domingo, 26 de março de 2023

PARALISAR A TEOLOGIA? - 1 Frei Bento Domingues, O.P.

 

1. Para perceber o contexto da minha intervenção sobre o Papa Francisco e o lugar da mulher na Igreja[1], recomendo a leitura de Um apelo urgente à ação no Dia Internacional das Mulheres, feito por António Guterres, secretário geral das Nações Unidas[2], assim como os 10 pensamentos do Papa Francisco para o mesmo dia[3].

Não me parece muito produtivo centrar o debate sobre a ordenação sacerdotal das mulheres, pois o que deve ser discutido é a própria sacralização dos ministérios (serviços) na Igreja.

Como mostrou Frei José Nunes, O.P., a história da Igreja dá conta de uma evolução na compreensão e vivência dos ministérios, cuja chave de interpretação é a de um princípio de clericalização ou sacerdotalização dos mesmos, perdendo-se progressivamente a consciência duma evocação ministerial de toda a comunidade, evidente na Igreja das origens.

Este fenómeno é paralelo a uma autonomização dos ministros ordenados e a um processo de interpretação dos ministros e ministérios da Igreja, a nível teórico e prático, em categorias sacerdotais provenientes do Antigo Testamento[4].

Não foi há séculos que o Papa João Paulo II (1994), no exercício das suas funções, observou que, «embora a doutrina sobre a ordenação sacerdotal, que deve reservar-se somente aos homens, se mantenha na Tradição constante e universal da Igreja e seja firmemente ensinada pelo Magistério nos documentos mais recentes, todavia actualmente em diversos lugares continua-se a retê-la como discutível, ou atribui-se um valor meramente disciplinar à decisão da Igreja de não admitir as mulheres à ordenação sacerdotal».

E vem a declaração: «A Igreja não tem absolutamente a faculdade de conferir a ordenação sacerdotal às mulheres, e esta sentença deve ser considerada como definitiva por todos os fiéis da Igreja»[5]. Depois, o Cardeal Ratzinger respondeu à dúvida sobre a doutrina da referida Carta Apostólica: «esta doutrina exige um assentimento definitivo». A Congregação para a Doutrina da Fé continuou a sua reflexão que me parece pouco clarificadora.

No caminho sinodal, continuaram a surgir várias reacções. O teólogo espanhol, José I. González Faus (17. 02. 2023), enviou uma carta ao Bispo de Roma, tentando mostrar que não têm razão de ser as hesitações do Papa Francisco a propósito da legitimidade da ordenação das mulheres.

Temos o testemunho evangélico de que, desde o início do ministério público de Jesus, havia um grupo de mulheres, libertas de todos os demónios, que não só financiou espontaneamente o seu projecto, como O seguiram por pura sedução até ao fim[6]. Isto é, mesmo durante o tempo que os discípulos homens O abandonaram, desapontados com o que tinha acontecido, elas mantiveram-se firmes e nem aceitaram que a morte fosse o fim.

Preparam tudo para que não faltassem os rituais fúnebres do costume[7], embora, na interpretação de Jesus, uma mulher, a quem o Evangelho de João chama Maria, já tinha antecipado de forma espectacular, derramando sobre Ele um caríssimo perfume de nardo puro[8].

2. Se, no Cristianismo, se considerou sempre o acontecimento da Ressurreição como algo decisivo, o que aconteceu, de facto, pode-se dizer que foi sobretudo um acontecimento acolhido pelas mulheres que O tinham seguido sempre e que nem na morte O abandonaram.

Na verdade, segundo a variedade das narrativas pascais, são elas as escolhidas por Cristo para reevangelizar os discípulos, os apóstolos que, perante a morte do Mestre, tinham dispersado. Nesse movimento fundador, faz das mulheres as apóstolas dos apóstolos.

Quando se repete que Jesus não escolheu nenhuma mulher para o grupo dos doze, não se pode esquecer esta ordenação realizada pelo Ressuscitado. Admira-me que não se queira ver o que está explicitamente apresentado nos quatro Evangelhos, como acontecimento decisivo, como o grande marco de um novo começo.

Alguns teólogos parecem-me paralisados pela referida declaração da Ordinatio Sacerdotalis, em vez de destacarem a novidade do Evangelho da Ressurreição. A fé cristã não é um calmante da inteligência e dos afectos, mas um excitante: Quantum potes, tantum aude, atreve-te a atingir o máximo que puderes[9].

O próprio Papa Francisco, nos 10 pensamentos acima referidos, reconhece a importância das mulheres na Ressurreição, dizendo que «os apóstolos e os discípulos têm dificuldade de acreditar. As mulheres não». Esta observação não consegue, no entanto, restituir a força teológica que as narrativas da Ressurreição deram àquelas testemunhas femininas.

3. Comecei por evocar o apelo de A. Guterres. Volto a esse apelo: «Em todo o mundo, o progresso dos direitos das mulheres está a desaparecer diante dos nossos olhos. Segundo as previsões mais recentes, ao ritmo atual, serão necessários mais 300 anos para alcançar a plena igualdade de género.

«Atualmente, a sucessão de várias crises, desde a Guerra na Ucrânia à emergência climática, afeta em primeiro lugar e de forma mais dura as mulheres e as meninas. E como resultado do retrocesso mundial da democracia, os direitos das mulheres sobre os seus corpos e sobre a autonomia das suas vidas estão a ser questionados e negados.

«Duas estatísticas evidenciam claramente o nosso fracasso: a cada dez minutos, uma mulher ou menina é assassinada por um membro da família ou por um parceiro íntimo.

«E a cada dois minutos, uma mulher morre durante a gravidez ou o parto. A maioria destas mortes é perfeitamente evitável.

«Neste Dia Internacional das Mulheres, temos de nos comprometer a fazer melhor. Precisamos reverter estas tendências alarmantes e apoiar as vidas e os direitos das mulheres e das meninas, em todos os lugares.

«Esta é uma das minhas principais prioridades e um pilar fundamental do trabalho das Nações Unidas em todo o mundo».

Quando a teologia não tem em conta esta realidade gritante, é porque se trata de uma teologia alienada e alienante, paralisada e paralisante. O Papa Francisco não esperou por ver resolvida a referida declaração de João Paulo II, para nomear 17 mulheres muito qualificadas, para várias funções na reforma da Cúria romana.

Bergoglio não esqueceu, no entanto, um dos textos mais importantes, do século XX, sobre a evangelização, Evangelii nuntiandi (1975), do Papa Paulo VI. Confessa que esse texto conserva toda a sua frescura, como se fosse escrito ontem. A reforma da Cúria só tem sentido se estiver ao serviço de uma Igreja que se evangeliza para evangelizar.

 

 

26 Março 2023



[1] ISTA, 01. 04. 2023, às 16.30h, no Convento de S. Domingos

[2] Público, 08. 03. 2023

[3] Cf. https://www.imissio.net>papa-francisco

[4] José Nunes, O.P., Pequenas Comunidades Cristãs, UCP e FEAA, Porto, 1991, cf. pp. 277-288

[5] Cf. Carta Apostólica Ordinatio Sacerdotalis, João Paulo II, 1994

[6] Lc 8, 1-3;

[7] Mt. 28, 1-8; Mc 16, 1-4; Lc 24, 1-10; Jo 20, 1-2

[8] Mt 26, 6-13; Mc 14, 3-9; Jo 12, 1-8

[9] Sequência da Eucaristia da festa do Corpo de Deus, de Tomás de Aquino

Deus também chora: Ano A - Quaresma - 5º Domingo: João 11,1-45 - Pe Mauel João

 O Pe Manuel Lopes Ferreira, nosso distinto colega e amigo, enviou-me esta reflexão do MC Pe Manuel João que há vários anos sofre de ELA e que escreve com os olhos, único movimento que lhe é permitido pela doença.

O evangelho do quinto (e último) domingo da Quaresma tem Lázaro como protagonista, depois da mulher samaritana e do homem nascido cego dos dois domingos anteriores. É a terceira catequese baptismal, sobre a VIDA, depois das catequeses sobre a água e a luz. Este evangelho fala-nos da ressurreição de Lázaro de Betânia, irmão de Marta e Maria e amigo de Jesus. É o sétimo 'sinal' (milagre) do evangelho de João, o mais portentoso, que funciona como uma dobradiça entre a primeira e a segunda parte do seu evangelho. A Páscoa está agora próxima, e somos convidados a meditar sobre este grande sinal, uma profecia da morte e ressurreição de Jesus.

 

Convido-vos a reler pessoalmente todo o décimo primeiro capítulo de João e a sua continuação natural (até 12, 11), a fim de captar alguma da riqueza da sua mensagem. E, também, para nos lembrar como tudo termina: os líderes decidindo matar Jesus e Lázaro.

Limito-me a partilhar convosco uma reflexão sobre o pranto de Jesus.

 

O preço da amizade

Esta página do evangelho revela-nos a profunda humanidade de Jesus. Um homem como nós, tinha amigos e cultivava amizades. A casa de Lázaro, Marta e Maria, na aldeia de Betânia, nos arredores de Jerusalém, era para ele - um homem sem abrigo - um oásis de paz e descanso. Lá ele sentia-se em casa, na sua família. "Jesus amava Marta e a sua irmã e Lázaro". Com a força desta amizade, quando Lázaro adoeceu, as duas irmãs mandaram-lhe a seguinte mensagem: "Senhor, aquele que tu amas está doente".

Mas o Amigo não se apressou! Partiu ao terceiro dia, não para curar, mas para ressuscitar: "Lázaro, o nosso amigo, adormeceu; mas eu vou acordá-lo". Os apóstolos lembraram-lhe, com razão, que ele era um homem procurado na Judeia. Na verdade, Jesus poderia ter curado o seu amigo mesmo de longe, como fez com o servo do centurião (Lucas 7). Mas a amizade requer proximidade física, e assim Jesus arrisca a sua vida por Lázaro. Na verdade, este movimento será fatal para ele.

O encontro com Marta, primeiro, e Maria, depois, é comovente. Ambas, velada e tristemente, censuram Jesus pelo seu atraso: "Senhor, se tivesses estado aqui, o meu irmão não teria morrido!" Diante de Marta, Jesus consegue controlar a sua emoção, mas quando vê Maria a chorar, ele quebra-se: está profundamente comovido e, diante do túmulo do seu amigo, irrompe em choro, soluçando, de tal modo que os presentes exclamam: "Vejam como ele o amava!” O seu é um grito de amor e tristeza, mas não um grito de resignação. Pelo contrário, são lágrimas de raiva diante da morte, a mais terrível das injustiças, que Deus não queria para os seus filhos (Sabedoria 2:24). De facto, pouco tempo depois, ainda com o rosto banhado de lágrimas, ele grita: "Lázaro, sai daí!” O verbo grego usado aqui por João é muito raro na Bíblia grega. Encontra-se apenas oito vezes, incluindo seis em João, e é o mesmo verbo usado para aqueles que, poucos dias depois, clamam pela crucificação de Jesus.

 

Uma comunidade de irmãos e irmãs

Será que nos reconhecemos nesta história? Já vivemos esta situação muitas vezes. Vejam que aqui estamos a falar de três pessoas que são irmãos e irmãs. Não há qualquer menção a cônjuges e filhos. Esta anomalia deveria fazer-nos reflectir. Não se trata tanto de uma simples família, mas sim da relação de fraternidade na comunidade cristã, todos irmãos e irmãs (João 15,15). Lázaro é cada um de nós na nossa fragilidade, particularmente face à morte. Marta e Maria somos nós, quando choramos "com os que choram" (Romanos 12,15). O que é que Jesus faz? Ele chora connosco! Deus chora connosco! E ele é o único que, agora em Jesus, pode verdadeiramente chorar connosco porque, como Deus, conhece a nossa dor até às profundezas.

Se há taças no céu que recolhem as orações dos santos (Apocalipse 5,8), atrevo-me a pensar que há também aquelas que recolhem as nossas lágrimas. Nenhuma será derramada em vão! Pois o salmista diz: "As minhas lágrimas no teu odre recolhes; não estão escritas no teu livro?" (Salmo 56). "Todas as dores humanas, para Deus, são sagradas" (Papa Francisco, 14.10.2020).

 

Na Bíblia, um rio de lágrimas

O choro abunda na Sagrada Escritura. Um rio de lágrimas corre através dela. A sua nascente nasce nos olhos dos nossos antepassados Adão e Eva, frequentemente apresentados chorando em pinturas, depois de terem sido expulsos do paraíso. É um longo rio que cresce e incha até se tornar um rio em fúria nos Salmos. O Messias devia secar este rio (Isaías 25,8). Jesus, contudo, ignora esta esperança. Pelo contrário, ele transforma o choro em êxtase. Ele, um homem como nós, também chora e alimenta este rio (Hebreus 5,7), dirigindo-o, contudo, para o coração do Pai. "Ele enxugará dos seus olhos toda lágrima, e não haverá mais morte, nem pranto, nem choro, nem dor" (Apocalipse 21:4).

 

Conclusão?

Poderá Deus ter-se encarnado para chorar connosco? David Maria Turoldo pergunta: "Mas vós não tínheis lágrimas / a nós, pelo contrário, foi dado / chorar. / Será que foi isto a ter-vos conduzido até nós?".

Será que este evangelho nos convida a uma mudança de mentalidade em relação a Deus? A uma "passagem do Deus dos 'milagres fáceis' ao Deus que 'soluça contigo'" (Don Angelo Casati)?

"Desde aquele dia 14 do mês de Nisan, no ano 30 d.C., já não podemos dizer, quando a dor nos agarra, 'Senhor, se tivesses estado aqui...'. Porque agora ele está sempre aqui: não tem de "vir", porque nunca saiu e nunca deixou de estar aqui - como prometeu - "todos os dias", nunca deixou de nos amar, está a chorar connosco, já começou a ressuscitar-nos" (D. Francesco Lambiasi).

 

P. Manuel João Pereira Correia, mccj

Castel d'Azzano (Verona), 23 de Março de 2023

 

p.mjoao@gmail.com - https://comboni2000.org

segunda-feira, 20 de março de 2023

ABRE MEUS OLHOS, MEU SENHOR Frei Bento Domingues, O.P.

 

1. O Papa Francisco fez 10 anos de pontificado. Que esta data tenha sido celebrada em muitas comunidades da Igreja Católica, parece normal, embora também haja algumas que continuam a lamentar a sua eleição. O mais espantoso é a alegria manifestada pelos grandes líderes de outras confissões religiosas: o patriarca ecuménico de Constantinopla, Bartolomeu I e até o patriarca da Igreja Ortodoxa Russa, Cirilo; o primaz da Igreja Anglicana, Justin Welby; o grande imã de Al-Azhar do Egipto, Ahmad al-Tayeb; o rabino chefe da comunidade judaica em Roma, Abraham Skorka; sem contar que o Papa Francisco se tornou a grande referência mundial para crentes e não crentes.

É preciso percorrer os acontecimentos e os gestos mais marcantes, assim como a qualidade e oportunidade dos documentos publicados, como fez o Frei José Nunes, numa assembleia do Instituto S. Tomás de Aquino (ISTA), para perguntar como é que foi possível, apenas em 10 anos, abrir tantas portas e janelas na Igreja Católica para todos os mundos. Tudo isto, percorrendo os caminhos mais humildes de Francisco de Assis, no seguimento do Evangelho de Cristo para o nosso tempo.

A reforma da Igreja a partir das reformas da Cúria vaticana e do conjunto da cristandade, desenhadas no programa do seu pontificado, A Alegria do Evangelho, não contava com as dimensões do fenómeno da pedofilia na própria Igreja e que o obrigou a enfrentá-lo com tolerância zero e, mesmo depois, talvez não contasse com tantas resistências da parte das hierarquias das igrejas de todo o mundo, mas que não o têm feito recuar.

A esperança do presidente da Assembleia da República Portuguesa, Augusto Santos Silva, e certamente de muitos portugueses, é «que a Igreja saiba superar esse problema, agindo. Há várias propostas que têm sido feitas quer no interior da Igreja quer na comissão independente e julgo que os responsáveis vão tomar as medidas necessárias para que esta página possa ser virada» (11.03.2022).

Entretanto, chamaram-me a atenção para um artigo notável de Gustavo Carona[i]médico sem fronteiras – que, na abordagem da pedofilia na Igreja, não alinha com a tendência de tomar a parte pelo todo, porque a sua experiência, nos mundos mais abandonados, só contou com a presença actuante da Igreja Católica e de outras religiões. «O humanitarismo como o conhecemos tem os seus pioneiros no cristianismo. …A religião teve e tem pessoas, espalhadas pelo mundo fora, a fazer obras de um humanismo e de um impacto nas populações mais vulneráveis que me faz arrepiar de inspiração».

2. Hoje, na celebração da Eucaristia, deparamos com uma longa passagem, do Evangelho segundo S. João, sobre a cura de um cego de nascença. A narrativa começa assim: Jesus encontrou no seu caminho um cego de nascença. Os seus discípulos perguntaram-lhe: Mestre, quem foi que pecou para este homem ter nascido cego? Ele ou os seus pais? Jesus respondeu: Isso não tem nada a ver com os pecados dele ou dos seus pais, mas aconteceu assim para se manifestarem, nele, as obras de Deus.

Gostamos de ter respostas prontas para tudo. Para a maioria dos fenómenos, seria preciso dispor do percurso de todas as ciências, pois, não temos, à partida, respostas para tudo. Temos de as procurar. Com as questões do mal tudo se complica, porque o mal – a falta de um bem que devia existir – suscita muitas discussões.

Os discípulos de Jesus, perante um cego, desejavam uma resposta de Jesus, partindo de um falso pressuposto: aquela cegueira era efeito do pecado. Só faltava saber se foi devido ao pecado dos seus pais ou dele próprio. Jesus afasta a questão do pecado. Nem foi ele nem foram os pais. E acrescenta, o mal não se explica, combate-se. É o que Deus nos pede. Foi o que Jesus fez.

A narrativa do Evangelho apresenta Jesus a usar uma técnica muito rústica, muito inadequada para curar uma cegueira. A cura aconteceu, não por causa da lama, como é evidente, mas por ser uma intervenção de Jesus. O facto é que o cego não via e passou a ver pela acção de Jesus. A questão grave é que não podia ter sido por acção de Jesus porque este aumentava o mal na sociedade em vez de ser um bom judeu, um obediente à lei de Moisés. Ora Ele não respeitava o Sábado como um bom israelita deve fazer. Atribuir a Jesus uma acção extraordinária, milagrosa, era impossível, mas contra factos não há argumentos e o facto é que tinha havido uma cura e fariseus não tinham uma explicação para ela. Em tudo isto, a maior cegueira é não querer ver o que se está a ver, por razões de ideologia religiosa. Jesus, ao violar preceitos que julgavam sagrados – a observância do Sábado sacralizado – ficava desautorizado no plano religioso.

Dada a extensão desta fantástica narrativa, não posso transcrevê-la para esta crónica. É maior do que o espaço que me é dado[ii].

3. O nascimento da Igreja – a não confundir com a hierarquia – é celebrado por um acontecimento que vem explicitado no próprio Baptismo de Jesus, superando o de João que tinha recebido. Todos os Evangelhos contam que, tendo Jesus saído das águas do Jordão, entrou em oração. Dessa abertura ao Espírito Santo recebeu a declaração mais espantosa de Deus: Tu és o meu Filho muito amado, em Ti me revejo[iii]. É a este Baptismo que a Igreja tem de ser sempre fiel.

Foram conservados dois gestos, desde o começo. Um deles é a entrega da luz. Sem a luz de Cristo andamos nas trevas. Um outro é a unção dos ouvidos e da boca para significar que, antes falar, é preciso aprender a ouvir, a escutar e testemunhar, usando a expressão Effetha (abre-te). É significativo que não exista um baptismo para mulheres e outro diferente para homens, como diz S. Paulo[iv]. Todos nós somos Igreja!

Entre os poemas litúrgicos musicados de José Augusto Mourão, O.P., destaco este, especialmente para hoje: Abre meus olhos, meu Senhor, e verei o Dia / visitação do sol, ó luz, ilumina a vida / quia-me pela mão, sê a lâmpada dos meus pés / que em tudo vacilam. // À fonte vou que vem da cruz vou lavar meus olhos / de lá caminha o meu senhor, de lá vem a Páscoa / venha o sol, venha o azul, venha o corpo / ressuscitado, recomece o mundo. // Abre meus olhos, meu Senhor, ao rumor do nome / que eu caminhe para Ti sem olhar vendado / venha a fé desatar os meus olhos e meus pés / e verei o rosto. // Abram-se as portas do que é breu / sobre os campos verdes / e floresçam mil flores onde a morte cresce / Vem clamor da manhã vem gritar que um fogo arde / em nós e a promessa avança.

É, para o meu gosto, uma das melhores expressões da poética litúrgica.

 

 

19 Março 2023



[i] Público, 11 de Março de 2023. Ver também a Entrevista a Felícia Cabrita, Máxima, 14.03.2023

[ii] Cf. Jo 9

[iii] Cf Mt 3, 13-17; Mc 1, 9-11; Lc 3, 21-22; Jo 1, 29-34

[iv] Gal 3, 26-28

quarta-feira, 15 de março de 2023

UM ENCONTRO IMPREVISTO Frei Bento Domingues, O.P.

 

1. A publicação do Relatório da CI provocou uma Carta do Patriarcado de Lisboa que me pareceu adequada. Depois da Conferência de Imprensa da CEP (03.03.2023) e as declarações posteriores de D. Manuel Clemente resultaram numa grande confusão. O bispo auxiliar de Braga, Nuno Almeida, secundado pelo padre Mário Rui Oliveira, canonista, que trabalha num dos tribunais do Vaticano, procuraram clarificar a situação ajustada à defesa das vítimas de abusos sexuais. Gostei muito de ler a longa exposição, bem documentada e articulada, do Jornal 7Margens do dia 6 de Março.

O Papa Francisco já tinha afirmado que a Igreja não pode esconder a tragédia dos abusos, quaisquer que sejam, e acrescenta que «pedir perdão é necessário, mas não é suficiente».

Anselmo Borges perguntou, no DN (04.03.2023), Que Igreja tem futuro? «Torna-se cada vez mais claro que a Igreja precisa de uma conversão a fundo. Com a tomada de consciência da tragédia da pedofilia, fala-se de um sismo e impõe-se uma reconstrução desde os fundamentos: Jesus e o Evangelho». É um texto que merece ser lido e divulgado na íntegra.

Também a liturgia deste Domingo exige um retorno ao Evangelho sobre o papel das mulheres. Existe, de facto, uma distância enorme entre o que dizem as narrativas evangélicas acerca do papel que Jesus lhes atribuiu e a sua situação subalterna na Igreja desde há muito tempo.

Como demora tanto em lhes reconhecer um papel activo, na Igreja, equivalente ao papel que desempenham na sociedade, a todos os níveis, é fundamental não esquecer o que afirmou S. Paulo na Carta aos Gálatas: «todos vós sois filhos de Deus em Cristo Jesus, mediante a fé; pois todos os que fostes baptizados em Cristo, revestistes-vos de Cristo mediante a fé. Não há judeu nem grego; não há escravo nem livre; não há homem e mulher, porque todos sois um só em Cristo Jesus»[1].

O que falta, a quem pretende manter as mulheres afastadas dos chamados ministérios ordenados, é compreender algo de absolutamente essencial: não há um baptismo cristão para homens e outro diferente para mulheres. Isto em relação ao fundamento de todos os itinerários da vida cristã. Sem falar, hoje, das narrativas sobre a ressurreição de Cristo, com os seus diferentes matizes, em que as mulheres recebem do Ressuscitado o encargo de evangelizar os apóstolos, que tinham abandonado o Mestre depois do que julgavam ser o fracasso da cruz, pode-se dizer que foram sobretudo elas que garantiram o futuro dos movimentos cristãos.

Quando se diz que Jesus não escolheu nenhuma mulher para o grupo dos doze apóstolos, esquece-se algo muito mais significativo: escolheu mulheres para serem as apóstolas dos próprios apóstolos.

Por outro lado, no Dia Internacional da Mulher (8 de Março), foi apresentado na Santa Sé, um estudo internacional baseado em entrevistas a 17.200 mulheres católicas de 104 países diferentes, levado a cabo por uma equipa de investigadores australianos, coordenada pela teóloga e socióloga da religião Tracy McEwan, da Universidade de Newcastle e revelou que há «uma preocupação significativa com os abusos de poder cometidos por clérigos do sexo masculino e com os danos espirituais daí resultantes»[2].

2. S. João oferece-nos, na liturgia de hoje, um texto com tantos aspectos e dimensões que merece uma atenção especial, para compreender a própria essência da novidade do culto cristão, num contexto em que essa revelação servia, não só para judeus e samaritanos, mas para todos os tempos, lugares, culturas e religiões.

Os Evangelhos realçam a inimizade entre judeus e samaritanos. Conta S. Lucas que, como estavam a chegar os dias de ser levado deste mundo, Jesus dirigiu-se resolutamente para Jerusalém e enviou mensageiros à sua frente. Estes puseram-se a caminho e entraram numa povoação de samaritanos, a fim de lhe prepararem hospedagem. Mas não o receberam, porque ia a caminho de Jerusalém. Vendo isto, os discípulos Tiago e João disseram: Senhor, queres que digamos que desça fogo do céu e os consuma? Mas Ele, voltando-se, repreendeu-os. E foram para outra povoação[3].

No Evangelho segundo S. João, para ofender alguém, bastava chamar-lhe samaritano: Quem de vós pode acusar-me de pecado? Se digo a verdade, porque não me acreditais? Quem é de Deus escuta as palavras de Deus; vós não as escutais, porque não sois de Deus. Os judeus replicaram-lhe: Não temos nós razão ao dizer que és um samaritano e que tens demónio? Respondeu Jesus: Eu não tenho demónio. Eu honro o meu Pai, ao passo que vós me injuriais[4].

Esta inimizade tinha uma longa e complicada história. Os samaritanos são um pequeno grupo étnico-religioso originários da Samaria. Neste momento, um estudo de 2019, produzido pela comunidade samaritana, estima o seu número em 820 pessoas que habitam no distrito de Holon em Telavive e Nablus na Cisjordânia.

3. Pode parecer um anacronismo falar de um povo que parece que já não pesa nem na política nem na religião. No entanto, nos Evangelhos, essa referência tem uma significação de alcance mundial para os nossos tempos, tanto a nível religioso como político.

Existem duas narrativas. Uma de S. Lucas, onde se fala de um personagem que ficou, até aos nossos dias, como o que deve ser um comportamento ético, sem invocar nenhum princípio moral ou religioso, a chamada ética samaritana[5]. Não é dessa parábola que me vou ocupar.

Uma segunda narrativa que me interessa hoje: é a longa e célebre conversa entre Jesus e a samaritana que não posso reproduzir aqui[6].

Jesus e os discípulos dirigiam-se para Jerusalém e não houve conflito. Enquanto os discípulos foram arranjar alguma coisa para comer – era meio dia – Jesus cansado sentou-se junto do poço de Jacob. Nisto, uma mulher vem buscar água e Jesus pede-lhe de beber. Ela estranha o pedido: como, sendo tu judeu, me pedes de beber? Jesus oferece-lhe também uma água especial e pede-lhe para chamar o marido que não tem e já teve muitos. O espanto é que ele não a censura. A samaritana sente que está num encontro muito especial e faz-lhe a pergunta que vai desencadear uma declaração de Jesus que continua essencial.

É um encontro de povos inimigos e de uma nova religião que nem é de Jerusalém nem do monte de Garizim. Chegou uma nova era para a expressão cultual da religião. Sagrado é o ser humano, templo de Deus, não as nossas construções, grandes ou pequenas, que são apenas lugares de acolhimento e celebração. Cultivar a inimizade entre os povos por motivos religiosos é criminoso.

A samaritana tinha encontrado, de facto, a interrogação fundamental e correu a partilhá-la: não será Ele o Messias? É espantosa a resposta que encontrou no seu povo: verificámos que é Ele o salvador do mundo.

Segundo as narrativas evangélicas, Jesus encontrou nas mulheres as suas melhores testemunhas.

 

12 Março 2023



[1] Gal 3, 26-28

[2] Cf. Clara Raimundo, 7Margens, 08.03.2023

[3] Lc 9, 51-56

[4] Jo 9, 51-56

[5] Lc 10, 23-37

[6] Jo 4, 1-42

quarta-feira, 1 de março de 2023

ACABAR COM O PODER DE DOMINAÇÃO E OCULTAÇÃO Frei Bento Domingues, O.P.

 

1. Os negacionistas, que atribuíam a intenções malévolas as notícias sobre os abusos sexuais do clero, já não podem ignorar o Relatório Final da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica Portuguesa (CI). Está publicado e muito acessível.

Esta Comissão não foi constituída contra a Igreja. Pelo contrário, é fruto de um convite dirigido a Pedro Strecht, médico pedopsiquiatra, no final de 2021, por parte de D. José Ornelas, presidente da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP). A equipa de trabalho foi escolhida por Pedro Strecht e organizada de forma paritária, multidisciplinar, integrando profissionais de reconhecido mérito e com diferentes percursos de vida. Iniciou os seus trabalhos em Janeiro de 2022, definindo o tempo de um ano como prazo de duração dos mesmos, com a apresentação final de um relatório que acaba de ser apresentado e publicado, na Fundação Calouste Gulbenkian. Foi entregue a D. José Ornelas que se mostrou muito agradecido, mas só no dia 3 de Março haverá uma assembleia extraordinária da CEP para análise desse Relatório, sabendo já que vários bispos não ajudaram nada o trabalho exemplar da dita Comissão.

Espero que, entretanto, recolha vozes de dentro e fora da Igreja, para encontrar os melhores caminhos para responder à situação trágica das vítimas dos abusos. Parece-me que a CI deveria ser convidada para participar na configuração das medidas que o passado, o presente e o futuro impõem. E não só ela. Como eco do que já revelou a CI, surgiram, nos meios de comunicação, comentários extremamente pertinentes e certamente vão continuar. Seria importante que fosse criado um fórum aberto, não só para ampliar testemunhos das vítimas e o modo de as escutar, mas também para sugerir as alterações que devem ser promovidas no seio da Igreja e da sociedade.

No momento em que escrevo, verifiquei a alta qualidade dos textos publicados no Jornal Público, nos dias 14,15 e 16, que já constituem um excelente dossier. Teve, este Jornal, o cuidado de começar por dar expressão a muitas vozes católicas.

Além da atenção contínua às vítimas do abuso sexual do clero, o Editorial do 7Margens (13.02.2023), com o título Não foi um meteorito, são pessoas destruídas. Que fazer com esta tragédia?, António Marujo, Clara Raimundo, Jorge Wemans e Manuel Pinto perguntam que vamos fazer com esta realidade que foi agora desvendada e que alguns, inclusive na hierarquia da Igreja, desconsideraram e até ridicularizaram, ao considerar este país um oásis em questões de abusos? Que vão fazer os bispos? Que vão fazer os responsáveis políticos? Que vamos fazer todos nós, enquanto sociedade?

Com o Papa Francisco, desde o começo até agora (2013-2023), a Igreja Católica, na sua vida interna, nas suas relações ecuménicas, de diálogo inter-religioso e com o mundo secular, viveu uma complexidade de experiências como talvez nunca tenha vivido. Foi, no entanto, a convocatória (21.05.2021) para o Sínodo previsto para 2023, entretanto alargado até 2024, com uma inédita consulta ao povo cristão em assembleias paroquiais, diocesanas, nacionais e continentais, que pode vir a alterar a realidade e o estilo de vida e organização da própria Igreja. O que se pretende é que a Igreja seja de todos e para todos, isto é, uma Igreja sinodal: comunhão, participação e missão.

Só quando se tornar prática corrente este estilo de vida, em Igreja aberta ao mundo sem segredos, é que será possível erradicar os abusos apresentados no citado Relatório.

Sem esta reforma fundamental, o clericalismo continuará a exercer o seu poder de dominação e de ocultação.

2. Foi esclarecido, entretanto, que o Sínodo não é um evento, mas um processo, no qual todo o povo cristão é chamado a caminhar junto até que o Espírito Santo o ajude a discernir qual a vontade do Senhor para a sua Igreja. Por isso, também a própria Assembleia Sinodal assumirá uma dimensão processual, configurando-se como um caminho dentro de um caminho, para favorecer uma reflexão mais madura para o bem maior da Igreja ao serviço de todos os povos, sejam crentes ou não.

Como todos os católicos foram convocados a participar activamente no processo sinodal, se o não fizeram a culpa não é do Papa Francisco.

Em Praga, de 5 a 12 de Fevereiro, realizou-se a fase continental europeia do Sínodo. É impossível narrar tudo o que aconteceu durante essa semana. Existem várias formas de acesso a essa vasta documentação, por exemplo, 7Margens, Ecclesia e Vaticano[1].

Na abertura desta reunião, Tomás Hallík, um teólogo muito conhecido, fez uma Introdução espiritual aos trabalhos[2]. Sublinhou que, no caminhar juntos, que carateriza a sinodalidade, a Igreja precisa urgentemente de aliados, com quem partilha o caminho comum. Mas, para tal, não deve abordar os outros com o orgulho e arrogância de quem possui a verdade. A verdade é um livro que nenhum de nós leu até ao fim. Não somos os donos da verdade, mas amantes da verdade e amantes d’Aquele que pode dizer: Eu sou a Verdade.

Ao caracterizar a situação actual, este teólogo referiu-se também ao paradoxo da globalização que caracteriza a pós-modernidade. Por um lado, a interligação quase universal; por outro, a pluralidade radical. O lado negro da globalização tem vindo a manifestar-se de forma cada vez mais inquietante. Pense-se na propagação global da violência, desde os ataques terroristas aos EUA, em 2001, até ao terrorismo de Estado do imperialismo russo e ao actual genocídio russo na Ucrânia, sem esquecer pandemias de doenças infeciosas, destruição do ambiente natural, destruição do clima moral através do populismo, fake news, nacionalismo, radicalismo político e fundamentalismo religioso.

3. Entre as muitas conclusões da Assembleia Continental Europeia (09.02.2023), destaco a vontade de aprofundar a prática, a teologia e a hermenêutica da sinodalidade. Temos que redescobrir algo que é antigo, que pertence à natureza da Igreja e é sempre novo. Estamos a dar os primeiros passos num caminho que se abre à medida que o percorremos.

Um dos grandes problemas que o Sínodo não pode evitar é o de tomar decisões concretas e corajosas sobre o papel da mulher na Igreja e sobre o seu maior envolvimento a todos os níveis, também nos processos de tomada de decisão. Não existe um baptismo cristão para homens e outro diferente para mulheres. É o baptismo assumido que constitui homens e mulheres sacerdotes. A organização dos ministérios, dos serviços eclesiais, não pode trair esta realidade de base.

Importa renovar um vivo sentido de missão, fazendo a ponte entre fé e cultura para que o Evangelho volte a fazer parte dos sentimentos das pessoas, encontrando uma linguagem capaz de articular tradição e aggiornamento, mas acima de tudo, caminhar com as pessoas em vez de falar delas ou para elas. O Espírito pede-nos para ouvir o grito dos pobres e da terra na Europa e, em particular, o grito desesperado das vítimas da guerra que exigem uma paz justa.

 

19 Fevereiro 2023



[1] Manuel Pinto, in 7Margens, seguiu todo esse processo.

[2] O texto completo da “introdução espiritual de Tomás Hallik encontra-se disponível em espanhol, italiano, francês e inglês, in 7Margens, 06.02.2023

ENTRE O CARNAVAL E AS CINZAS Frei Bento Domingues, O.P.

 

1. O Jornal Público, no Domingo passado, foi à Missa, em Lisboa e no Porto[1], e ficou surpreendido por não encontrar os respectivos bispos a presidir à celebração. Na Sé de Lisboa, encontrou um jovem padre, José André, capelão do Hospital de Santa Maria e do Hospital de São Francisco Xavier que, a propósito dos abusos sexuais na Igreja, citou uma conversa com o pároco da Sé: «olha Zé, aguentar nós aguentamos, mas nós não fomos feitos para aguentar, fomos feitos para sermos felizes. Aguentar ciclos viciosos em que nos torturamos mutuamente não nos conduz à felicidade».

Baltazar Martins Jesuíno tem realçado, de várias maneiras, a educação para a felicidade[2]. São Tomás de Aquino antecede a sua ética teológica de um tratado de 5 questões sobre a felicidade, princípio e fim do agir humano[3]. Distancia-se dos seus contemporâneos que colocam essa questão apenas no fim e parece encontrar-se com Aristóteles que fala da felicidade no primeiro e no último livro da Ética, embora se distancie dele na definição que dá de felicidade. Longe de se situar sob o signo da obrigação, como fazia a imensa maioria dos outros teólogos moralistas, a de Tomás é colocada sob a conquista da felicidade. Longe de ser regida pelo imperativo da obediência a uma lei exterior, não conhece outra lei a não ser a do amor. O Mestre Tomás vai ao ponto de dizer que uma forma de agir que não fosse mais do que uma obediência à lei, faltava-lhe uma dimensão essencial à virtude, que é para a pessoa ser atraída pelo bem, por ele mesmo, e não por ser coagida. É uma Moral da liberdade colocada inteiramente sob o signo da realização evangélica do sujeito[4]. O que há de mais importante na lei do Novo Testamento, e na qual consiste toda a sua força, é a graça do Espírito Santo acolhida pela fé em Cristo. Tudo o resto é apenas para a secundar. É dada ao íntimo da pessoa, só secundariamente é escrita. Mais, sem a graça do Espírito Santo – lei do amor e da liberdade – a própria letra dos Evangelhos, em vez de salvar, mata[5].

2. Por causa de uma antropologia que não respeita a complexidade do ser humano, é fácil cair no angelismo e, como disse Pascal, o ser humano não é anjo nem besta, mas quem quer ser anjo, acaba por ser uma besta.

Seria bom não separar o carnaval e as cinzas, isto é, o riso e as exigências da conversão, segundo o Evangelho, que consiste no reencontro com a alegria perdida.

Conta-se que, quando Santa Teresa d’Ávila, andava de mosteiro em mosteiro para a reforma do Carmelo, era muito conhecida pela sua austeridade. Uma senhora rica quis pôr à prova essa austeridade, convidando-a para jantar. O prato era perdiz e ela, esfomeada, regalou-se. Os convivas perguntavam, onde está a Teresa dos famosos jejuns? Resposta pronta: quando é jejum é jejum, quando é perdiz é perdiz. O humor vive bem com as exigências da santidade. Um santo triste é um triste santo.

Nos anos 70, do século passado, várias pessoas que frequentaram o Curso de Teologia de Verão do Instituto de S. Tomás de Aquino (ISTA), em Fátima, testemunham a novidade das aulas de Teologia Moral do Frei Mateus Peres, O.P. Pela primeira vez ouviram ensinar que a vida moral não podia negar o prazer dos sentidos, pelo contrário, afirmar a importância que eles têm na vida humana, na vida moral: o prazer de olhar a beleza, de sentir bons aromas, ter prazer na boa comida, ouvir boa música, sentir os prazeres do tacto, etc.

Mateus Peres investigou e ensinou a Ética teológica do seu mestre medieval, Tomás d’Aquino, em confronto com a modernidade. Este explicou, de forma paciente e minuciosa, toda a complexidade do ser humano, a sua unidade e a sua plasticidade. Existe para crescer e desabrochar pela educação, pela cultura, pela solidariedade e pela graça e comunhão com Deus e com os outros. É igualmente solicitado por uma multiplicidade de pulsões ou desejos, dotado de uma liberdade defectível. Por isso, capaz de se autodestruir no plano espiritual, ético e divino[6].

O ser humano não está feito, vai-se fazendo, não é, vai sendo. Se não se tivesse deformado, viveria a sua sexualidade com o maior prazer em toda a sua perfeição erótica e espiritual[7]. Não pode viver sem prazer partilhado. Atraiçoa-se se a busca do seu prazer é vivida à custa do sofrimento dos outros.

Uma ética, uma moral que desconfia, nega ou julga pecaminoso a autenticidade das sensações humanas é desumana. As leis e os preceitos, se não promoverem o bem integral da pessoa, atraiçoam a própria vida ética.

3. Este Domingo é o 1º da Quaresma que já começou na passada quarta-feira, chamada das Cinzas. Nessa celebração, repetia-se, de forma niilista, lembra-te que és pó e ao pó voltarás. Creio que é melhor a fórmula actual: convertei-vos e acreditai no Evangelho, acreditai na alegria.

Nesse dia, o texto de S. Mateus não entra na mentalidade mercantilista, que não faz o bem por ser bem, mas para dar nas vistas, aparecendo hipocritamente como virtuoso. Por isso, nas esmolas, emprega a sentença radical: não saiba a tua mão esquerda o que faz a direita. O verdadeiro jejum e a verdadeira oração não podem ser um exibicionismo religioso.

Hoje, a liturgia eucarística lembra a fragilidade da nossa condição que não está confirmada no bem. Pode atraiçoar-se. O próprio Jesus, quando buscava o seu caminho, retirado no deserto, meditando na experiência mística, a seguir ao baptismo penitencial do rio Jordão, foi alvo de tentações messiânicas do poder de dominação: dominação económica, política e religiosa. Recusou tudo. O seu caminho não era o de dominar, mas o de servir, começando pelas periferias sociais e espirituais.

Os discípulos não entenderam isso. Para eles, o seguimento de Jesus era o começo de uma carreira. Nunca desistiram dessa ambição, por mais que Jesus lhes dissesse, nos dissesse também hoje a nós, que quem quer ser o primeiro coloque-se ao serviço de todos.

A nossa Quaresma só pode ser verdadeira se tiver como horizonte a conversão dos nossos desejos do poder de dominar. Uma pessoa só deve ser considerada católica porque deseja a sua vida ao serviço de quem precisa de ajuda, seja crente ou não. Uma Igreja só pode ser católica, isto é, universal, quando é uma escola de aprender a servir, sem olhar a quem. Todos nos devíamos tornar cada vez mais competentes, não para dominar, mas para servir.

R. Tagore exprimiu bem o sentido de uma Quaresma cristã: Adormeci e sonhei que a vida era alegria; despertei e vi que a vida era serviço; servi e vi que o serviço era uma alegria.

 

 

26 Fevereiro 2023



[1] Cf. Reportagem de Rita Ferreira e Patrícia Carvalho

[2] Baltazar Martins Jesuíno, Educação para a Felicidade e o Bem-Estar, Editora RH, 2021

[3] S.Th. I-II q. 1-5

[4] Cf. Jean-Pierre Torrell, La Somme de Saint Thomas, Cerf, 1998, pp. 47-48

[5] Cf. S.Th. I-II q. 106-108

[6] Cf. Frei Carlos Josaphat, Paradigma Teológico de Tomás de Aquino, Paulus – Brasil, 2012, p.314

[7] Cf. S.Th. I q. 98, a.2