segunda-feira, 30 de maio de 2022

HÁ DESIGUALDADES QUE MATAM Frei Bento Domingues, O.P.

 

1. Vivemos, como humanos, na e através das experiências da linguagem ou, melhor, das linguagens. A significação das nossas concepções, afirmações e negações depende do seu uso. O uso profano e religioso não são da mesma ordem, embora se possam servir das mesmas palavras. A diferença da linguagem do sagrado nota-se, sobretudo, no culto[1]. Quando, no Credo, dizemos que Jesus Cristo desceu dos céus, foi por nós crucificado sob Pôncio Pilatos, ressuscitou ao terceiro dia, conforme as Escrituras, e subiu aos céus onde está sentado à direita do Pai, só tem sentido no âmbito das confissões de fé. Fora desse contexto, presta-se ao ridículo. Por outro lado, essas expressões nasceram num contexto cultural que já está muito longe das nossas experiências actuais de relação entre o sagrado e o profano.

A interpretação da linguagem simbólica não é para a superar, mas para a entender e há metáforas vivas e metáforas mortas. Se as religiões e o diálogo inter-religioso quiserem ser compreendidas, para além do seu âmbito, têm de mostrar o seu sentido para dimensões da existência humana que transcendem as verificações científicas.

O saudoso P. João Resina, professor de Física durante 30 anos e um cristão fervoroso, era também discípulo de Kant, para o qual, há três questões fundamentais: o que posso saber, o que devo fazer, o que me é lícito esperar. À primeira responde a ciência, à segunda, a ética e à terceira, a religião. Gostava de sublinhar: uma coisa é tentar compreender o universo. Para isso há a física e a biologia. Se quero saber se houve ou não big bang, se a vida evoluiu ou não, não pergunto à Bíblia, não pergunto à Igreja, que não tem competências nessa matéria. Era alérgico à confusão entre a linguagem da ciência e a da fé. Para Kant, a pergunta que resume todas as outras é esta: o que é o ser humano? A esta responde a antropologia.

Não é por acaso que o Documento sobre a Fraternidade Humana, assinado pelo Papa Francisco e o Grão Imame Ahmad Al-Tayyeb, em Abu Dabhi, a 4 de Fevereiro de 2019, será adoptado pela República de Timor-Leste, como um documento nacional, a ser implementado nas instituições educacionais e culturais da nação do sudeste asiático, como deseja o seu actual presidente, Ramos-Horta.

2. Segundo os Actos dos Apóstolos que estamos a ler na liturgia, o primeiro dia da semana é sempre o Domingo, que não é um dia depois do Sábado. É um começo novo. A encenação que Lucas faz do início da Igreja cristã supõe um período de múltiplas manifestações do Ressuscitado, a discípulas e a discípulos, e também o tempo que nós vivemos sem a experiência misteriosa desses encontros.

Lucas quer marcar que a Igreja nascente levou tempo a despedir-se de uma restauração política de Israel. Nasce, então, a narrativa da Ascensão, isto é, o modo que encontraram para figurar a renúncia a essa nostálgica tentação. A melhor maneira era de mostrar que os discípulos não podiam continuar a manipular frutos da imaginação do poder. Cristo era absorvido pelo irrepresentável mistério de Deus, pois, o céu não é um lugar, mas nós vivemos sempre em categorias de tempo e espaço. Ao dizer que Cristo subiu aos céus, significa que Cristo entrou na dimensão do divino, sem tempo e sem lugar. É por isso que surgem figuras da divindade a dizer: a vossa missão não se deve perder no passado, mas agir no presente aberto ao futuro.

Este Papa não tem dias nem semanas suficientes para colocar a Igreja actual em movimento: a intensificação e alargamento do diálogo inter-religioso, para que as religiões sejam caminhos de paz e não de guerra; para que a Laudato Sí’ não seja arquivada, mas concretizada, dedicou-lhe, de novo, uma semana de estudo e conscientização que termina hoje, não para ser encerrada, mas relançada; o dia 31 deste mês será dedicado aos meios de comunicação social, estimulando os jornalistas a escutar os acontecimentos com o ouvido do coração.

Além disso, a preparação do Sínodo 2023 está em andamento para que, de novo, se torne o próprio estilo de viver em Igreja; a irradicação do abuso sexual nas comunidades cristãs; a preparação do Domingo, 24 de Julho, 2022 – 2º Dia Mundial dos Avós e dos Idosos – já começou com o tema Dão fruto mesmo na velhice e pretende destacar a que ponto os avós e idosos são um valor e um dom, tanto para a sociedade, como para a comunidade eclesial. Este tema, segundo uma nota do Dicastério para os Leigos, a Família e a Vida, é também um convite a reconsiderar e valorizar os avós e os idosos, frequentemente deixados às margens das famílias, das comunidades civis e eclesiais.

A experiência de vida e de fé deles pode contribuir, com efeito, para construir sociedades conscientes das suas próprias raízes e capazes de sonhar um futuro mais solidário, fundamental para uma concepção inter-geracional da aventura humana[2].

3. Há muito, que o Papa Francisco alertou as igrejas, as religiões e a sociedade para uma realidade em que não se queria pensar: estamos a viver a III Guerra Mundial aos bocados. A guerra, pela invasão da Ucrânia, veio ter com um Ocidente distraído. Agora, tornou-se o assunto das televisões, das rádios, dos jornais, das redes sociais. Francisco ofereceu-se para ser mediador de paz entre a Rússia e a Ucrânia. Está a enviar continuamente delegados ao povo sofredor. As consequências desta guerra absurda – como são todas as guerras – já se fazem sentir a nível mundial e os negócios das armas estão a enriquecer os muito ricos.

Por falar em ricos, Victor Ferreira, no Público (25.05.2022), fez eco ao Relatório da Oxfam, Lucrando com a dor, dizendo com ironia que os multimilionários que estão no Fórum Económico Mundial de Davos, na Suíça, têm muito que celebrar. «Durante a pandemia de covid-19, a sua fortuna atingiu picos estonteantes e sem precedentes. A pandemia – um tempo cheio de dor para a maioria da humanidade – tem sido um dos melhores momentos na história dos multimilionários».

A referida confederação internacional de luta contra a pobreza «afirma que nos últimos dois anos surgiram 573 novos multimilionários, ou seja, um novo milionário a cada 30 horas, ao mesmo tempo que mais cerca de 263 milhões de pessoas correm risco de pobreza extrema em 2022 – ou seja, um milhão de pobres a cada 33 horas –, devido às consequências da pandemia e por causa do custo crescente da alimentação.

«A Oxfam quer, acima de tudo, destacar que o crescimento rápido dessas fortunas hoje em dia e a crise no custo de vida enfrentada por milhares de milhões de outras pessoas são duas faces do mesmo fenómeno. Isto não é apenas algo que está a acontecer, enquanto eles mandam; isto está a concretizar-se de forma deliberada com o seu apoio».

Os relatórios desta organização pedem, em Davos, medidas contra «uma desigualdade que mata»[3].

Quem poderá fechar os olhos, os ouvidos e o coração perante esta vergonha?

 

 

29 Maio 2022



[1] Cf. Leszek Kolakowski, Si Dios no existe…, Tecnos, 1995; Juan Martín Velasco, Metamorfosis de lo sagrado y futuro del cristianismo, Sal Terrae, 1999

[3] Para muitos outros dados, ver na Internet os Relatórios da Oxfam

quarta-feira, 25 de maio de 2022

IN MEMOMRIAM - JOSÉ LUIS MARINS FERREIRA

 Faleceu o Antigo Aluno José Luis e o seu funeral realizou-se hoje em Oliveira de Frades - S. Pedro do Sul.


Entrou para o seminário da missões de Viseu em 1959, juntamente com o Pe. Alfredo Neres vindos de Paço de Arcos onde eram elementos activos na comunidade comboniana aí, então, existente. Entraram para o seminário já jovens/adultos; o Pe. Neres tinha cerca de 20 anos e o Zé Luis pouco menos. Com eles conviví em Viseu e na Maia, no " Escolasticado". O Zé Luis era dedicado à música e muito activo na área cultural, nomeadamente no teatro. Apesar de mais velhos , um e outro se entrosaram muito bem no meio dos colegas mais novos. Guardo gratas memórias do tempo em que conviví com o Zé Luis que , desde há alguns anos, fixara residência em Oliveira de Frades, S. Pedro do Sul.

Um abraço de eterna saudade, em meu nome e em nome da AAA Combonianos.

António Pinheiro


domingo, 8 de maio de 2022

BONS PASTORES Frei Bento Domingues, O.P.

 

1. Comunicaram-me que, no dia 3 deste mês, o Público e o 7Margens, vão lembrar-se que, nessa data, cumprem-se 30 anos das minhas crónicas neste Jornal. Não vou falar das crónicas, mas apetece-me relembrar a introdução que escrevi para o primeiro livro, editado pelo Mário Figueirinhas[1], porque tentei exprimir, por contrastes, uma teologia que implicava uma antropologia. Há, no entanto, nessa introdução, o uso do termo homem para significar homem e mulher, mas que oculta as mulheres. Por isso, desde há muito, utilizo sempre a expressão ser humano.

Recordei, nessa introdução, que em 1935 pediram a Yves Congar, O.P. um diagnóstico sobre o inquérito, então realizado pela famosa Revista La Vie Intelectuelle, sobre as razões da “descrença actual”. A análise teológica do longo processo do divórcio entre a Igreja e os movimentos científicos, culturais e sociais que agitaram a gestação do mundo moderno ficou condensada numa frase que sempre me impressionou: «A uma religião sem mundo, sucedeu um mundo sem religião».

Trinta anos mais tarde, em pleno Vaticano II, voltou a insistir no mesmo ponto: «o maior obstáculo, que os seres humanos de hoje encontram no caminho da fé, vem da falta de ligação que julgam verificar entre, por um lado, a fé em Deus, no seu Reino e, por outro, o ser humano e a sua obra terrestre. É urgente mostrar o laço íntimo que os une. É na superação desse fosso que se deveria procurar a resposta mais eficaz às razões da descrença moderna»[2].

Teilhard de Chardin, em 1920, numa breve nota sobre a evangelização dos novos tempos, pressente a gravidade do que está a acontecer: «Cristão e humano tendem cada vez mais a não coincidir. É este o grande cisma que ameaça a Igreja».

Nos anos 50, esta impressão ainda não se tinha apagado: «indubitavelmente, por alguma razão obscura, há qualquer coisa que já não passa entre o ser humano e Deus, tal como é apresentado aos seres humanos de hoje. É como se o ser humano não tivesse diante de si a figura do Deus que procura adorar»[3].

Em 1960, o grande medievalista Marie-Dominique Chenu, O.P. verifica que «o novo mundo dos nossos dias ainda não foi integrado no pensamento cristão»[4]. Philippe Roqueplo, no começo da sua tese de doutoramento – Experiência do mundo, experiência de Deus? – mostrou a que ponto a teologia oficial permanecia impermeável a todas as tentativas de integrar, na experiência cristã, as tarefas da construção do mundo e de acolhimento do Reino de Deus. Percorreu o monumental Dictionnaire de Théologie Catholique, elaborado entre 1903 e 1950, constituído por 22 grandes e compactos volumes. Este dicionário pretendia abarcar «todas as questões que interessavam ao teólogo». Veja-se o resultado:

«Na entrada profissão, vem um artigo “profissão de fé”; em emprego: nada; em mulher: nada; em amor: um terço de coluna assim distribuído: v. “caridade”; amor do próximo: v. “caridade: amor próprio: algumas linhas que reenviam para “ambição”; amor puro: v. “caridade”; mas sobre amor humano propriamente dito: nada; em amizade: nada (…); em vida: um artigo “vida eterna” (…); em mal: vinte colunas; em economia: nada; em política: nada; em poder: finalmente um artigo de cento e três colunas (quatro vezes mais que “mal”) sobre… “o poder do Papa na ordem temporal”. Em técnica: nada; em ciência: mais um longo artigo dividido em quatro pontos: ciência sagrada; ciência de Deus; ciência dos anjos e das almas separadas; ciência de Cristo… mas sobre o que nós chamamos ciência: nada; em arte: um longo artigo sobre… a arte cristã; em beleza: nada; em valor: nada; em pessoa: v. “hipóstase”; em história: nada; em leigo e laicado: nada, a não ser um longo artigo sobre o laicismo estigmatizado como uma heresia»[5].

Estas ausências revelam um sobrenaturalismo teológico ignorante da significação das realidades terrestres com as quais é tecida a história humana, lugar da experiência cristã.

Veio o Concílio Vaticano II. Abriu com uma generosa mensagem ao mundo feita pelos Padres Conciliares.  A Constituição Pastoral Gaudium et Spes é um abraço franco ao mundo contemporâneo: «As alegrias e as esperanças dos seres humanos de hoje, sobretudo dos pobres e de todos os que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo; e não há realidade alguma verdadeiramente humana que não encontre eco no seu coração. Porque a sua comunidade é formada por seres humanos, que, reunidos em Cristo, são guiados pelo Espírito Santo na sua peregrinação em demanda do Reino do Pai, e receberam a mensagem da salvação para a comunicar a todos. Por este motivo, a Igreja sente-se real e intimamente ligada ao género humano e à sua história» (nº 1).

2. É certo que João Paulo II percorreu o mundo, arrastou multidões e disse logo no começo do seu pontificado o essencial: «O ser humano, na plena verdade da sua existência, do seu ser pessoal e, ao mesmo tempo, do seu ser comunitário e social — no âmbito da própria família, no âmbito de sociedades e de contextos bem diversos, no âmbito da própria nação, ou povo (e, talvez, ainda somente do clã ou da tribo), enfim, no âmbito de toda a humanidade — este ser humano é o primeiro caminho que a Igreja deve percorrer no cumprimento da sua missão: ele é a primeira e fundamental via da Igreja, via traçada pelo próprio Cristo e via que imutavelmente conduz através do mistério da Encarnação e da Redenção»[6].

No entanto, muita gente considera que há posições das autoridades eclesiásticas, assumidas em nome da lei de Deus e da vontade de Cristo, que são actos da maior desumanidade.

De onde virá este profundo desencontro?

Não sei. Repetir que o ser humano concreto, em todas as suas coordenadas, é o primeiro caminho da Igreja ou acusar a Igreja de atraiçoar o seu próprio programa, não leva a lado nenhum.

Adianto a hipótese que tem guiado a minha colaboração no Público. A questão talvez esteja em identificar apressadamente a Igreja com o próprio Jesus Cristo.

Jesus sabia e sabe o que há no ser humano. Conhece a profundidade do nosso coração. Em todos os seus gestos e palavras canta e chora uma inesgotável ternura e compaixão pelo mundo. Jesus é a humanidade de Deus.

A Igreja não. A Igreja tem de aprender a ser humana com Jesus Cristo e com todos os seres humanos da terra.

3. A celebração deste Domingo é dedicada a evocar Cristo como Bom Pastor. As principais figuras do Bom Pastor que encontrei, no meio de muitas pessoas que vivem a espiritualidade do cuidado, foram o Papa João XXIII, nas audiências públicas a que fui fiel, enquanto estive em Roma por conselho de Giorgio La Pira, e o Papa Francisco que nos acompanha dia a dia. Com eles, as parábolas do Novo Testamento, as pinturas que, desde as catacumbas até hoje, as tentam exprimir, são pessoas que incarnam a misericórdia divina por todos os que se sentem perdidos nas periferias da desumanidade.

 

 

08. Maio. 2022



[1] Frei Bento Domingues, O.P., A Humanidade de Deus. Religião sem mundo, mundo sem religião, Mário Figueirinhas Editor, Porto, 1995

[2] Chrétiens en dialogue, Paris, Cerf, 1964, p. XXXIII

[3] L’Avenir de l’home, Paris, Seuil, 1959, p. 339

[4] I.C.I., nº 111, 1960, p.121

[5] In Experience du monde: experience de Dieu?, Cerf. Paris, 1968, p.19-20

[6] Redemptoris Hominis, nº 14

domingo, 1 de maio de 2022

PAIXÃO DE SERVIR E PAIXÃO DE MANDAR Frei Bento Domingues, O.P.

 

1. No Domingo passado, foi proclamado um texto do Evangelho segundo S. João[1], no qual, Cristo Ressuscitado repetiu, num pequeno espaço, três vezes: a paz esteja convosco. Isto significa que a cultura da paz faz parte da mensagem evangélica. Não se pode pregar o Evangelho apoiando ou não denunciando as guerras. Infelizmente, a história das religiões foi muitas vezes, e continua a ser, tecida pelo recurso a várias formas de violência. A guerra voltou à Europa com todos os seus horrores de destruição. Muito se tem mostrado, dito e escrito sobre a invasão da Ucrânia. Deixo, em nota, apenas algumas referências que se situam no espírito desta crónica[2].

Aos discípulos de Cristo, de todos os tempos e lugares, pede-se que trabalhem na construção de um mundo, onde os instrumentos da guerra sejam transformados em instrumentos de desenvolvimento e de distribuição dos bens que são de todos e para todos[3]. Dir-se-á que esse espírito pacifista não tem resposta para todas as situações de injustiça, mas também não pode ser a recusa em divulgar e seguir as pessoas e os movimentos que mostraram e mostram a eficácia das lutas sem violência. A não-violência é muito exigente e muito trabalhosa, como mostraram, entre outros, Gandhi, Luther King e Mandela. É criminosa a eficácia dos movimentos e das pessoas que fazem fortunas com o fabrico e comércio das armas.

Essencial, para os cristãos, é o caminho percorrido por Jesus de Nazaré. Aprendeu a ganhar a vida como carpinteiro. A sua aldeia ficava perto de Séforis, a maior cidade da Galileia. Era um local de mistura de povos e culturas, um fervelhar de tensões políticas e de movimentos guerrilheiros contra a ocupação do Império Romano.

Em determinado momento, Jesus, homem feito, procurou dar um rumo novo à sua vida. Andou na corrente de renovação moral e religiosa, significada por um rito baptismal, no rio Jordão. Segundo os Evangelhos, depois desse baptismo ritual, teve uma experiência insólita. Estava em oração e ouviu uma voz, vinda do céu, que não tinha nada a ver com a voz de João Baptista: tu és o meu filho muito amado. A partir dessa experiência mística, há um corte radical como o seu passado e parte para um longo retiro no deserto, onde não encontra sossego. Pelo contrário, é agitado por um espírito diabólico que teima em contrariar, de forma muito hábil, a escolha que tinha feito: estar completamente ao serviço do Reino da Paz. São tentações de carácter messiânico, de um messianismo nacionalista, com respostas prontas e simplistas para todas as questões de conquista do poder económico, político e religioso.

Jesus recusou, de forma rotunda, essas solicitações diabólicas, vencendo as tentações dos tempos e poderes messiânicos[4]. Como diz o Evangelho de S. Lucas, tendo acabado toda a tentação, o diabo deixou-o até nova oportunidade. Encontrou essa oportunidade nos seus discípulos, bem testemunhada nos nossos textos fundadores[5].

2. S. Marcos conta que, depois de muitas discussões entre os discípulos a ver quem seria o primeiro, dois deles apresentam-se como candidatos aos primeiros lugares, quando Jesus tomasse o poder. Eram Tiago e João, filhos de Zebedeu, que lhe disseram: Mestre, queremos que nos faças o que te pedimos. E que quereis vós? Concede-nos que, na tua glória, nos sentemos um à tua direita e outro à tua esquerda. Resposta de Jesus: Não sabeis o que estais a pedir. Podeis beber o cálice que Eu vou beber e receber o baptismo com que serei baptizado? Disseram: Podemos. Jesus replicou: Bebereis o cálice que Eu vou beber e sereis baptizados com o baptismo com que serei baptizado, mas sentar-se à minha direita ou à minha esquerda não me cabe a mim concedê-lo.

Tendo ouvido isto, os outros dez começaram a indignar-se com o atrevimento de Tiago e João. Jesus chamou-os e disse-lhes: Sabeis que aqueles que vemos governar as nações as dominam e os seus grandes as tiranizam. Entre vós não deverá ser assim: ao contrário, aquele que quiser ser grande, seja o vosso servo e aquele que quiser ser o primeiro entre vós, seja o servo de todos. Pois, o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por todos.

Parece-me que S. Marcos (que os outros sinópticos irão seguir) tocou num ponto essencial do itinerário de Jesus, que continua actual para as nossas relações familiares, sociais, políticas e religiosas. As pessoas deviam ser educadas para desenvolver todas as suas capacidades, para se tornarem competentes em servir o bem de todos. Isto é, procurar o próprio bem, o bem do grupo ou do país a que pertencem, no que fazem, não para dominar, não para destruir, mas para colaborarem com todas as pessoas boa vontade, seja qual for o país ou o continente. Acontece, no entanto, que são educadas, nas famílias e na escola, não para se tornarem competentes em servir, mas para se tornarem competentes em dominar os outros.

Desenvolver a ambição, a paixão de mandar, de dominar é a fonte de lutas destrutivas interpessoais, de grupos e de países. A fonte da paz é a paixão de servir a todos os níveis e em todas as relações humanas, locais ou globais.

3. Isto parece uma grande ingenuidade, o discurso de quem não quer ver a complexidade e a maldade das pessoas, dos grupos, dos governantes das nações e dos Estados. Não é uma ingenuidade, como mostrou René Girard[6].

Conta o Evangelho de S. João que Jesus teve uma conversa nocturna com um fariseu, membro do Sinédrio e seu simpatizante. Não se entenderam à primeira porque Jesus começou pela exigência máxima: se queres entender o meu caminho, tens de nascer de novo. Nicodemos faz-se desentendido: como pode um homem nascer de novo, sendo já velho? O Nazareno observa com ironia: sendo tu mestre em Israel, ignoras essas coisas?

A essência do Baptismo cristão consiste, precisamente, em nascer de novo. Isso foi esquecido e, agora, só quase é lembrado quando se trata do baptismo de adultos, como acontece cada vez mais. O que dificulta este entendimento é pensar que basta praticar um ritual, de uma vez para sempre, sem exigências quotidianas. Nascer de novo todos os dias, em todas as circunstâncias, é o programa para todos os cristãos. Nada está resolvido de uma vez para sempre.

A arma que Jesus deixa aos discípulos é o sopro do Espírito. Sem Ele, estamos expostos ao espírito mundano, ao espírito de dominação, da violência, das guerras.

As dificuldades que a Igreja encontrou no decorrer dos tempos, e continua a encontrar, resultam de não oferecer um rosto de discípulos ressuscitados, aqueles que nascem de novo todos os dias.

A propósito da reforma da Cúria Romana, o Papa Francisco não se cansa de denunciar o carreirismo eclesiástico que não procura servir, mas encontrar lugares de dominação. Não crescem na paixão de servir, mas na paixão de mandar, de dominar.

 

 

01 Maio 2022



[1] Jo 20, 19-31

[2] Cf.Teresa Toldy, O ângulo morto da invasão, 7Margens, 24.04.2022; Unisinos, 11.03.2022: Tomáš Halík e Reportagem de Cécile Chambraud; Frei Bento Domingues, O.P., Da cultura da indiferença aos negócios da guerra, Público, 13. 02. 2022

[3] Cf. Is 2, 4 e Act 4, 32-37

[4] Lc 4, 1-13 e paralelos

[5] Mc 10, 35-45; Mt 20, 20-28; Lc 22,24-27

[6] René Girard, La Violence et le sacré, 1972; Des choses cachées depuis la fondation du monde, 1978; Le Bouc émissaire, 1982