugal seja: no território continental ou nas regiões autónomas dos Açores e da Madeira, no espaço físico nacional ou nas extensas redes da nossa diáspora.
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> Se interrogássemos cada um, provavelmente responderia que está apenas a cuidar da sua parte - a tratar do seu trabalho, da sua família; a cultivar as suas relações ou o seu território de vizinhança - mas é importante que se recorde que, cuidando das múltiplas partes, estamos juntos a edificar o todo. Cada português é uma expressão de Portugal e é chamado a sentir-se responsável por ele. Pois quando arquitetamos uma casa não podemos esquecer que, nesse momento, estamos também a construir a cidade. E quando pomos no mar a nossa embarcação não somos apenas responsáveis por ela, mas pelo inteiro oceano. Ou quando queremos interpretar a árvore não podemos esquecer que ela não viveria sem as raízes.
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> Camões e a arte do desconfinamento
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> Pensemos no contributo de Camões. Camões não nos deu só o poema. Se quisermos ser precisos, Camões deixou-nos em herança a poesia. Se, à distância destes quase quinhentos anos, continuamos a evocar coletivamente o seu nome, não é apenas porque nos ofereceu, em concreto, o mais extraordinário mapa mental do Portugal do seu tempo, mas também porque iniciou um inteiro povo nessa inultrapassável ciência de navegação interior que é a poesia. A poesia é um guia náutico perpétuo; é um tratado de marinhagem para a experiência oceânica que fazemos da vida; é uma cosmografia da alma. Isso explica, por exemplo, que Os Lusíadas sejam, ao mesmo tempo, um livro que nos leva por mar até à India, mas que nos conduz por terra ainda mais longe: conduz-nos a nós próprios; conduz-nos, com uma lucidez veemente, a representações que nos definem como indivíduos e como nação; faz-nos aportar – e esse é o prodígio da grande literatura - àquela consciência última de nós mesmos, ao quinhão daquelas perguntas fundamentais de cujo confronto, um ser humano sobre a terra, não se pode isentar.
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> Se é verdade, como escreveu Wittgenstein, que «os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo», Camões desconfinou Portugal. A quem tivesse dúvidas sobre o papel central da cultura, das artes ou do pensamento na construção de um país bastaria recordar isso. Camões desconfinou Portugal no século XVI e continua a ser para a nossa época um preclaro mestre da arte do desconfinamento. Porque desconfinar não é simplesmente voltar a ocupar o espaço comunitário, mas é poder, sim, habitá-lo plenamente; poder modelá-lo de forma criativa, com forças e intensidades novas, como um exercício deliberado e comprometido de cidadania. Desconfinar é sentir-se protagonista e participante de um projeto mais amplo e em construção, que a todos diz respeito. É não conformar-se com os limites da linguagem, das ideias, dos modelos e do próprio tempo. Numa estação de tetos baixos, Camões é uma inspiração para ousar sonhos grandes. E isso é tanto mais decisivo numa época que não apenas nos confronta com múltiplas mudanças, mas sobretudo nos coloca no interior turbulento de uma mudança de época.
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> Que a crise nos encontre unidos
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> Gostaria de recordar aqui uma passagem do Canto Sexto d’Os Lusíadas, que celebra a chegada da expedição portuguesa à India. Os marinheiros, dependurados na gávea, avistam finalmente «terra alta pela proa» e passam notícia ao piloto que, por sua vez, a anuncia vibrante a Vasco da Gama. O objetivo da missão está assim cumprido. Mas o Canto Sexto tem uma exigente composição em antítese, à qual não podemos não prestar atenção. É que à visão do sonho concretizado não se chega sem atravessar uma dura experiência de crise, provocada por uma tempestade marítima que Camões sabiamente se empenha em descrever, com impressiva força plástica. Digo sabiamente, porque não há viagem sem tempestades. Não há demandas que não enfrentem a sua própria complexificação. Não há itinerário histórico sem crises. Isso vem-nos dito n’Os Lusíadas de Camões, mas também nas Metamorfoses de Ovídio, na Eneida de Virgílio, na Odisseia de Homero ou nos Evangelhos cristãos.
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> No itinerário de um país, cada geração é chamada a viver tempos bons e maus, épocas de fortuna e infelizmente também de infortúnio, horas de calmaria e travessias borrascosas. A história não é um continuum, mas é feita de maturações, deslocações, ruturas e recomeços. O importante a salvaguardar é que, como comunidade, nos encontremos unidos em torno à atualização dos valores humanos essenciais e capazes de lutar por eles.
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> Mas à observação realística que Camões faz da tempestade, gostaria de ir buscar um detalhe, na verdade uma palavra, para a reflexão que proponho: a palavra «raízes». Na estância 79, falando dos efeitos devastadores do vento, o poeta diz: «Quantas árvores velhas arrancaram/ Do vento bravo as fúrias indignadas/ As forçosas raízes não cuidaram/Que nunca para o Céu fossem viradas». A leitura da imagem em jogo é imediata: as velhas árvores reviradas ao contrário, arrancadas com violência ao solo, expõem dramaticamente, a céu aberto, as próprias raízes. A tempestade descrita por Camões recorda-nos, assim, a vulnerabilidade, com a qual temos sempre de fazer conta. As raízes, que julgamos inabaláveis, são também frágeis, sofrem os efeitos da turbulência da máquina do mundo. Não há super-países, como não há super-homens. Todos somos chamados a perseverar com realismo e diligência nas nossas forças e a tratar com sabedoria das nossas feridas, pois essa é a condição de tudo o que está sobre este mundo.
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> O que é amar um país
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> O Dia de Portugal, e este Dia de Portugal de 2020 em concreto, oferece-nos a oportunidade de nos perguntarmos o que significa amar um país. A pensadora europeia Simone Weil, num instigante ensaio destinado a inspirar o renascimento da Europa sob os escombros da Segunda Grande Guerra, de cujo desfecho estamos agora a celebrar o 75º aniversário, escreveu o seguinte: um país pode ser amado por duas razões, e estas constituem, na verdade, dois amores distintos. Podemos amar um país idealmente, emoldurando-o para que permaneça fixo numa imagem de glória, e desejando que esta não se modifique jamais. Ou podemos amar um país como algo que, precisamente por estar colocado dentro da história, sujeito aos seus solavancos, está exposto a tantos riscos. São dois amores diferentes. Podemos amar pela força ou amar pela fragilidade. Mas, explica Simone Weil, quando é o reconhecimento da fragilidade a inflamar o nosso amor, a chama deste é muito mais pura.
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> O amor a um país, ao nosso país, pede-nos que coloquemos em prática a compaixão – no seu sentido mais nobre - e que essa seja vivida como exercício efetivo da fraternidade. Compaixão e fraternidade não são flores ocasionais. Compaixão e fraternidade são permanentes e necessárias raízes de que nos orgulhamos, não só em relação à história passada de Portugal, mas também àquela hodierna, que o nosso presente escreve. E é nesse chão que precisamos, como comunidade nacional, de fincar ainda novas raízes.
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> Nestes últimos meses abateu-se sobre nós uma imprevista tempestade global que condicionou radicalmente as nossas vidas e cujas consequências estamos ainda longe de mensurar. A pandemia que principiou como uma crise sanitária tornou-se uma crise poliédrica, de amplo espetro, atingindo todos os domínios da nossa vida comum. Sabendo que não regressaremos ao ponto em que estávamos quando esta tempestade rebentou, é importante, porém, que, como sociedade, saibamos para onde queremos ir. No Canto Sexto d’Os Lusíadas a tempestade não suspendeu a viagem, mas ofereceu a oportunidade para redescobrir o que significa estarmos no mesmo barco.
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> Reabilitar o pacto comunitário
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> O que significa estar no mesmo barco? Permitam-me pegar numa parábola. Circula há anos, atribuída à antropóloga Margaret Mead, a seguinte história. Um estudante ter-lhe-ia perguntado qual seria para ela o primeiro sinal de civilização. E a expectativa geral é que nomeasse, por exemplo, os primeiríssimos instrumentos de caça, as pedras de amolar ou os ancestrais recipientes de barro. Mas a antropóloga surpreendeu a todos, identificando como primeiro vestígio de civilização um fémur quebrado e cicatrizado. No reino animal, um ser ferido está automaticamente condenado à morte, pois fica fatalmente desprotegido face aos perigos e deixa de se poder alimentar a si próprio. Que um fémur humano se tenha quebrado e restabelecido documenta a emergência de um momento completamente novo: quer dizer que uma pessoa não foi deixada para trás, sozinha; que alguém a acompanhou na sua fragilidade, dedicou-se a ela, oferecendo-lhe o cuidado necessário e garantindo a sua segurança, até que recuperasse. A raiz da civilização é, por isso, a comunidade. É na comunidade que a nossa história começa. Quando do eu fomos capazes de passar ao nós e de dar a este uma determinada configuração histórica, espiritual e ética.
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> É interessante escutar o que diz a etimologia latina da palavra comunidade (communitas). Associando dois termos, cum e munus, ela explica que os membros de uma comunidade – e também de uma comunidade nacional – não estão unidos por uma raiz ocasional qualquer. Estão ligados sim por um múnus, isto é, por um comum dever, por uma tarefa partilhada. Que tarefa é essa? Qual é a primeira tarefa de uma comunidade? Cuidar da vida. Não há missão mais grandiosa, mais humilde, mais criativa ou mais atual.
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> Celebrar o Dia de Portugal significa, portanto, reabilitar o pacto comunitário que é a nossa raiz. Sentir que fazemos parte uns dos outros, empenharmo-nos na qualificação fraterna da vida comum, ultrapassando a cultura da indiferença e do descarte. Uma comunidade desvitaliza-se quando perde a dimensão humana, quando deixa de colocar a pessoa humana no centro, quando não se empenha em tornar concreta a justiça social, quando desiste de corrigir as drásticas assimetrias que nos desirmanam, quando, com os olhos postos naqueles que se podem posicionar como primeiros, se esquece daqueles que são os últimos. Não podemos esquecer a multidão dos nossos concidadãos para quem o Covid19 ficará como sinónimo de desemprego, de diminuição de condições de vida, de empobrecimento radical e mesmo de fome. Esta tem de ser uma hora de solidariedade. No contexto do surto pandémico, foi, por exemplo, um sinal humanitário importante a regularização dos imigrantes com pedidos de autorização de residência, pendentes no Serviço de Estrangeiros e Fronteiras. O desafio da integração é, porém, como sabemos, imenso, porque se trata de ajudar a construir raízes. E essas não se improvisam: são lentas, requerem tempo, políticas apropriadas e uma participação do conjunto da sociedade. Lembro-me de um diálogo do filme do cineasta Pedro Costa, «Vitalina Varela», onde se diz a alguém que chega ao nosso país: «chegaste atrasada, aqui em Portugal não há nada para ti». Sem compaixão e fraternidade fortalecem-se apenas os muros e aliena-se a possibilidade de lançar raízes.
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> Fortalecer o pacto intergeracional
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> Reabilitar o pacto comunitário implica robustecer, entre nós, o pacto intergeracional. O pior que nos poderia acontecer seria arrumarmos a sociedade em faixas etárias, resignando-nos a uma visão desagregada e desigual, como se não fossemos a cada momento um todo inseparável: velhos e jovens, reformados e jovens à procura do primeiro emprego, avós e netos, crianças e adultos no auge do seu percurso laboral. Precisamos, por isso, de uma visão mais inclusiva do contributo das diversas gerações. É um erro pensar ou representar uma geração como um peso, pois não poderíamos viver uns sem os outros.
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> A tempestade provocada pelo Covid19 obriga-nos como comunidade, a refletir sobre a situação dos idosos em Portugal e nesta Europa da qual somos parte. Por um lado, eles têm sido as principais vítimas da pandemia, e precisamos chorar essas perdas, dando a essas lágrimas uma dignidade e um tempo que porventura ainda não nos concedemos, pois o luto de uma geração não é uma questão privada. Por outro, temos de rejeitar firmemente a tese de que uma esperança de vida mais breve determine uma diminuição do seu valor. A vida é um valor sem variações. Uma raiz de futuro em Portugal será, pelo contrário, aprofundar a contribuição dos seus idosos, ajudá-los a viver e a assumir-se como mediadores de vida para as novas gerações. Quando tomei posse como arquivista e bibliotecário da Santa Sé, uma das referências que quis evocar nesse momento foi a da minha avó materna, uma mulher analfabeta, mas que foi para mim a primeira biblioteca. Quando era criança, pensava que as histórias que ela contava, ou as cantilenas com que entretinha os netos, eram coisas de circunstância, inventadas por ela. Depois descobri que faziam parte do romanceiro oral da tradição portuguesa. E que afinal aquela avó analfabeta estava, sem que nós soubéssemos, e provavelmente sem que ela própria o soubesse, a mediar o nosso primeiro encontro com os tesouros da nossa cultura.
>
> Robustecer o pacto intergeracional é também olhar seriamente para uma das nossas gerações mais vulneráveis, que é a dos jovens adultos, abaixo dos 35 anos; geração que, praticamente numa década, vê abater-se sobre as suas aspirações, uma segunda crise económica grave. Jovens adultos, muitos deles com uma alta qualificação escolar, remetidos para uma experiência interminável de trabalho precário ou de atividades informais que os obrigam sucessivamente a adiar os legítimos sonhos de autonomia pessoal, de lançar raízes familiares, de ter filhos e de se realizarem.
>
> Implementar um novo pacto ambiental
>
> A pandemia veio, por fim, expor a urgência de um novo pacto ambiental. Hoje é impossível não ver a dimensão do problema ecológico e climático, que têm uma clara raiz sistémica. Não podemos continuar a chamar progresso àquilo que para as frágeis condições do planeta, ou para a existência dos outros seres vivos, tem sido uma evidente regressão. Num dos textos centrais deste século XXI, a Encíclica Laudato Sii’, o Papa Francisco exorta a uma «ecologia integral», onde o presente e o futuro da nossa humanidade se pense a par do presente e do futuro da grande casa comum. Está tudo conectado. Precisamos de construir uma ecologia do mundo, onde em vez de senhores despóticos apareçamos como cuidadores sensatos, praticando uma ética da criação, que tenha expressão jurídica efetiva nos tratados transnacionais, mas também nos estilos de vida, nas escolhas e nas expressões mais domésticas do nosso quotidiano.
>
> Uma viagem que fazemos juntos
>
> Camões n’Os Lusíadas não apenas documentou um país em viagem, mas foi mais longe: representou o próprio país como viagem. Portugal é uma viagem que fazemos juntos há quase nove séculos. E o maior tesouro que esta nos tem dado é a possibilidade de ser-em-comum, esta tarefa apaixonante e sempre inacabada de plasmar uma comunidade aberta e justa, de mulheres e homens livres, onde todos são necessários, onde todos se sentem - e efetivamente são - corresponsáveis pelo incessante trânsito que liga a multiplicidade das raízes à composição ampla e esperançosa do futuro. Portugal é e será, por isso, uma viagem que fazemos juntos. E uma grande viagem é como um grande amor. Uma viagem assim - explica Maria Gabriela Llansol, uma das vozes mais límpidas da nossa contemporaneidade -, não se esgota, nem cancela na fugaz temporalidade da história, mas constitui uma espécie de «rasto do fulgor» que exprime a ardente natureza do sentido que interrogamos.
>
> Cardeal José Tolentino de Mendonça
>
> Mosteiro dos Jerónimos, Lisboa, 10 de junho de 2020








Os anacronismos pagam-se caro - Edgar Clara - S. Sol

Dos Magos, que hoje vieram
ao Presépio, dois
eram brancos, e um preto,
como diz a tradição: e seria
justo que mandasse Cristo que
Gaspar, e Baltasar, porque
eram brancos, tornassem livres
para o Oriente, e Belchior, porque
era pretinho, ficasse em Belém
por escravo, ainda que fosse
de São José? Bem o pudera
fazer Cristo, que é Senhor dos
Senhores: mas quis-nos ensinar
que os homens de qualquer cor
todos são iguais por natureza,
e mais iguais ainda por Fé, se
creem, e adoram a Cristo, como
os Magos. Notável coisa é que
sendo os Magos Reis, e de diferentes
cores, nem uma, nem outra
coisa dissesse o Evangelista!
Se todos eram Reis, porque
não diz que o terceiro era preto?
Porque todos vieram adorar a
Cristo, e todos se fizeram Cristãos.
E entre Cristão, e Cristão
não há diferença de nobreza,
nem diferença de cor».
Este texto é de um padre, mas
não é meu! Chama-se padre António
Vieira e encontrei-o no Facebook
de um jesuíta – o padre António
Júlio Trigueiros, diretor da
revista Brotéria. Parece que o texto
que acabei de citar foi escrito
na Epifania de 1662 e, como vemos,
o padre António Vieira é
tudo menos racista. Não obstante,
durante os protestos contra o
racismo, vimos a sua estátua, que
está no Largo da Trindade, em
Lisboa, ser vandalizada.
Os anacronismos dão nestas
coisas!
Fiz uma busca no Google sobre
a palavra: anacronismo. Diz o
seguinte: «Anacronismo é um
erro cronológico, expressado
na falta de alinhamento, consonância
ou correspondência
com uma época. Ocorre quando
pessoas, eventos, palavras,
objetos, costumes, sentimentos,
pensamentos ou outras coisas
que pertencem a uma determinada
época são erroneamente
retratados noutra época».
Na internet inflamam-se os discursos
a favor e contra, racistas
e antirracistas. Escrevem-se das
coisas mais incríveis: estúpidos,
burros, malucos. Pois é, o que estamos
a assistir nos últimos tempos
não tem nada a ver com estupidez
nem com burrice, mas
como anacronismos, que é outro
tipo de burrice.
Esta mentalidade não está só nas
pessoas burras e ignorantes. Está
por toda a parte e em todos os estratos.
Armarmo-nos em juízes da história
e queremos julgar os nossos
antepassados com o código do século
XXI. Parece que queremos fazer
justiça à história para nos vingarmos
uns dos outros. A questão do racismo
descambou para o julgamento
do colonialismo e do tráfico de escravos,
etc. Mas não é caso único.
A propósito dos duzentos anos
do fim da inquisição, o Parlamento
português já instituiu
um dia das Vítimas da Inquisição
e preparam-se as comemorações
no próximo ano para se colocar
um monumento em honra
dessas mesmas vítimas. Claro
que vai descambar em discurso
anticlerical, onde a Igreja será o
alvo a abater.
É curiosa esta mentalidade
anacrónica. Agora imaginem
que vamos fazer a purificação de
todo o passado português, onde
é que isto vai dar.
Alguns já falam em demolir o
Padrão dos Descobrimentos e a
Torre de Belém, pelo que foram
testemunhas, mas principalmente
pelo que simbolizam.
Agora avencemos por aí fora.
Cada um que tiver razões de
queixa comece a demolir o que
está na praça pública e a fazer
justiça à história.
Sim! Parece que há pouco tempo
também se introduziram projetos
na Assembleia da República
para se mandarem para as ex-colónias
as obras de arte que tenham
proveniência desses países.
Também o Parlamento já aprovou
uma lei, que está já a funcionar,
que permite que todos os descendentes
de judeus portugueses
que foram expulsos há quinhentos
anos possam obter nacionalidade
portuguesa. Estão ler bem!
Expulsos há quinhentos anos.
O passo seguinte já se está a
ver qual é. Vamos ter de dar nacionalidade
portuguesa aos descendentes
dos muçulmanos que
o D. Afonso Henriques expulsou
para fazer a nação e dar-lhes
uma indemnização.

domingo, 14 de junho de 2020

A BÍBLIA, TRUMP E A VIOLÊNCIA Frei Bento Domingues, O.P.


1. Donald Trump, não era obrigado, mas seguiu o costume de fazer o juramento de posse de Presidente dos EUA sobre a Bíblia. Agora, acossado pelas manifestações contra a morte do afro-americano, George Floyd, exibiu-a como autentificação divina da sua política.
As Sociedades Bíblicas Unidas e os diferentes movimentos bíblicos católicos não podem protestar contra o uso da obra mais traduzida e editada no mundo. A Bíblia não é sempre inocente em relação à guerra, ao terror, à violência.
É verdade que o movimento fundamentalista norte-americano confessa que a Bíblia é inspirada pelo Espírito Santo, razão da inerrância das suas escrituras. Servir-se dessa equívoca evocação, para cobertura da política nacional e internacional de Donald Trump que destila ódio e violência, obriga a questionar esse ambíguo biblismo.
É frequente a pergunta: não será o próprio Antigo Testamento (AT), acolhido nas edições cristãs da Bíblia, que documenta as mais extremas e cruéis práticas de ódio e violência, não apenas em nome de Deus, mas até por ordem de Deus?
Não é legítimo responder com o recurso ao contexto histórico para desculpar actuações que foram, são e serão sempre criminosas.
 Comecemos pelo mais elementar: de onde vem a palavra Bíblia?
Existia uma cidade fenícia, muito antiga, Biblos, cujas ruínas são visíveis, hoje, no Líbano. É sabido que os fenícios inventaram um dos primeiros alfabetos com 22 signos. Desde o Século XI a.C., Biblos era um importante lugar de produção do papiro e tinha uma reputada escola de escribas. Não admira que os seus escritos tenham usado o nome da cidade. A língua grega herdou a palavra biblion para designar um escrito, um livro. Em grego, o plural – livros – diz-se: ta biblia. Este plural usava-se, também, para designar uma biblioteca. Alguns séculos, antes da nossa era, os judeus de cultura grega usaram esta expressão, ta biblia, para designar a colecção dos seus livros sagrados.
Os cristãos adoptaram o mesmo termo para estes livros que, para eles, formam o AT. Só na Idade Média é que este plural grego foi transcrito em latim, tal e qual, biblia, mas tornou-se um feminino singular. O seu emprego designará, doravante, para os cristãos, o conjunto dos livros do Antigo e do Novo Testamentos. Este feminino singular resultou na palavra portuguesa Bíblia.
O aspecto “plural” desapareceu aparentemente na passagem do grego para o latim, mas não alterou a realidade. A Bíblia não é um livro, mas a “biblioteca” de um povo, formada por uma vasta colecção de livros de épocas muito diferentes e de diversos géneros literários.
Ao apresentar-se encadernada como um só livro, aparenta uma imaginária unidade e autonomia no seio da literatura mundial. Por isso mesmo, é importantíssimo insistir: mesmo encadernada num só volume, não é um livro, mas uma biblioteca de muitos estilos, de muitas épocas, escrita ao longo de vários séculos. Ao ser considerada, de modo incorrecto, como um ditado divino tudo se torna mais enigmático para quem não renuncia a pensar, a interrogar e a interpretar aquele vasto mundo[1].
2. Na sua Autobiografia publicada em 1887, Charles Darwin conta como nasceram as suas dúvidas sobre a religião e como chegou a perder a fé: «Dei-me conta de que no Antigo Testamento aparece um Deus terrível, com sentimentos de um tirano vingativo; vi que a Bíblia não era mais fiável do que os livros sagrados dos hindus, ou as crenças de qualquer bárbaro».
Darwin não foi o único a perder a fé com a leitura da Bíblia. Inúmeros cientistas, filósofos, pensadores, catequistas e até simples cristãos sentiram-se escandalizados perante este livro, onde se vê Deus a vingar-se, destruindo e assassinando quem Lhe desobedece.
Não faltou quem se desse ao trabalho de contar quantas pessoas, na Bíblia, aparecem como eliminadas por Deus. E o número é arrepiante: 2.038.334 pessoas! Sem incluir os mortos nos grandes extermínios como o dilúvio universal, a destruição de Sodoma ou a matança dos primogénitos do Egipto, cujas cifras não aparecem.
Parece que, nesse tempo, o Deus da Bíblia gostava de matar os seus opositores sem o menor escrúpulo, o que levou o inglês Derek Clayton a exclamar: «Se mais cristãos lessem a Bíblia, haveria menos cristãos»[2].
Dissemos que o AT é a biblioteca de um povo em todos os seus aspectos e dimensões. A sua identidade mais saliente é a de ser um povo liberto por Deus da escravidão no Egipto e por Ele conduzido para a terra prometida. Resultou numa aliança. Deus é o aliado deste povo que escolheu e com o qual se comprometeu, mas que lhe exige fidelidade a esta aliança. É uma teocracia política. Será interpretada como devendo coincidir os interesses de Deus com os deste povo. As ambições territoriais deste povo têm de ser defendidas por Deus, mesmo que isso implique a destruição dos outros povos.
3. A biblioteca do AT não é uma biblioteca de violência e de terror. Encerra as obras mais fascinantes da literatura. Surge uma dificuldade. É tudo considerado palavra de Deus. Muitas passagens parecem obra do diabo. Como fazer a destrinça?
Frei Francolino Gonçalves, investigador e professor da Escola Bíblica de Jerusalém, desenvolveu uma investigação considerada por grandes especialistas como muito inovadora, publicada nos Cadernos ISTA[3].
Desse longo e complexo texto, deixo, aqui, apenas uma pequena referência que não deturpa o essencial:
«O AT contém assim duas representações diferentes de Iavé. Segundo uma, ele é o Deus criador que abençoa todos os seres vivos; segundo a outra, ele é o Deus que está ligado a Israel, o seu povo, a quem protege e salva.
Os exegetas não prestaram a estas vozes discordantes a atenção que mereciam. A esmagadora maioria parece nem as ter ouvido. Por isso, ficaram sem eco, não tendo chegado ao conhecimento dos teólogos, dos pastores, nem, por maioria de razão, do público cristão. As minhas pesquisas nesta matéria confirmaram, essencialmente, o resultado dos estudos que referi e, além disso, levaram-me a propor uma hipótese de interpretação do conjunto dos fenómenos religiosos do AT que é nova. A meu ver, o AT documenta a existência de dois sistemas iaveístas diferentes: um fundamenta-se no mito da criação e o outro na história da relação de Iavé com Israel. Simplificando, poderia chamar-se iaveísmo cósmico ao primeiro e iaveísmo histórico ao segundo. Contrariamente à opinião comum, a fé na criação não é um elemento recente, mas constitui a vaga de fundo do universo religioso do AT»[4].
Jesus repudiou a violência do AT: Ouvistes o que foi dito: Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo. Eu, porém, digo-vos: Amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem[5]. Preferiu ser morto a matar. Voltarei a este assunto.


14. 06. 2020


[1] Ver: Julio Trebolle Barrerra, Bíblia Judaica e Bíblia Cristã: Introdução à História da Bíblia, Vozes, 2000; Miguel Perez Fernández, Julio Trebolle Barrerra, José Manuel Sanchez Caro, História de la Bíblia, Trotta, 2006.
[2] Cf. Ariel Álvarez Valdés, A Bíblia incita à violência e à vingança, in Bíblica nº 388 (Maio-Junho 2020), p.99
[3] Francolino J. Gonçalves, Iavé, Deus de Justiça e de Bênção, Deus de amor e de Salvação, ISTA nº 22, ano XIV (2009), 107-152
[4] Op. Cit., p. 115. Os itálicos são da minha responsabilidade.
[5] Mt 5, 43-44

domingo, 7 de junho de 2020

VIVER É MUITO PERIGOSO Frei Bento Domingues , O.P.


1. O título desta crónica anda comigo desde 1962. Quando o dominicano brasileiro, Frei Mateus Rocha, foi a Toulouse convidar-me para ir trabalhar no Instituto de Teologia da Universidade de Brasília, falou-me apaixonadamente do Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa[1]. Deixou-me o exemplar que trazia consigo, com o aviso: vais conhecer a obra prima da literatura brasileira e uma das mais belas expressões da teologia literária. Tinha razão.

 O projecto de Brasília era do grande antropólogo, Darcy Ribeiro, Ministro da Educação no governo de João Goulart, derrubado por um golpe militar em 1964. A ditadura durou 21 anos. Não fui para Brasília, mas o Grande Sertão nunca mais me largou.

 Viver é muito perigoso é um dos refrões que ritma a poderosíssima escrita do Grande Sertão. Que viver é mesmo perigoso já Siddhartha Gautama, chamado Buda, o iluminado (nascido em 560 a.C.), o tinha verificado quando, ao sair para fora da sua zona de grande conforto e prazer, encontrou um velho, um doente, um cadáver e um monge pedindo esmola. A doença, a velhice e a morte foram o começo do seu despertar para a descoberta das causas do sofrimento e das quatro nobres verdades que conduzem à sua superação, mediante o nobre caminho das oito virtudes.

Sem a vitória sobre o desejo, sobre a vontade de viver, não é possível a perfeita iluminação libertadora do medo. Seja qual for a história e a fantasia dessas narrativas, a verdade é que provocaram, ao longo dos tempos, diversas escolas de sabedoria: o Budismo forma uma constelação ou uma nebulosa impressionante de ensaios de sabedorias de viver, sobretudo nas áreas culturais asiáticas.

O monaquismo ocidental, de inspiração cristã, teve muitas expressões. S. Bento superou a acusação de parasitas do trabalho alheio, com a regra norteada pela sabedoria de ora et labora, reza e trabalha. S. Paulo tinha sido mais sintético: quem, podendo trabalhar, não trabalha, não coma[2].

     2. O Grande Sertão situa a sua religiosidade no âmbito cristão, da forma mais ecuménica que se possa imaginar e capaz de beber em todas as fontes. Riobaldo, o fervoroso teólogo jagunço, tem uma experiência terrível de como é mesmo perigoso viver, mas nunca desiste de pensar e repensar a sua fé e as suas crenças, para não perder a esperança de tornar o homem humano. Para ele, «o existir da alma é a reza… Quando estou rezando, estou fora da sujidade, à parte de toda a loucura. Ou o acordar da alma é que é?»

  Ele queria mesmo formar uma cidade da religião. «Às vezes, eu penso: seria o caso de pessoas de fé e posição se reunirem, em algum apropriado lugar, no meio dos gerais, para se viver só em altas rezas, fortíssimas, louvando a Deus e pedindo glória do perdão do mundo. Todos vinham comparecendo, lá se levantando enorme igreja, não havia mais crimes, nem ambição, e todo sofrimento se espraiava em Deus, dado logo, até à hora de cada uma morte cantar. Raciocinei isso com compadre meu Quelemém, e ele duvidou com a cabeça – Riobaldo, a colheita é comum, mas o capinar é sozinho… – ciente me respondeu».

Este compadre é «homem de mansa lei, coração tão branco e grosso de bom, que mesmo pessoa muito alegre ou muito triste gosta de poder conversar com ele».

O que não entende é que não haja Deus. «Refiro ao senhor: um outro doutor, doutor rapaz, que explorava as pedras turmalinas no vale do Arassuaí, discorreu-me dizendo que a vida da gente encarna e desencarna, por progresso próprio, mas que Deus não há. Estremeço. Como não ter Deus?! Com Deus existindo, tudo dá esperança: sempre um milagre é possível, o mundo se resolve. Mas, se não tem Deus, há-de a gente perdidos no vai-vem, e a vida é burra. (…) Tendo Deus, é menos grave se descuidar um pouquinho, pois, no fim dá certo. Mas se não tem Deus, então, a gente não tem licença de coisa nenhuma! Porque existe dor. E a vida do homem está presa, encantoada – erra rumo, dá em aleijões, como esses dos meninos sem pernas e braços».

Com o tempo verifica que a sonhada cidade da religião não era boa ideia. «Neste mundo tem maus e bons – todo grau de pessoa. Mas, então, todos são maus. Mas, mais então, todos serão bons? O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem. O que Deus quer é ver a gente aprendendo a ser capaz de ficar alegre a mais, no meio da alegria, e inda mais alegre ainda no meio da tristeza!»

Não podendo continuar, dou a palavra a Clarice Lispector: «Nunca vi coisa assim! É coisa mais linda dos últimos tempos. Não sei até onde vai o poder inventivo dele, ultrapassa o limite imaginável. Estou até tola. A linguagem dele, tão perfeita também de entoação, é directamente entendida pela linguagem íntima da gente – e nesse sentido, ele mais que inventou, ele descobriu, ou melhor, inventou a verdade».

3. Neste Domingo da Santíssima Trindade, continuamos a verificar que viver é mesmo muito perigoso. Dá medo não só pela catástrofe, em todos os domínios, que representa o covid-19, mas sobretudo pelo mundo que nos é mostrado: a loucura da violência racista, doméstica e do autoritarismo social e político. O homem não é humano. O outro, na sua diferença irredutível, não é um irmão. Caso não se deixe vergar aos caprichos de quem manda, é um potencial inimigo a abater.

Na corrente bíblica do iaveísmo sapiencial, o ser humano é criatura à imagem de Deus. Na tradição do Novo Testamento (NT), Deus não é solidão. Lemos, na Carta aos Romanos: Todos os que se deixam guiar pelo Espírito são filhos de Deus. Vós não recebestes um Espírito que vos escravize e volte a encher-vos de medo, mas recebestes um Espírito que faz de vós filhos adoptivos. É por Ele que clamamos: Abbá, ó Pai! Esse mesmo Espírito dá testemunho ao nosso espírito de que somos filhos de Deus. Ora, se somos filhos de Deus, somos também herdeiros: herdeiros de Deus e co-herdeiros com Cristo[3].

A palavra trindade não consta nas narrativas do NT. Surgiu para sintetizar e inculturar estas narrativas, na filosofia greco-romana e suas altas e enfadonhas subtilezas.

O ser humano é a narrativa humana de Deus, a máxima unidade na máxima diversidade. A unidade não absorve nem destrói a diversidade. Na Trindade divina, as pessoas são todas diferentes, todas iguais, todas activas, todas livres, sem subordinação de umas às outras e em perfeita comunhão. Nesse mundo, não há dominadores e dominados.

A Igreja, como sacramento desse modo de Deus ser Deus, pode ser uma hierarquia de serviços, mas não uma hierarquia de pessoas que, actualmente, subordina as mulheres à dominação masculina. Não deixa Deus ser Deus.

Sem a procura, na sociedade e na Igreja, da máxima unidade na máxima diversidade, será sempre muito perigoso viver.





07. 06. 2020



[1] João Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas, Companhia das Letras, 2019
[2] 2 Ts 3, 10
[3] Rm 8, 14-17; Gal 3, 26-28