domingo, 28 de fevereiro de 2021

NÃO PODEMOS VIVER SEM TRANSFIGURAÇÕES Frei Bento Domingues, O.P.

1. Abraão estava redondamente enganado ao julgar que era de Deus a voz que lhe exigia a morte do seu único filho[1]. A dramaticidade criada por uma suposta ordem divina, exigindo a obediência louca e cega ao absurdo, é uma fantástica criação literária da mais pura desumanidade e, como tal, deveria ser lida e meditada para lá das aparências. Muitas leituras dessa narrativa dramática não se dão conta de que se trata de uma arte extraordinária para dizer que, da parte de Deus, nunca podem vir ordens de matar, embora abundem no Antigo Testamento.

Essa peça teológica, proposta hoje na Eucaristia, não é apenas para repudiar costumes ancestrais de loucura religiosa, que se alimentava de sacrifícios humanos, nem só para denunciar os actuais incitamentos à violência e à guerra, em nome de Alá, que fazem mais vítimas do que os repugnantes cultos da antiguidade. Também não deve servir para justificar as vergonhosas inquisições e guerras religiosas, no interior da história das igrejas cristãs.

Deve ajudar, pelo contrário, a descobrir e denunciar a sacralização de comportamentos sociais, económicos e políticos, que matam em série e às claras, em nome de concepções nada éticas, que banalizam a vida humana.  O Papa Francisco foi e é atacado, em certos ambientes, por mostrar que há economias que matam, que geram e alimentam desigualdades assassinas.

Não nos enganemos com os equivocados elogios à fé e à obediência cega de Abraão, usados, por vezes, para confundir o “sentir com a Igreja” com a obediência cega a todas as medidas das hierarquias eclesiásticas!

Estas considerações exigem a leitura de todo o capítulo 22 do Génesis. O fragmento proclamado na Missa de hoje é insuficiente para ver que não basta ler a Bíblia a correr. Exige demorada e meditada interpretação que será sempre falível, mas indispensável.

A Quaresma pode ser um tempo para nos purificarmos de todas as nossas idolatrias, tornando-nos livres para o mundo do Deus de Jesus Cristo. É a fé, a esperança e o amor no advento desse novo mundo que não nos deixa desesperar. Como diz Jorge de Sena, «Não desesperarei da Humanidade/ Por mais que o mundo, o acaso, a Providência, tudo/ à minha volta afogue em lágrimas e bombas/ os sonhos de liberdade e de justiça/ …esperarei ainda e sempre»[2]

Na longa Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya, faz a sua confissão: «Confesso que / muitas vezes, pensando no horror de tantos séculos / de opressão e crueldade, hesito por momentos / e uma amargura me submerge inconsolável. / Serão ou não em vão? Mas mesmo que o não sejam, / quem ressuscita esses milhões, quem restitui / não só a vida, mas tudo o que lhes foi tirado? (…) Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém / vale mais que uma vida ou a alegria de tê-la. / É isto que mais importa – essa alegria».

2. A 2ª leitura da Missa é tirada da famosa Carta aos Romanos. Paulo está inebriado do Espírito de Cristo, num mundo em dores de parto, mas nem por isso desespera: «Se Deus está por nós, quem será contra nós? … Quem irá acusar os eleitos de Deus? Deus é quem nos justifica! Quem irá condená-los? Jesus Cristo, aquele que morreu, mais, que ressuscitou, que está à direita de Deus é quem intercede por nós. … Estou convencido de que nem a morte nem a vida, nem os anjos nem os principados, nem o presente nem o futuro, nem as potestades, nem a altura, nem o abismo, nem qualquer outra criatura poderá separar-nos do amor que Deus nos tem em Cristo Jesus, Senhor nosso».

Paulo não se ocupou com o itinerário terrestre de Jesus, nas suas tentações, desilusões e incompreensão dos seus irmãos e dos próprios discípulos. O glorioso resultado final, a ressurreição, era a única coisa que lhe interessava.

A narrativa de S. Marcos pertence ao tempo da igreja cheia de problemas. É preciso mostrar que também a vida de Jesus foi uma vida verdadeiramente humana, agitada por problemas muito semelhantes aos que as comunidades cristãs sofrem. É normal que, às vezes, peçam sinais luminosos para caminhar. Também Jesus precisou de mostrar que havia uma luz ao fundo do túnel de todas as incompreensões e depressões. Também precisou de mostrar, ao contrário do que se dizia, que era Ele o centro de todas as esperanças de que falaram as mais prestigiosas figuras do Antigo Testamento. Ele não era um traidor ao que havia de melhor nessas Escrituras. Era algo de verdadeiramente novo. Nesse momento, as evocações da divindade eram a veste da sua humanidade. É bom ler o próprio texto:

«Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João e levou-os, só a eles, a um monte elevado. E transfigurou-se diante deles. As suas vestes tornaram-se resplandecentes, de tal brancura que lavadeira alguma da terra as poderia branquear assim. Apareceu-lhes Elias, juntamente com Moisés, e ambos falavam com Ele. Tomando a palavra, Pedro disse a Jesus: Mestre, como é bom estarmos aqui; façamos três tendas:  uma para ti, uma para Moisés e uma para Elias. Não sabia que dizer, pois estavam assombrados. Formou-se, então, uma nuvem que os cobriu com a sua sombra, e da nuvem fez-se ouvir uma voz: Este é o meu Filho muito amado. Escutai-o. De repente, olhando em redor, já não viram ninguém, a não ser só Jesus, com eles. Ao descerem do monte, ordenou-lhes que a ninguém contassem o que tinham visto, senão depois de o Filho do Homem ter ressuscitado dos mortos. Eles guardaram a recomendação, discutindo uns com os outros o que seria ressuscitar de entre os mortos».

Esta última observação mostra que nem todos os dias são Domingo.

3. É evidente que precisamos de acontecimentos que transfigurem os nossos momentos de desânimo em incitamentos a voltar a caminhar.

Em vez de nos queixarmos do que não há, importa descobrir e conhecer o que já está a caminho, no plano da inteligência da fé, no plano da ética pessoal, familiar, social e ecológica, no plano da criatividade em todas as formas de arte. Por outro, importa desenvolver condições e clima, nas comunidades cristãs, que estimulem a criatividade.

No Vaticano II, foi elaborado um documento sobre a Igreja no mundo contemporâneo, Gaudium et Spes. É um dos textos fundamentais e estruturantes desse Concílio. Não podemos esquecer que já passaram 60 anos. 60 anos de mudanças vertiginosas em muitos sectores da vida humana, a nível local e global.

Temos de dar graças a Deus porque o tempo de negação dos caminhos do Vaticano II recebeu um duro golpe com este pontificado. Bergoglio não perde nenhuma oportunidade para relançar, com todas as pessoas de boa vontade, a fraternidade universal, em que não fica de fora nenhuma das grandes questões do nosso mundo. O Papa não é a Igreja. É um dinamizador fantástico, mas não pode nem quer fazer nada sozinho. Reeditou, na prática, o velho aforismo cristão: nada do que é humano me é estranho.

 Precisamos de visitar as novas Ágoras que se abriram em Portugal.

 

 

28. Fevereiro. 2021

 



[1] Gn 22

[2] Jorge de Sena, A morte, o espaço, a eternidade, Assis, 1/4/961, sábado de Aleluia 

domingo, 21 de fevereiro de 2021

IGREJA DOMÉSTICA? Frei Bento Domingues, O.P.

 

1. Lembro-me, muitas vezes e por vários motivos, do padre João Resina, um homem muito inteligente e verdadeiramente livre. Trabalhámos juntos em alguns projectos e ficámos amigos para sempre. Movia-se, com grande argúcia e rigor, no campo das relações entre ciência, filosofia e teologia. Passou a maior parte do tempo como professor no Instituto Superior Técnico. Só muito tarde lhe entregaram uma paróquia, embora sempre tivesse desejado ser pároco.

A sua preocupação, no campo pastoral, era a catequese. Era ela a grande responsável por ideias e representações tontas que impediam o encontro com o devir cristão, no desenvolvimento humano, emocional, espiritual e cultural de várias gerações com quem contactava.

Sem abandonar as responsabilidades académicas, assumiu a direcção da catequese na paróquia do Campo Grande (Lisboa). Em 2007, numa entrevista[1], A. Marujo observou-lhe que «a ciência toca questões que, para muitos crentes, são vistas como atingindo as bases da sua fé: a criação, o big bang, a evolução, as questões éticas…». Reagiu imediatamente: «fale-se dessas coisas às crianças antes que se fale no liceu; e que se diga que uma coisa é tudo o que vem de Deus, que é a criação, e outra a maneira como o Universo evoluiu e que não tem nada a ver com religião.

«Nós dizemos que tudo o que existe depende da vontade de Deus. Como é que isso foi feito, se foi feito mais tarde ou mais cedo, se começou com o big bang ou doutra maneira, isso é da física e não da religião.

«Em relação à ética, há uns tipos da biologia que têm a mania que vão explicar a ética a partir do cérebro. Eu não acredito muito nisso. Mas ainda não entrou no domínio público, ainda não é um grande choque.

«A psicologia da profundidade e Freud: ele fez descobertas fundamentais. Como era ateu, puxou um bocadinho a brasa à sua sardinha, mas creio que se pode separar o que há de fundamental na psicanálise, a descoberta do inconsciente. Outra coisa é aderir ou não à tese de Freud de que a religião é uma neurose colectiva.

«Hoje, os mais hereges são os da biologia, porque estão encantados com as descobertas das últimas décadas, como aconteceu com a física no século XIX, sabia-se tudo. Hoje, os físicos sabem que sabem tão pouco, já não se atrevem a fazer disso bandeira».

Também se falava muito dos sacramentos da iniciação cristã, mas como causas automáticas de santificação e não como processos simbólicos de alteração da vida em todas a suas fases e dimensões. O P. Resina não gostava de liturgias farfalhudas. Era um austero. Prezava muito a oração pessoal e os percursos de alguns místicos. A causa dos pobres acompanhou-o sempre como realidade a enfrentar com poucas palavras e gestos concretos. 

Lembrei-me deste amigo, nestes tempos de confinamento, precisamente por causa da necessidade de uma catequese iniciática, evolutiva que, na situação actual, poderá exercer-se quase apenas no âmbito familiar, embora com várias dificuldades.

Muitas das comunicações que recebo têm a ver com pessoas que pedem que as ajude a agradecer a recuperação da saúde, rezar e celebrar a Eucaristia por pessoas e famílias em aflições e acompanhar amigos e familiares de pessoas que faleceram. Isto pelo telefone ou por email. Não sou perito em técnicas, que muito admiro, de liturgias online.

2. No contexto da pandemia, alguns pais disseram-me que são frequentemente interrogados e não sabem responder: para onde vão as pessoas quando morrem? Nunca mais as poderemos ver? A vida é assim para nada?[2]

Não são perguntas para responder, mas para ajudar a pensar tudo. Não me contento em dizer que estamos cá só para desenvolver este mundo e deixá-lo em melhores condições, do que aquelas em que o encontrámos, para as próximas gerações. Isso é, de facto, generosidade e pode justificar uma vida. As questões da ecologia são de carácter holístico, suficientemente graves, para convocar cientistas e investigadores com medidas políticas e culturais sobre o que todos podemos fazer pelo bem do Universo. Esta é uma problemática que se tornou óbvia, se nos quisermos encontrar com a nossa responsabilidade de existir.

A inquietação revelada pelas perguntas de alguns filhos aos pais católicos não se satisfaz só com essa problemática. A morte de familiares ou de amigos afecta-nos. É algo que parece também morrer em nós. Não podemos fazer de conta que as relações de verdadeira amizade são para esquecer. Os rituais ligados à morte – 7º dia, 30º dia… – não devem ser interpretados como os últimos gestos do esquecimento. É possível que, para muitas pessoas, sejam gestos de resignação pesarosa ao inevitável e mais nada.

Para os cristãos, não tem de ser assim, se tivermos em conta alguns pontos essenciais da nossa fé. Antes de mais, importa a purificação de algumas representações de Deus e do Além, como reproduções do modo de vida que temos debaixo dos nossos olhos e que teceu a nossa experiência, o ambiente cultural e religioso em que nos desenvolvemos, acolhendo-o, rejeitando-o ou passando a não praticantes.

A versão corrente era esta: morremos e vamos a contas. Segundo o velho catecismo, havia três hipóteses: ou se ia para o céu ou para o inferno ou para o purgatório, em sistema de prisão atormentada, mas temporária. A imaginação do limbo, para crianças que morreram sem o baptismo, foi desativada.

A revisão geral, que pode passar por múltiplas experiências de contraste, refere-se à descoberta do inabarcável mistério do mundo a que podemos dar o nome de Deus. Foi-nos revelado como mistério do puro amor. Por isso, de Deus nunca pode vir castigo. Deus não é temível. Temíveis podemos ser nós uns para os outros. A melhor metáfora para dizer Deus é a pura misericórdia sem condições. É ela que nos pode responsabilizar, radicalmente, pela nossa vida e pela dos outros.

Não rezamos a Deus para O convencer a gostar de nós e a satisfazer os nossos caprichos. Vai-se descobrindo a oração como abertura a Deus, mistério da vida, dom para nós e para os outros. Não é um negócio. É uma forma de viver a nossa errância.

3. Nesse sentido, o “céu”, o “reino dos céus”, são metáforas para reconhecer e acolher o próprio mistério de Deus – Jesus Cristo – na sua absoluta transcendência e radical imanência. Vamos descobrindo e esquecendo que Deus não está longe de nós e que nos é mais íntimo do que nós somos a nós próprios. Somos envolvidos por esse amor inabarcável e incondicional que, por ser amor, nunca se impõe. É Ele o nosso céu. S. Paulo descobriu isso pela boca de poetas gentios: na divindade vivemos, nos movemos e existimos[3].  Ir descobrindo, ao longo da vida e dos seus ziguezagues, que os amigos e familiares que nos morrem, sem exclusão de ninguém, entram no reino do infinito amor que está presente em toda a parte e, para o qual, ainda continuamos cegos.

A Quaresma começou na passada quarta-feira. Não esqueçamos que a realidade significada pelos signos da liturgia quaresmal não depende, necessariamente, dos ritos. Precede-os e ultrapassa-os. Teremos esta Quaresma e esta Páscoa para novas experiências do Evangelho, na igreja doméstica, aberta ao mundo.

 

21. Fevereiro. 2021



[1] Cf. Entrevista de A. Marujo, Revista Viragem, nº55-56, 2007, 40-49

[2] Já Dostoievski terminou Os Irmãos Karamazov com idênticas questões

[3] Act 17, 28

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

A invenção da esperança! Pe Armindo Janeiro


 Vivemos uma situação sanitária que torna penosas as relações humanas e coloca sob suspeita todos os nossos contactos, suspendendo, por isso, a vida comunitária nas suas diversas dimensões: social, profissional, cultural e religiosa, pela possibilidade real de cada um de nós ser vítima e transmissor deste inimigo invisível…


E os que partilham o mesmo tecto, na trama das relações familiares, não deixam de ter a mesma percepção, pois não há risco zero e o vírus não se faz anunciar…, apenas podemos saber onde está ou esteve. Resta-nos limitar ao máximo as possibilidades e quebrar as cadeias de transmissão. CONTINUAR A LER


Por P. Armindo Janeiro, ASDLeiria e Presidente da Direcção


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domingo, 14 de fevereiro de 2021

DEUS ENFRAQUECE A ENERGIA HUMANA? Frei Bento Domingues, O.P.

 

1. Carlos Drummond de Andrade, no grande poema-crónica, Prece do brasileiro, por ocasião da Taça do Mundo (1970), termina: «nem sei como feche a minha crónica». Eu, pelo contrário, não sei como abrir a minha. Não por falta de assunto, mas por excesso de motivações religiosas contraditórias.

Chegam-me, continuamente, pedidos para rezar por doentes em situações extremas e pelas famílias que não puderam acompanhar os últimos momentos das pessoas que mais amavam, por causa da Covid-19.

Recebi também alguns telefonemas, culpando a religião e a Igreja pelas cedências do Presidente da República, dos Deputados e do Governo ao sentimentalismo piegas do Natal. Cedências responsáveis por muitas mortes e o completo descontrole no combate à difusão da pandemia.

Esta conversa, embora muito repetida, parece-me bastante descontrolada.

Para certas correntes culturais, as religiões foram, são e serão sempre, em toda a parte, fontes e sistemas de alienação da responsabilidade humana. Não vale a pena reconhecer o bem fundado de muitas das acusações e das suspeitas desenvolvidas, no longo processo contra as religiões; nem adianta mostrar que esse processo talvez esteja mal desenhado, semeado de confusões e de esquecimentos essenciais à condição humana.

Não creio que seja o impulso humano de transcendência o grande responsável por estarmos tão longe de um mundo sem pobreza, sem desigualdades gritantes, sem doenças, sem mortes.  Pelo contrário. São as pessoas, que fizeram e fazem da sua existência uma vida-dada, que constituem um exemplo e uma fonte de esperança. Não são utopias, são evidências perante os nossos olhos.

Conheci e conheço muitas pessoas santas que não estão nem serão canonizadas. Mostram que existem formas de religião que robustecem a inteligência e a vontade de servir, de cuidar, sobretudo de quem mais precisa.

2. Para sair de impressões subjectivas, quero deixar, aqui, o testemunho de uma grande obra literária, na qual, a religião é a própria cura de quem a pratica.

Foi em Toulouse, em 1961, que li, pela primeira vez, Grande Sertão: Veredas. Essa edição foi oferta do meu confrade brasileiro, Fr. Mateus Rocha. Nunca me despedi desta obra-prima. O primeiro contacto não é fácil, mas, quando se entra naquele mundo, é difícil abandoná-lo. Continua comigo.

Aqui ficam alguns fragmentos dessa religião sertaneja, feita de muitas peças, mas, como é evidente, sem poder reproduzir o contexto narrativo desses fragmentos[i].

Riobaldo Rosa é o seu grande teólogo narrador. Tem consciência de que «viver é muito perigoso» e que a vida da gente nunca tem termo real. Procura decifrar as coisas que são importantes: «Queria entender do medo e da coragem, e da gã que empurra a gente para fazer tantos atos, dar corpo ao suceder».

O que predomina na fala de Riobaldo é o sertão forma de vida, um jeito de ver as coisas e de se comportar: «O sertão é o dentro da gente».

Diz Riobaldo: «O que mais penso, testo e explico: todo-o-mundo é louco. O senhor, eu, nós, as pessoas todas. Por isso, é que se carece principalmente de religião: para se desendoidecer, desdoidar. Reza é que sara da loucura. No geral, isso é que é a salvação-da-alma… Muita religião seu moço! Uma só, para mim, é pouca. Talvez não me chegue. Rezo cristão, católico, embrenho a certo; e aceito as preces de compadre meu Quelemém, doutrina dele, de Cardéque. Mas quando posso, vou no Mindubim, onde um Matias é crente, metodista: a gente se acusa de pecador, lê alto a Bíblia e ora, cantando hinos belos deles. Tudo me aquieta, me suspende. Qualquer sombrinha me refresca. Mas é só muito provisório».

Isto pode parecer relativismo religioso. Julgo que é, apenas, o encontro com o Essencial, nas muitas e variadas mediações do divino.

Para ele, o ser humano não está pré-determinado: «O senhor… Mire, veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Afinam e desafinam: Verdade maior. É o que a vida me ensinou. Isso me alegra, montão. E, outra coisa: o diabo é às brutas, mas Deus é traiçoeiro! Ah, uma beleza de traiçoeiro – dá gosto! Deus é paciência. Deus que roda tudo. Deus vem, guia a gente por uma légua, depois, larga. Então, tudo resta pior que que era antes. Esta vida é de cabeça-para-baixo, ninguém pode medir suas perdas e colheitas. É preciso de Deus existir a gente, mais; e do diabo divertir a gente com a sua dele nenhuma existência».

Neste grande romance, não se discute, de forma abstracta, se Deus existe ou não existe. É uma evidência tumultuosa: «Que Deus existe, sim, devagarinho, depressa. Ele existe – mas quase só por intermédio da ação das pessoas: dos bons e maus. Coisas imensas no mundo. O grande-sertão é a forte arma. Deus é um gatilho? Então, onde é que está a verdadeira lâmpada de Deus, a lisa e real verdade? Deus é urgente, sem pressa. O sertão é dele».

3. Surge depois um longo arrazoado. Resume essas reflexões que vão pontuando a história dos acontecimentos e dos comportamentos das pessoas com interrogações que se desdobram sempre em novas interrogações: «Como não ter Deus?! Com Deus existindo, tudo dá esperança: sempre um milagre é possível, o mundo se resolve. Mas, se não tem Deus, há de a gente perdidos no vaivém e a vida é burra. É o aberto perigo das grandes e pequenas horas, não se podendo facilitar – é todos contra os acasos. Tendo Deus, é menos grave se descuidar um pouquinho, pois, no fim, dá certo. Mas se não tem Deus, então, a gente não tem licença de coisa nenhuma! Porque existe dor. E a vida do homem está presa, encantoada – erra rumo, dá em aleijões como esses, dos meninos sem pernas e braços. Dor não doi até em criancinhas e bichos, e nos doidos – não doi sem precisar de se ter razão nem conhecimento? E as pessoas não nascem sempre? Ah, medo tenho não de morte mas de ver nascimento. Medo do mistério. O senhor não vê? O que não é Deus é estado do demónio. Deus existe mesmo quando não há. Mas o demónio não precisa de existir para haver – a gente sabendo que não existe é que ele toma conta de tudo. Deus vem vindo: ninguém não vê. Ele faz é na lei do mansinho – assim é o milagre. E Deus ataca bonito, se divertindo, se economiza».

Volta, depois, à importância ontológica e purificadora da religião: «O existir da alma é a reza… quando estou rezando, estou fora de sujidade, à parte de toda a loucura. Ou o acordar da alma é que é?

 «Somente, não ache que religião afraca. Senhor, ache o contrário. E dar tudo a Deus, que de repente vem, com novas coisas mais altas, e paga e repaga, os juros dele não obedecem medida nenhuma. Deus é alegria e coragem – que Ele é bondade adiante, quer dizer».

Nesta religião, o Amor vem sempre acompanhado de justiça. É ele que faz madrugar e amanhecer.

Neste universo, não há conflito entre a afirmação religiosa e a afirmação humana. Não são rivais, fortalecem-se mutuamente. É o testemunho desta grande e difícil obra da literatura brasileira.

 

 

14. Fevereiro. 2021

 



[i] João Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas,

sábado, 13 de fevereiro de 2021

As bolachas do casamento - UAASP


 "Na Gândara (Figueira da Foz) dos anos cinquenta, casar era um 'rito de passagem' da maior importância comunitária que, finalmente, conferia ao 'rapaz' o pleno estatuto de 'homem'!

Normalmente combinado durante uma ceia, para o efeito ajustada em casa de um dos casais de 'parceiros', o casamento era marcado – com cerca de um ano de antecedência – para um sábado dos meses de inverno. 

Em tal época, todas as colheitas estavam feitas, engordado o carneiro que cada uma das famílias tinha comprado para o grande dia e, considere-se, os dias eram mais pequenos, o que ocasionava menor despesa com comida e bebida para os convidados..." VER MAIS

Por Elias Quadros, AAASDCoimbra


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domingo, 7 de fevereiro de 2021

AI DE MIM SE NÃO AJUDAR A NASCER A ALEGRIA Frei Bento Domingues, O.P.

 

1. Cabe à inteligência prática saber adaptar-se. A pandemia mundial parece dizer-nos que, se não soubermos adaptar-nos a viver na cadeia – que as medidas se segurança exigem –, arriscamo-nos a ser suas vítimas e a fazer mais vítimas, correndo o perigo de servirmos a morte até aos próprios amigos e familiares.

Na cadeia, dizia um prisioneiro, importa cultivar a saúde mental, a saúde espiritual e a saúde física. São medidas e artes para conquistar a liberdade no dia a dia do cativeiro, para não acabarmos derrotados quando se abrirem as portas da prisão.

Para a saúde espiritual, recorro a uma antífona da Liturgia das Horas, feita de pura serenidade: Salvai-nos, Senhor, quando velamos e guardai-nos quando dormimos, para estarmos vigilantes com Cristo e descansarmos em paz. É seguida de uma oração igualmente bela: Iluminai, Senhor, esta noite, concedei-nos um descanso tranquilo, para que, amanhã, nos levantemos em vosso nome e possamos contemplar alegres e felizes o nascer de um novo dia.  

A religião não dispensa o bom senso. Importa resistir à demagogia e ao sadismo de certas vozes, especializadas em semear a confusão, para defender interesses que não coincidem com os da população mais carenciada.

Como observa o Professor do IST e presidente do Inesc, Arlindo Oliveira, antes da Internet, as opiniões das pessoas menos qualificadas, sobre os mais diversos assuntos, não tinham impacto global. Com a evolução das tecnologias, o aparecimento da chamada Web 2.0 trouxe consigo a possibilidade de qualquer um poder criar conteúdos de grande impacto, independentemente da sua competência ou familiaridade com os assuntos. Como tinha dito Umberto Eco, as redes sociais deram voz a uma “legião de imbecis”.

Para o referido Professor, é inegável que a qualidade e a profundidade da discussão política, económica e social são prejudicadas por esta cacofonia. As vozes dos especialistas acabam por ser abafadas pela multidão de peritos instantâneos que aparecem de um momento para o outro, qualquer que seja o assunto.

E acrescenta: em nenhuma área isso é mais visível do que no apaixonante tema da pandemia, da sua evolução e das medidas que devem ser tomadas. Apesar da complexidade do problema, apareceram centenas de milhares de epidemiologistas instantâneos nas redes sociais, com certezas absolutas sobre a evolução futura da epidemia e sobre as medidas que devem ou não ser tomadas. Estes “especialistas” impedem, na prática, que se ouçam devidamente as vozes das poucas pessoas com significativa experiência de gestão e planeamento na área da Saúde Pública[1].

Uma coisa é a democratização do saber, da ciência, da cultura, outra é a democratização da confusão interessada em criar o caos social, para dar voz a falsos profetas e poder a falsos salvadores.

Perguntaram a Luís Menezes, presidente da Unilabs-Portugal – entre 2009 e 2014 foi deputado da Assembleia da República pelo PSD –, como via a gestão da pandemia: Não queria estar no lugar de quem está a decidir. De todos os momentos da nossa história, se pudéssemos escolher algum, este é aquele em que ninguém gostava de estar a tomar decisões, porque são decisões de crítica muito fácil. O Governo geriu muito bem a primeira vaga da pandemia, mas não viu chegar a segunda, tal como nenhum governo europeu viu.  A questão do Natal foi muito mal gerida pelo Governo e por todos os partidos políticos. Acho vergonhoso ver agora os partidos políticos – que antes disseram que o Governo fazia bem em não pôr limitações ao Natal – virem dizer que a culpa disto é do Natal e do fim do ano. Tendo estado na política anteriormente, mas estando atento, é algo que me mete muita confusão[2].

2. Na liturgia de hoje, surge um fragmento do extraordinário livro de Job, a voz do sofrimento que não se rende aos teólogos que sabem sempre tudo, sem nunca se interrogarem: Deus recompensa os bons e castiga os maus. A sua própria experiência de sofrimento inocente é a prova de que essa teologia, defendida pelos seus amigos, não ouve os gritos da dor.

Vale a pena escutar essa voz dorida e inconformada: «A vida do homem sobre a terra, não é ela uma luta? Não são os seus dias como os de um assalariado? Como um escravo suspira pela sombra e o jornaleiro espera o seu salário, assim eu tive por quinhão meses de sofrimento e couberam-me em sorte noites cheias de dor. Se me deito, digo: 'Quando chegará o dia?' Se me levanto: 'Quando virá a tarde?' E encho-me de angústia até chegar a noite. A minha carne cobre-se de podridão e imundície, a minha pele está gretada e supura. Os meus dias passam mais rápido que a lançadeira e desaparecem sem deixar esperança. Lembra-te de que a minha vida é um sopro, e os meus olhos não voltarão a ver a felicidade»[3]. É importante ler todo o livro, uma das grandes criações literárias e do questionamento teológico da humanidade.

3. Na mesma celebração, S. Paulo irrompe com uma exclamação que importa procurar entender: anunciar o Evangelho não é, para mim, um título de glória, é uma obrigação que me foi imposta. Ai de mim se não anunciar o Evangelho![4]

Esta obrigação é não é um peso. Não a cumpre como um funcionário, pois ela constitui a descoberta mais profunda da sua vida: partilhar a graça da alegria recebida. Isto é a essência do Evangelho que pode revestir muitas formas.

A seguir, na mesma liturgia, é proclamado o Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo S. Marcos. Hoje, aparece uma narrativa que tem dado muitas histórias hilariantes sobre a sorte de algumas sogras. Conta-se que Jesus saiu da sinagoga e foi para casa de Simão e André, com Tiago e João.  Acontece que a sogra de Simão estava de cama, doente, com febre. Jesus, aproximando-se, tomou-a pela mão, levantou-a e a febre deixou-a. Mas a narrativa não acaba aqui. O melhor estava para acontecer.

A sogra não ficou a gozar, de forma egoísta, a saúde gratuitamente recebida. O texto procura realçar algo de essencial: a sogra de Pedro começou logo a servi-los. São, hoje, muitos os testemunhos de profissionais da saúde que, tendo sido vítimas da Covid-19, uma vez curados, voltaram imediatamente ao serviço.

A pronta disponibilidade para o serviço dos outros constitui a verdadeira alegria do Evangelho de Cristo que continua.

A sua realidade não se cumpre com palavras e mais palavras[5], sem consequências, sem alterar o mundo do sofrimento. A alegria do Evangelho nasce e realiza-se a cuidar, a ouvir, a consolar, a curar[6].

 

 

 

 

07. Fevereiro. 2021



[1] Cf. Público, 01.02.2021

[2] Cf. Público, 03.02.2021

[3] Jb 7, 1-7

[4] 1Cor, 9, 16-23

[5] Cf. 1Cor 13

[6] Mc 1, 29-39