domingo, 31 de outubro de 2021

UM LIVRO PRODIGIOSO Frei Bento Domingues, O.P.

 

1. Na crónica do Domingo passado, referi-me a um belo livro de Eduardo Paz Ferreira, Como salvar um mundo doente[1], com o qual aprendi muito. Cumpre o que o título promete. Agora, acabo de ler o livro mais recente de Thimothy Radcliffe, A arte de viver em Deus[2]. Este título poderia sugerir a banalidade de mais uma obra para a estante de auto-ajuda espiritual. O subtítulo, A imaginação cristã para elevar o real, também não parece muito convidativo. Puro engano. O próprio autor está consciente dessa possível confusão. Quando as pessoas se afastam das igrejas, é uma tentação «vender» um Cristianismo bonito e seguro, não demasiado exigente. Talvez uma espiritualidade gentil seja mais simpática e sedutora: acender uma vela e ver onde se está no eneagrama da personalidade. O apelo da fé torna-se apenas uma sugestão sem compromisso.

Julga que semelhante publicidade e comercialização do Cristianismo está condenada a falhar, sobretudo, porque a espiritualidade cristã é tudo, menos uma segurança. Uma fé domesticada atraiçoa o que constitui o seu âmago que é a aventura da transcendência. O Cristianismo é atractivo porque nos convida a ser ousados e a entregar incondicionalmente as nossas vidas. É a porta aberta para o infinito. A imaginação é a porta pela qual nos furtamos aos limites de qualquer modo reducionista de ver a realidade.

Já esperava que fosse um livro de grande qualidade teológica, respirando as difíceis questões da nossa humanidade contemporânea. Conheço e admiro muito o autor, traduzido em 24 línguas. Encontrei-o em vários países, onde ele tinha sido convidado para abrir esperança em situações muito complexas.

Timothy Radcliffe é um dominicano, nascido em Londres, em 1945. Entrou na Ordem dos Pregadores em 1965. Estudou em Oxford e Paris. Como biblista e teólogo, ensinou e ensina em Oxford. Tornou-se um dos mais notáveis autores cristãos contemporâneos. É Doutor Honoris Causa por doze Universidades. Percorreu o mundo como Mestre-Geral dos Dominicanos, entre 1992 e 2001. Actualmente, é consultor do Pontifício Conselho «Justiça e Paz», sendo solicitado para conferências e palestras em muitos países.

 Não é um autor desconhecido entre nós. A Paulinas Editora já traduziu e publicou 7 das suas obras, entre elas, Ser cristão para quê? (2011), Prémio Michael Ramsey 2007, para a melhor obra teológica.

2. Com A arte de viver em Deus, o autor pretende indagar como é que a fé cristã pode ter sentido para os nossos contemporâneos. Os crentes não habitam numa bolha imaginária e bizarra, desligada das experiências e das aspirações das demais pessoas. Como se trata de escolher a vida, a plenitude da vida, as suas crenças nucleares cruzam-se com as esperanças e os sonhos de todos os que querem viver, e não apenas sobreviver. Qualquer pessoa, independentemente da sua crença (ou falta dela), que entenda a complexidade do estar vivo, de se enamorar, do mergulhar na confusão, do tentar começar uma outra vez a sua vida, do encarar a doença e a velhice, pode também ajudar os cristãos a captar o sentido da nossa fé.

A ciência pode, neste esforço, ser nossa aliada. Albert Einstein foi um pensador tremendamente imaginativo. A imaginação é mais importante do que o conhecimento. De facto, o conhecimento restringe-se a tudo o que agora conhecemos e compreendemos, ao passo que a imaginação abarca o mundo inteiro, e tudo quanto existirá para conhecer e compreender. Segundo Paul Kalanithi, a ciência talvez forneça o modo mais útil de organizar dados empíricos que se podem reproduzir, mas este seu poder é incapaz de apreender os aspectos mais centrais da vida humana: esperança, medo, amor, ódio, beleza, inveja, honra, fraqueza, esforço, sofrimento, virtude.

É um livro prodigioso porque percorre as grandes e diversas expressões do Cristianismo que alargam, elevam e libertam a imaginação e como também são libertadas por ela. O Cristianismo fecunda e é fecundado pela imaginação aplicada à vida, de muitos modos. Ao libertar das rotinas, mesmo das pseudo-religiosas, manifesta as virtualidades criativas da fé cristã.

Confessa: há muito que desejava escrever este livro, pois o grande desafio que nós, cristãos, enfrentamos é justamente o de saber como tocar a imaginação dos outros. Muitos jovens afastam-se do Cristianismo, não porque terminantemente não creiam, mas porque o consideram enfadonho! O Evangelho é frequentemente experimentado como um rosário de imposições e não como um desafio! Queria escrever um livro que fosse capaz de comunicar a emocionante aventura da fé.

Não sei como será em Portugal, mas aqui em Inglaterra vive-se uma verdadeira obsessão com a segurança. Não se pode correr riscos, para não se ser processado! Mas o Cristianismo é intrinsecamente a religião do risco, como na verdade o é todo o amor. Um dos meus irmãos, Herbert McCabe, gostava muito de dizer: Se amares, poderás magoar-te e até sofrer a morte. No entanto, se não amas, já estás morto! Se demonstrarmos que a nossa fé nos convida a seguir o perigoso caminho de Jesus, e que isso nos poderá custar tudo, as pessoas até podem não a acolher, mas jamais a poderão recusar por ser enfadonha!

3. Escreveu este livro há seis anos, quando teve cancro pela primeira vez. Estava nervoso por não o ter escrito tão bem quanto desejaria, mas confiava que seríamos suficientemente gentis para ignorar as suas falhas. Neste momento, com cancro novamente, está a escrever um outro livro: um diálogo com um jovem dominicano polaco, perito em Sagrada Escritura, sobre as conversas com Deus na Bíblia.

Manifesta-se muito feliz e grato pela tradução deste seu livro, pois, sangue português corre nas suas veias: um dos meus bisavôs veio, há 150 anos, estudar para Inglaterra, casou com uma inglesa e acabou por cá ficar.

A arte de viver em Deus foi apresentada, na Brotéria, no passado dia 20, pelo Padre José Frazão Carreira, SJ, ex-Provincial, que fez um erudito prefácio à tradução portuguesa, e pelo Frei José Nunes, O.P., Provincial dos dominicanos.

Chamei prodigioso a este livro. Não é exagero. Cada capítulo podia ser um livro, mas o conjunto é uma biblioteca. É um incêndio da imaginação de Timothy e de todos os autores que convoca.

Timothy Radcliffe, ao concluir esta sua obra mais recente, escreve: Comecei por perguntar como é que poderemos tatear a imaginação dos nossos contemporâneos seculares com a nossa fé cristã. Como todos somos filhos desta era e modelados pelas suas percepções seculares da realidade, também os cristãos, no esforço de viver vidas coerentes, precisam de reflectir sobre o modo como a luz da fé sustentará tudo o que fazemos e somos. Nada de humano é estranho a Cristo.

Aquilo que arruína a fé em Deus não é o ateísmo ou o secularismo, em quanto tal, mas aquilo que Adolfo Nicolás, SJ, chamou a globalização da superficialidade.

Disse que A arte de viver em Deus é um livro prodigioso, não só porque desfaz muitos preconceitos acerca daquilo em que os cristãos acreditam, mas sobretudo, porque abre, em todos os capítulos, janelas para o passado, para o presente e para o futuro.

 

 

31. Outubro. 2021



[1] Edições 70, 2021

[2] Paulinas, 2021

domingo, 24 de outubro de 2021

RESSUSCITAR UMA AURORA DE ESPERANÇA Frei Bento Domingues, O.P.

 

1. Mais vale tarde do que nunca! Havia a impressão de que as lideranças da Igreja, em Portugal, andavam meio distraídas e não seria a convocatória do Sínodo de toda a Igreja que as iria despertar. Engano. No Domingo passado, fomos surpreendidos por intervenções notáveis de alguns bispos e a adesão explícita de quase todas as dioceses ao projecto 

desafiante de Bergoglio.

Dir-se-á que foi apenas a voz da hierarquia, mas o interessante está precisamente aí. Foi ela a dizer claramente que este Sínodo é para acabar com o domínio clerical. Vale a pena registar essas vozes.

Destaco as homilias de D. Jorge Ortiga, arcebispo de Braga, e a do Cardeal António Marto, bispo de Leiria-Fátima[i].

D. Jorge disse explicitamente: a Igreja «passou por muitas configurações, mais ou menos de índole piramidal e de estrutura de sociedade perfeita onde tudo acontece e se idealiza a partir de uns tantos pré-escolhidos. Como Povo de Deus temos sido conduzidos por Pastores dotados de autoridade divina e agora as exigências de uma nova era mostra que o Povo de Deus tem de interpretar a responsabilidade que Deus lhe concede. Devemos passar da passividade e obediência a um compromisso corresponsável no pensar e no agir».

Apontou o que deve ser uma Igreja no nosso mundo contemporâneo: «vamo-nos ouvir, mas abramos, também, os ouvidos ao mundo. Não são suficientes os nossos raciocínios intra-eclesiais. Teremos de sair e não basta sair para ouvir como cronistas. Precisamos de sair para ouvir a voz do mundo a partir de dentro. Deixemos que ele fale e nos aponte as nossas incongruências e infidelidades. Pode custar muito e poderemos não ter vontade de ouvir. Mergulhemos no mundo e deixemos que manifeste as suas insatisfações e expectativas. Não coloquemos filtros. (…) Aproximemo-nos. Saiamos das nossas zonas de conforto. Já estamos cansados de ouvir as nossas vozes e as nossas apreciações. Escutemos e, sobretudo, inventemos maneira para que o façam. Seremos capazes? (…) Precisamos de nos preparar para concretizar uma conversão sinodal. Não bastará falar por falar. Oferecer ideias interessantes e inovadoras, mas depois continuamos com os mesmos processos de uma igreja autorreferencial e piramidal, com a verdade em poucas pessoas».

No santuário de Nossa Senhora do Alívio, pediu «que suscite no coração dos sacerdotes, membros dos conselhos económicos, catequistas, pessoas da liturgia e da caridade e, sobretudo, nas equipas arciprestais e paroquiais este compromisso de ressuscitar uma aurora de esperança. Não podemos continuar no pessimismo e alarmismo, no desencanto e desânimo, no deixar correr esperando que apareça um Messias salvador. Um mundo novo deve nascer e é preciso que nasça por nosso intermédio. Poderá parecer que a Igreja não tem grandes possibilidades. A história mostra que foi nos momentos de crise que a Igreja manifestou a originalidade da sua mensagem».

Da diocese Leiria-Fátima, ouvimos o Cardeal António Marto de quem já sabíamos a sua adesão à linha do Papa Francisco. Agora, em três momentos convergentes, foi muito incisivo, quer na Nota Pastoral (14/10/21), quer na Assembleia Diocesana, quer na homilia (17/10/21). Fez apelo ao «discernimento comunitário» para fazer face «às tentações do clericalismo, da rigidez e do sectarismo», e encontrar «consensos num processo espiritual de escuta.

«Esta atitude marca uma visão da Igreja: convida a passar de um modelo de Igreja clerical, a um modelo sinodal, baseada na corresponsabilidade de todos os fiéis leigos, fiéis padres, fiéis bispos, e fiel sucessor de Pedro».

Lembrou que, já na comunidade apostólica, Jesus Cristo teve de contrariar os seus discípulos, movidos pela ambição de lugares de honra, privilégios, prestígio, fama, poder e grandeza, que só podia gerar rivalidades entre eles. A Igreja tinha de entender o mestre que não veio para ser servido, mas para servir e dar a vida por todos[ii].

Insistiu que «a meta deste caminho [sinodal] é uma Igreja missionária, de portas abertas e em direção às periferias. Estamos muito habituados a dizer vinde à Igreja, mas Jesus disse ide. Até o Papa Francisco diz que a Igreja tem Jesus prisioneiro e ele quer sair, quer ir às periferias».

Não tenhamos medo: «O Espírito Santo está activo na vida da Igreja para tornar vivo o evangelho e pode acender um fogo mesmo com lenha molhada», mas não dispensa a nossa colaboração. Não basta começar. Dois anos passam depressa e são incompatíveis com a nossa lentidão. Seria criminoso deixar passar esta oportunidade.

2. É sempre possível que surja uma tensão entre o local e o global. Importa que a tensão não se transforme em conflito fratricida. Na Fratelli Tutti, o Papa Francisco, lembrando a Evangelii Gaudium, acautela esse perigo. Reconhece que «é preciso prestar atenção à dimensão global para não cair numa mesquinha quotidianidade. Ao mesmo tempo convém não perder de vista o que é local, que nos faz caminhar com os pés por terra. As duas coisas unidas impedem de cair em algum destes dois extremos: o primeiro, que os cidadãos vivam num universalismo abstrato e globalizante (...); o outro extremo é que se transformem num museu folclórico de “eremitas” localistas, condenados a repetir sempre as mesmas coisas, incapazes de se deixar interpelar pelo que é diverso e de apreciar a beleza que Deus espalha fora das suas fronteiras. É preciso olhar para o global, que nos resgata da mesquinhez caseira. Quando a casa deixa de ser lar para se tornar confinamento, prisão, resgata-nos o global, porque é como a causa final que nos atrai para a plenitude. Ao mesmo tempo temos de assumir intimamente o local, pois tem algo que o global não possui: ser fermento, enriquecer, colocar em marcha mecanismos de subsidiariedade. (…) Separá-los leva a uma deformação e a uma polarização nociva»[iii].

3. O Papa, nas suas intervenções, é um exemplo da simultânea atenção às questões locais e globais. Lembro, nesse sentido, o seu notável Discurso aos Membros do Corpo Diplomático[iv] e a recente Mensagem para os Movimentos Populares[v]. São peças essenciais para que o Sínodo não perca de vista os muitos mundos que se albergam sob a palavra mundo.

Para Bergoglio, a pandemia mostrou-nos «a fisionomia dum mundo doente não só por causa do vírus, mas também no meio ambiente, nos processos económicos e políticos, e mais ainda nos relacionamentos humanos. [A pandemia] salientou os riscos e as consequências duma forma de viver dominada pelo egoísmo e a cultura do descarte e colocou-nos perante uma alternativa: continuar pela estrada percorrida até agora ou empreender um novo caminho».

É este novo caminho que importa descobrir, na própria dinâmica do caminho sinodal, se queremos ressuscitar uma aurora de esperança.

 

 

 

24. Outubro. 202


[i] Manuel Pinto apresentou um panorama interessantíssimo do que aconteceu no lançamento do Sínodo nas dioceses portuguesas. Cf. 7Margens de 18/10/2021.

[ii] Mc. 10, 35-45

[iii] Fratelli Tutti, 142

[iv] 08 / 02 / 2021. Sente-se a importância deste Discurso no belo livro de Eduardo Paz Ferreira, Como salvar um mundo doente, Edições 70, 2021

[v] 16 / 10 / 2021

segunda-feira, 18 de outubro de 2021

ESPERAR CONTRA TODA A ESPERANÇA Frei Bento Domingues, O.P.

 

1. No passado dia 10, foi aberto, oficialmente, um novo Sínodo da Igreja Católica (2021-2023). A palavra sínodo deriva de dois termos gregos: syn (juntos) e hodos (caminho), isto é, caminhar juntos. A seguir ao Concílio Vaticano II, o Papa Paulo VI, a 15 de Setembro de 1965, instituiu o Sínodo dos Bispos, para continuar o acontecimento mais importante da Igreja Católica do século XX. Até hoje, foram realizados 29 sínodos.

 O que o Papa Francisco inaugurou, agora, não pertence propriamente a essa série. Pretende ser um Sínodo de toda a Igreja Católica e aberto a toda sociedade. É a maior consulta celebrada na história do catolicismo. Cerca de 1300 milhões de católicos estão chamados a exprimir-se sobre o futuro da Igreja num processo que vai durar dois anos. É cedo para conhecer a resposta a esta extraordinária convocatória. Terá de ser avaliada segundo os continentes, os países e as dioceses do mundo católico que representa metade de todos os cristãos.

Não se pense que, na tradição cristã, isto de consultar a opinião pública seja uma novidade absoluta. Segundo os Evangelhos sinópticos, foi o próprio Jesus que a iniciou. Num momento difícil do seu itinerário, quis saber, não só o que pensavam os seus discípulos acerca dele, mas também o que diziam as multidões[1].

Perante o desejo do Papa Francisco, as expectativas são diferentes a todos os níveis e em todas as latitudes. O 7Margens fez um inquérito, enviado aos seus assinantes entre 24 de Setembro e 4 de Outubro de 2021. O questionário esteve também acessível a partir do próprio site do 7Margens. Recebeu 1.036 respostas válidas analisadas pelo seu grupo editorial: «Apesar de largamente cépticos (69,82%) em relação às mudanças que o Sínodo que agora começou provocará na Igreja Católica em Portugal e embora discordando (46,38) das práticas de participação existentes na comunidade católica, a esmagadora maioria dos leitores do 7Margens desejam que ao longo deste processo sejam auscultados todos os homens e mulheres que tomem a iniciativa de se pronunciar (47%) ou que sejam ouvidos não apenas o clero e as pessoas consagradas, mas também todos os leigos e leigas (42%)[2].

Esta iniciativa não precisa de ser aplaudida. Precisa de ser tomada a sério para que provoque muitas outras que ajudem a vencer o cepticismo e a indiferença acerca da maior consulta da história do Cristianismo.

 No passado dia 12, em Fátima, numa conferência de imprensa, o Cardeal António Marto, revelou não só a sua fervorosa adesão a este Sínodo, mas também destacou a resistência passiva, não ideológica, na Igreja Católica em Portugal. A resistência passiva é a forma mais eficaz para que nada aconteça e sem que se possam identificar os responsáveis desse boicote.

Não se pode esquecer que, em Portugal, o Concílio Vaticano II (1922-1965), não foi preparado, não foi acompanhado nem levado a sério na Pastoral da Igreja. Não vale a desculpa de que vivíamos em ditadura e tínhamos um grande bispo no exílio. Era precisamente essa situação que exigia uma ruptura clara com regime do católico Salazar, que mantinha 3 frentes de guerra, presos políticos e a fuga clandestina do nosso pobre mundo rural.

Seria um desastre se deixássemos acontecer, com o Sínodo, o que se passou com a sorte do Concílio entre nós. Mas seria um desastre ainda maior se aceitássemos a situação morna da Igreja em Portugal como uma fatalidade.

2. Este Sínodo exige um processo de viragem, não de lamentações. O próprio da Igreja, numa situação destas, é dar-se conta que precisa de uma conversão radical. Não é a bênção do que já existe, embora deva ser reconhecido e destacado tudo o que há de positivo. Mas o Sínodo é sobre o que falta e é sobre o que falta que é preciso fazer das famílias, das paróquias, das instituições católicas, do grupo de amigos, da sociedade em geral, instâncias de escuta, de análise das situações e despertar as possibilidades amortecidas. Precisamos de promover uma santa agitação em todo lado. Nunca se pode dizer “aqui não há nada a fazer”. Foi numa situação limite que S. Paulo cunhou a expressão: esperar contra toda a esperança[3]. Porquê?

Porque, em primeiro lugar, é preciso acreditar que o Sínodo é um imperativo do Espírito de quem venceu a morte, Espírito de ressurreição. Temos de saber, hoje, o que este Espírito diz às nossas igrejas porque, como há dois mil anos, umas estão vivas e outras meio mortas[4].

Creio no Espírito Santo que é dado, não só às igrejas, mas a todas as pessoas que O acolherem. O Espírito de Deus não dispensa ninguém de trabalhar por um mundo diferente, pela cura do nosso mundo doente[5]. O Espírito de Deus não é uma reserva de alguns privilegiados, dentro ou fora das igrejas. Se não nos escutarmos uns aos outros, e não só os da nossa capelinha, tornamo-nos sectários. Não nos pertence impor condições, regras e caminhos à liberdade do Espírito. Seria uma pretensão absurda. Não deixamos espaço para o imprevisível. Esquecemos que o Espírito sopra onde quer. Não escutamos, julgamos que podemos dar ordens ao próprio Deus. Se escutarmos a imensa diversidade de situações das pessoas, nas diferentes culturas e maneiras de ser, vamos encontrar grandes e belas surpresas que vencerão as nossas presunções.

3. Se o Sínodo deve procurar envolver toda a Igreja e escutar as vozes preocupadas com o futuro, não posso esquecer o livro de Boaventura de Sousa Santos, O Futuro Começa Agora[6]. Pretende ser um diagnóstico crítico do presente e uma memória do futuro. A pandemia intensificou as desigualdades e as descriminações sociais que caracterizam as sociedades contemporâneas e deu-lhes maior visibilidade.

Por outro lado, uma Comissão de 100 personalidades está a promover uma Jornada Nacional, Memória & Esperança 2021, de Homenagem às vítimas da pandemia, que «visa mobilizar a sociedade portuguesa e suscitar a participação de todas as pessoas e instituições que o desejarem. A jornada visa dar densidade, rosto, vida e sentido colectivo aos números, estatísticas e gráficos com que todos fomos confrontados desde março de 2020. De modo especial, a jornada propõe-se prestar tributo aos que partiram, acolher o sofrimento e as narrativas dos que foram afectados pela pandemia e suas consequências e celebrar e agradecer a todos os que cuidaram da saúde e minoraram o sofrimento e a dor de tantos. Será também uma iniciativa para afirmar a vontade de viver em comunidades que não querem deixar ninguém para trás. A jornada ocorrerá no fim-de-semana de 22-23-24 de outubro de 2021 em um ou mais destes dias, podendo extravasar para dias anteriores ou posteriores».

Com o Alto Patrocínio do Presidente da República, foi publicado um Manifesto que pode ser lido e subscrito[7].

Temos razões para esperar contra toda a esperança.

 

 

17. Outubro. 2021



[1] Lc 8, 18-21; Mt 16, 13-20; Mc 8, 27-30

[2] Remetemos para a leitura completa desse importante documento, https://setemargens.com

[3] Rm 4, 18

[4] Cf. Ap 2

[5] Cf. Eduardo Paz Ferreira, Como Salvar um Mundo Doente, Edições 70, 2021

[6] Boaventura Sousa Santos, O Futuro Começa Agora. Da Pandemia à Utopia, Edições 70, 2021