segunda-feira, 29 de julho de 2024

DO CONFLITO À RECONCILIAÇÃO Frei Bento Domingues, O.P. 21 Julho 2024

 

DO CONFLITO À RECONCILIAÇÃO

Frei Bento Domingues, O.P.

21 Julho 2024

 

1. O famoso Padre Felicidade Alves (1925-1998), na apresentação do seu livro, Católicos e Política – de Humberto Delgado a Marcelo Caetano, de 1969, não se deu por satisfeito com a obra que acabava de apresentar. Verificava que existia um grande vazio de estudos e de informação para enfrentar o regime político e bélico em que o país estava mergulhado. Mais dia menos dia, terá de se fazer a história crítica destes últimos anos da vida política portuguesa. Não deixará de ter lugar de relevo a presença ou ausência dos católicos na vida política, assim como a posição negativa ou positiva dos hierarcas e das estruturas clericais no funcionamento do sistema.

Surgiram, entretanto, os Cadernos GEDOC[1]. Começava, assim, a recolher-se alguns textos e qualquer destes documentos marcam uma viragem.

O P. Felicidade Alves destaca que, num regime em que a opinião pública está destruída pela castração dos meios normais de informação, documentos deste género sofrem as condições precárias da clandestinidade. Passam de mão em mão, muitos perdem-se irremediavelmente.

Foi encerrado um período e um estilo de «participação» dos católicos na vida política, que consistia em aparecerem em grupo a tomar posição como católicos, sobretudo através de documentos e abaixo-assinados.

Desta vez, e espera-se que não se volte atrás, os católicos entraram na liça, ombro a ombro com os demais cidadãos, sem preocupação do rótulo de católicos. Não entraram em bloco monolítico. Dispersaram-se e fragmentaram-se por todos os meridianos políticos, desde a extrema-direita fascista até à extrema-esquerda revolucionária.

Facto significativo: salientaram-se as posições de radicalismo socialista com inspiração profética haurida nos fermentos revolucionários do Antigo e do Novo Testamento[2].

2. A começar pelo grande livro de João Miguel Almeida, A Oposição Católica ao Estado Novo (2008), contamos, hoje, com várias obras sobre o catolicismo e a oposição à ditadura e às três frentes da guerra colonial. Este ano (2024), a Tinta da China publicou um livro de Ana R. Gomes, precisamente com o título, Padre Felicidade. O oposicionista praticante, pároco de Santa Maria de Belém entre 1956 e 1968.

1968 representa uma viragem radical no itinerário desta figura central: apresentou ao seu Conselho Paroquial um documento intitulado Perspectivas actuais de transformação nas estruturas da Igreja. Sentido da responsabilidade na vida política do país (19.04.68) – páginas que encerram duras críticas à Igreja Católica portuguesa e ao Estado Novo.

Esta corajosa tomada de posição não levou o Cardeal Cerejeira a fazer um exame do que tinha sido, e era, a situação da Igreja e não reviu as ambíguas relações entre a Igreja e o Estado Novo, de que era o grande responsável. Nem a carta de D. António Ferreira Gomes, Pró-Memória (Carta a Salazar), a 13 de Julho de 1958, nem a realização do Vaticano II (1962-1965), foram capazes de convencer o Cardeal Cerejeira que tinha de mudar. Acerca do Vaticano II, o Patriarca justificou o seu imobilismo com a declaração delirante de que «nós já estamos muito à frente do Vaticano II». Não admira, portanto, que a única resposta às posições do Padre Felicidade Alves foi a suspensão a divinis para o exercício das funções sacerdotais, a 2 de Novembro de 1968.

Entre 1969 e 1970, Felicidade Alves integra e coordena o movimento GEDOC (Grupo de Estudos e Intercâmbio de Documentos, Informação e Experiências), cuja face visível era o projecto editorial designado Cadernos GEDOC. A publicação assumia como missão ser espaço de partilha de informação e de debate sobre a Igreja no pós-Vaticano II, produzida por um grupo informal de crentes que se autointitulava de vanguarda cristã[3].

O que julgo importante sublinhar foi a incapacidade do Cardeal-Patriarca Cerejeira de entender que as suas posições, tanto em relação à Igreja como ao Estado Novo, tinham, mais dia menos dia, de chegar ao fim. Não percebeu os sinais do novo tempo.

3. Apesar das várias tentativas de reconciliação, não seria ainda, durante o mandato de D. António Ribeiro, que se assistiria a um desfecho do «caso de Belém». Morre a 24 de Março de 1998, dia que é também o da nomeação de José Policarpo como Patriarca de Lisboa.  Este, passado pouco tempo, a 4 de Abril, escreve uma carta a José da Felicidade Alves, propondo um encontro para resolver o debate em curso, disponibilizando-se mesmo a deslocar-se à casa do antigo sacerdote para o efeito[4].

A 10 de Junho, D. José Policarpo apresentou oficialmente um pedido de perdão e presidiu ao casamento canónico de Felicidade Alves, poucos meses antes da sua morte, que ocorreu a 14 de Dezembro desse mesmo ano.

Na homilia, frente a uma assembleia de cerca de três centenas de pessoas, o Cardeal-Patriarca interpela directamente o nubente, dizendo-lhe: «Deu-lhe Deus a graça de perdoar as mágoas que sentia. A Igreja também lhe perdoa as que sentiu a seu respeito. E naquilo que, em algum momento deste processo, ela possa ter ferido a justiça, também lhe pede perdão». Dias depois, Felicidade Alves escreve a José Policarpo, agradecendo os especiais cuidados e empenho pessoal do Patriarca em colocar um ponto final no «caso de Belém» e classifica a homilia, então proferida, como «sensacional»[5].

Verifiquei, ao longo da vida, que fora do diálogo não há salvação[6], seja em que domínio for. Notei que o livro de Ana R. Gomes, de outro modo, confirmava esta convicção. Começa com o grave conflito e a ruptura entre Felicidade Alves e o Cardeal Cerejeira. Faltou o diálogo para superar, de forma criativa, esse doloroso conflito.

Ana Gomes termina o seu livro com a reconciliação entre o Cardeal Patriarca de Lisboa, José Policarpo – que fora seu aluno no Seminário dos Olivais – e José da Felicidade Alves. Este vê terminado um processo de revisão do seu processo na Santa Sé e de redução ao estado laical junto do Vaticano. Rectificação que permitiria a realização do seu casamento pela Igreja.

Decorridos que eram quase trinta anos sobre o decreto de suspensão das funções sacerdotais, o decano processo canónico seria revisto e modificado em poucos meses[7].

De facto, fora do diálogo não há salvação.

 

 

 



[1] Cadernos GEDOC (Grupos de Estudos e Intercâmbio de Documentação).

[2] Cf. PEREIRA, Nuno Teotónio, A voz de um profeta: José da Felicidade Alves, in Viragem: revista do Movimento Metanoia, nº 30, jan.-mar. 1999, pp. 3-5.

[3] Cf. Ana R. Gomes, Padre Felicidade, o oposicionista praticante, Tinta da China, 2024, pp.7-8

[4] Ibidem, pp. 195-196

[5] Ibidem, p. 196

[6] Frei Bento Domingues, O.P., Fora do Diálogo não há Salvação, Temas e Debates, 2024

[7] Cf. Ana R. Gomes, Padre Felicidade, o oposicionista praticante, Tinta da China, 2024, p.194

sábado, 27 de julho de 2024

Cinco pães e dois peixes, a receita do milagre! Pe. Manuel João - MC

 Cinco pães e dois peixes, a receita do milagre!

 

Ano B – Tempo Comum – 17º domingo
João 6,1-15: "Este é realmente o profeta"

 

Neste domingo, a liturgia interrompe a leitura do evangelho de Marcos, quando havíamos chegado ao relato da multiplicação dos pães, para incluir a leitura da versão joanina deste milagre. Durante cinco domingos, ouviremos o capítulo 6 do evangelho de João, o capítulo mais longo e um dos mais densos dos quatro evangelhos. A multiplicação dos pães é o único milagre contado por todos os evangelhos. Na verdade, encontramo-lo seis vezes, já que é duplicado em Marcos e Mateus. Isso faz-nos entender a importância que os primeiros cristãos deram a este evento tão sensacional.

O capítulo 6 de João é particularmente rico e profundo do ponto de vista simbólico. Este “sinal” (assim João chama os milagres) é meditado e elaborado com grande cuidado, como ele faz com todos os sete “sinais” que recolhe no seu evangelho. No centro do relato encontramos o “pão”, mencionado 21 vezes (de 25 em todo o evangelho de João). No pano de fundo da narrativa e do discurso que se segue na sinagoga de Cafarnaum, encontramos a referência à eucaristia. Lembremos que João não relata a instituição da eucaristia, substituída pela lavagem dos pés. Aqui ele apresenta a sua meditação sobre a eucaristia.

O risco do reducionismo

Antes de nos aproximarmos do texto, parece-me oportuno sublinhar a necessidade de evitar alguns possíveis reducionismos:

1) Concentrar a nossa atenção quase exclusivamente no aspecto milagroso, ou seja, na dimensão histórica, no “facto” em si. Os quatro evangelistas dão versões com detalhes bastante diferentes. Isso ajuda-nos a entender que cada um deles já faz uma releitura em função da sua comunidade, por isso o “facto” é entrelaçado com a sua interpretação catequética;

2) Considerar do relato apenas a dimensão simbólica, esvaziando o “sinal” da sua referência histórica, reduzindo-o assim a uma “parábola”. Sem a veracidade do milagre não se explica porque os evangelistas e a primeira comunidade cristã deram tanta importância a este “sinal”;

3) Interpretar o relato exclusivamente em chave eucarística. Todos os evangelistas ligam o milagre à eucaristia, mas a narrativa tem um alcance mais amplo e mais rico. No texto de João 6 a referência explícita à eucaristia aparece apenas no final do discurso de Jesus;

4) Fazer uma leitura unívoca do texto, ou seja, apenas “religiosa” (o milagre como figura do alimento espiritual), ou unicamente “material” (como um simples convite à partilha e à solidariedade).

Alguns elementos simbólicos

1) A nova Páscoa. “Estava próxima a Páscoa, a festa dos judeus”. A referência à Páscoa não é apenas uma anotação temporal, mas tem um alcance simbólico. Esta “grande multidão” já não vai em direção a Jerusalém para celebrar a Páscoa, mas em direção a Jesus. Ele é a nova Páscoa que dá início ao êxodo definitivo da nossa libertação.

2) O novo Moisés. “Jesus subiu ao monte e sentou-se ali com os seus discípulos”. Este subir ao monte (primeiro com os discípulos e depois sozinho) lembra-nos Moisés. A comparação é ainda mais evidente se considerarmos que logo em seguida vem o relato de Jesus caminhando sobre o mar (Jo 6,16-21). Jesus é o novo Moisés, o novo profeta e líder do povo de Deus que está prestes a oferecer o novo maná.

3) O verdadeiro Pastor. “Façam-os sentar. Havia muita relva naquele lugar”. Esta anotação, além de ser uma referência à primavera e ao período da Páscoa, nos remete ao salmo 23: “O Senhor é o meu pastor, nada me faltará. Em verdes pastos me faz descansar”. Jesus, que reúne a multidão ao seu redor e percebe as suas necessidades, é o Pastor prometido por Deus (Ezequiel 34,23).

4) O novo maná. “Recolham os pedaços que sobraram, para que nada se perca”. O maná não devia ser recolhido para o dia seguinte, exceto para o sábado (Êxodo 16,13-20). Aqui, no entanto, Jesus recomenda recolher os pedaços que sobraram. Não tanto para que nada se desperdice, mas como uma alusão à eucaristia. “Eles recolheram-nos e encheram doze cestos”, tantos quantas as doze tribos de Israel, como as horas do dia e os meses do ano.

Dois pontos de reflexão

1) Converter-se a uma visão global, integral do Reino. Notamos, antes de tudo, que Jesus se preocupa não apenas com a fome espiritual das pessoas, mas também com a fome física. Não podemos ignorar que, além da fome da Palavra, há também uma fome dramática de pão no mundo. O Reino de Deus diz respeito à totalidade da pessoa. No entanto, em nossa mentalidade persiste uma visão dualista da vida, uma separação entre a esfera espiritual e a material. “As pessoas vão à igreja para rezar; para comer, cada um volta para sua casa e se arranja!”: esta é a nossa lógica, muito prática! E era a dos apóstolos, como vemos na versão do relato do evangelho de Lucas, onde eles dizem a Jesus: “Está a ficar tarde, manda a multidão embora para que vá às aldeias e campos ao redor para encontrar hospedagem e comida”. Jesus, no entanto, parece carecer de senso prático e responde-lhes: “Vocês mesmos deem-lhes de comer” (Lucas 9,12-13). A Igreja não pode alienar-se das condições em que a humanidade vive, “caída nas mãos dos ladrões”!

2) Da economia do comércio para a do dom. “Onde poderemos comprar pão para que estes tenham de comer? Ele disse isso [Jesus a Filipe] para testá-lo”. Por que ele pergunta justamente a Filipe? Porque é um tipo prático e esperto (veja Jo 1,46; 14,8-9). De facto, ele faz as contas rapidamente: “Duzentos denários de pão não seriam suficientes para que cada um recebesse um pedaço!” Duzentos denários era muito, considerando que um denário era o salário diário de um trabalhador. Neste ponto, intervém André, seu amigo e conterrâneo, já que Jesus havia perguntado “onde” se podia encontrar pão: “Aqui está um rapaz que tem [para vender?] cinco pães de cevada e dois peixes”, mas percebendo o absurdo, acrescenta rapidamente: “mas o que é isso para tanta gente?”. Mas 5+2 dá 7, o número da plenitude. Para Jesus é mais do que suficiente. E o milagre acontece!

Hoje em dia, vemos poucos milagres deste tipo. Como Gideão, poderíamos perguntar-nos: “Onde estão todas as suas maravilhas que nossos pais nos contaram?” (Juízes 6,13). Mas se hoje não ocorrem “milagres”, não é porque “o braço do Senhor se encolheu” (Isaías 59,1). Ele gostaria de realizar muitos milagres: o milagre de acabar com a fome no mundo, de fazer desaparecer as guerras que matam seus filhos e filhas e desfiguram a sua criação, de instaurar definitivamente um mundo novo onde reina a paz e a justiça... No entanto, há um problema. Deus, depois de criar o homem, decidiu não fazer mais nada sem a cooperação dos homens. O Senhor gostaria de realizar milagres, mas faltam-lhe os ingredientes que só nós podemos oferecer. Faltam-lhe os cinco pães de cevada e os dois peixes, que insistimos em querer vender, em vez de compartilhá-los.

Para a reflexão semanal

1) Quais são os “cinco pães de cevada e os dois peixes” que o Senhor me está a pedir para mudar minha vida?
2) Que lógica predomina na minha vida: a do acúmulo ou a da solidariedade?
3) Para meditar:
- “Se compartilhamos o pão do céu, como não compartilharemos o da terra?” (Didaqué);
- “O pão do necessitado é a vida dos pobres, quem o priva dele é um assassino. Mata o próximo quem lhe tira o sustento, derrama sangue quem nega o salário ao trabalhador.” (Sirácide 34,25-27);
- “No mundo há pão suficiente para a fome de todos, mas insuficiente para a ganância de poucos” (Gandhi).

Pe. Manuel João Pereira Correia MCCJ
Verona, 25 de julho de 2024

P. Manuel João Pereira Correia mccj
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domingo, 21 de julho de 2024

DO CONFLITO À RECONCILIAÇÃO Frei Bento Domingues, O.P. 21 Julho 2024

 

DO CONFLITO À RECONCILIAÇÃO

Frei Bento Domingues, O.P.

21 Julho 2024

 

1. O famoso Padre Felicidade Alves (1925-1998), na apresentação do seu livro, Católicos e Política – de Humberto Delgado a Marcelo Caetano, de 1969, não se deu por satisfeito com a obra que acabava de apresentar. Verificava que existia um grande vazio de estudos e de informação para enfrentar o regime político e bélico em que o país estava mergulhado. Mais dia menos dia, terá de se fazer a história crítica destes últimos anos da vida política portuguesa. Não deixará de ter lugar de relevo a presença ou ausência dos católicos na vida política, assim como a posição negativa ou positiva dos hierarcas e das estruturas clericais no funcionamento do sistema.

Surgiram, entretanto, os Cadernos GEDOC[1]. Começava, assim, a recolher-se alguns textos e qualquer destes documentos marcam uma viragem.

O P. Felicidade Alves destaca que, num regime em que a opinião pública está destruída pela castração dos meios normais de informação, documentos deste género sofrem as condições precárias da clandestinidade. Passam de mão em mão, muitos perdem-se irremediavelmente.

Foi encerrado um período e um estilo de «participação» dos católicos na vida política, que consistia em aparecerem em grupo a tomar posição como católicos, sobretudo através de documentos e abaixo-assinados.

Desta vez, e espera-se que não se volte atrás, os católicos entraram na liça, ombro a ombro com os demais cidadãos, sem preocupação do rótulo de católicos. Não entraram em bloco monolítico. Dispersaram-se e fragmentaram-se por todos os meridianos políticos, desde a extrema-direita fascista até à extrema-esquerda revolucionária.

Facto significativo: salientaram-se as posições de radicalismo socialista com inspiração profética haurida nos fermentos revolucionários do Antigo e do Novo Testamento[2].

2. A começar pelo grande livro de João Miguel Almeida, A Oposição Católica ao Estado Novo (2008), contamos, hoje, com várias obras sobre o catolicismo e a oposição à ditadura e às três frentes da guerra colonial. Este ano (2024), a Tinta da China publicou um livro de Ana R. Gomes, precisamente com o título, Padre Felicidade. O oposicionista praticante, pároco de Santa Maria de Belém entre 1956 e 1968.

1968 representa uma viragem radical no itinerário desta figura central: apresentou ao seu Conselho Paroquial um documento intitulado Perspectivas actuais de transformação nas estruturas da Igreja. Sentido da responsabilidade na vida política do país (19.04.68) – páginas que encerram duras críticas à Igreja Católica portuguesa e ao Estado Novo.

Esta corajosa tomada de posição não levou o Cardeal Cerejeira a fazer um exame do que tinha sido, e era, a situação da Igreja e não reviu as ambíguas relações entre a Igreja e o Estado Novo, de que era o grande responsável. Nem a carta de D. António Ferreira Gomes, Pró-Memória (Carta a Salazar), a 13 de Julho de 1958, nem a realização do Vaticano II (1962-1965), foram capazes de convencer o Cardeal Cerejeira que tinha de mudar. Acerca do Vaticano II, o Patriarca justificou o seu imobilismo com a declaração delirante de que «nós já estamos muito à frente do Vaticano II». Não admira, portanto, que a única resposta às posições do Padre Felicidade Alves foi a suspensão a divinis para o exercício das funções sacerdotais, a 2 de Novembro de 1968.

Entre 1969 e 1970, Felicidade Alves integra e coordena o movimento GEDOC (Grupo de Estudos e Intercâmbio de Documentos, Informação e Experiências), cuja face visível era o projecto editorial designado Cadernos GEDOC. A publicação assumia como missão ser espaço de partilha de informação e de debate sobre a Igreja no pós-Vaticano II, produzida por um grupo informal de crentes que se autointitulava de vanguarda cristã[3].

O que julgo importante sublinhar foi a incapacidade do Cardeal-Patriarca Cerejeira de entender que as suas posições, tanto em relação à Igreja como ao Estado Novo, tinham, mais dia menos dia, de chegar ao fim. Não percebeu os sinais do novo tempo.

3. Apesar das várias tentativas de reconciliação, não seria ainda, durante o mandato de D. António Ribeiro, que se assistiria a um desfecho do «caso de Belém». Morre a 24 de Março de 1998, dia que é também o da nomeação de José Policarpo como Patriarca de Lisboa.  Este, passado pouco tempo, a 4 de Abril, escreve uma carta a José da Felicidade Alves, propondo um encontro para resolver o debate em curso, disponibilizando-se mesmo a deslocar-se à casa do antigo sacerdote para o efeito[4].

A 10 de Junho, D. José Policarpo apresentou oficialmente um pedido de perdão e presidiu ao casamento canónico de Felicidade Alves, poucos meses antes da sua morte, que ocorreu a 14 de Dezembro desse mesmo ano.

Na homilia, frente a uma assembleia de cerca de três centenas de pessoas, o Cardeal-Patriarca interpela directamente o nubente, dizendo-lhe: «Deu-lhe Deus a graça de perdoar as mágoas que sentia. A Igreja também lhe perdoa as que sentiu a seu respeito. E naquilo que, em algum momento deste processo, ela possa ter ferido a justiça, também lhe pede perdão». Dias depois, Felicidade Alves escreve a José Policarpo, agradecendo os especiais cuidados e empenho pessoal do Patriarca em colocar um ponto final no «caso de Belém» e classifica a homilia, então proferida, como «sensacional»[5].

Verifiquei, ao longo da vida, que fora do diálogo não há salvação[6], seja em que domínio for. Notei que o livro de Ana R. Gomes, de outro modo, confirmava esta convicção. Começa com o grave conflito e a ruptura entre Felicidade Alves e o Cardeal Cerejeira. Faltou o diálogo para superar, de forma criativa, esse doloroso conflito.

Ana Gomes termina o seu livro com a reconciliação entre o Cardeal Patriarca de Lisboa, José Policarpo – que fora seu aluno no Seminário dos Olivais – e José da Felicidade Alves. Este vê terminado um processo de revisão do seu processo na Santa Sé e de redução ao estado laical junto do Vaticano. Rectificação que permitiria a realização do seu casamento pela Igreja.

Decorridos que eram quase trinta anos sobre o decreto de suspensão das funções sacerdotais, o decano processo canónico seria revisto e modificado em poucos meses[7].

De facto, fora do diálogo não há salvação.

 

 

 

 



[1] Cadernos GEDOC (Grupos de Estudos e Intercâmbio de Documentação).

[2] Cf. PEREIRA, Nuno Teotónio, A voz de um profeta: José da Felicidade Alves, in Viragem: revista do Movimento Metanoia, nº 30, jan.-mar. 1999, pp. 3-5.

[3] Cf. Ana R. Gomes, Padre Felicidade, o oposicionista praticante, Tinta da China, 2024, pp.7-8

[4] Ibidem, pp. 195-196

[5] Ibidem, p. 196

[6] Frei Bento Domingues, O.P., Fora do Diálogo não há Salvação, Temas e Debates, 2024

[7] Cf. Ana R. Gomes, Padre Felicidade, o oposicionista praticante, Tinta da China, 2024, p.194

sábado, 20 de julho de 2024

Jesus, os discípulos e a multidão - Pe. Manuel João, MC

 Jesus, os discípulos e a multidão

Ano B – Tempo Comum - 16o domingo
Marcos 6,30-34: “Eles nem tinham tempo de comer”

A temática principal das leituras deste domingo poder-se-ia resumir em dois conceitos ou figuras: o pastor e o descanso.

- Primeira leitura: “Eu mesmo reunirei o resto das minhas ovelhas de todas as terras onde se dispersaram e as farei voltar às suas pastagens, para que cresçam e se multipliquem.” (Jeremias 23,1-6);
- Salmo: “O Senhor é meu pastor: nada me falta. Leva-me a descansar em verdes prados” (Salmo 22);
- Segunda leitura: “Cristo é, de facto, a nossa paz. Foi Ele que fez de judeus e gregos um só povo” (Efésios 2,13-18);
- Evangelho: “Ao desembarcar, Jesus viu uma grande multidão e compadeceu-se de toda aquela gente, porque eram como ovelhas sem pastor”.

Desde o início, pedimos a graça de reconhecer em Cristo o nosso Pastor, o único que nos faz antever a alegria do “Descanso”, meta da existência do cristão e da humanidade. Com efeito, peregrinamos todos no deserto da vida em direção ao descanso da “Terra Prometida”.

Uma fuga fracassada!

O trecho do evangelho narra o regresso dos Doze que Jesus havia enviado em missão no domingo passado. Ouvimos o relato, mas tentemos revivê-lo imaginando a cena. O evangelista nos diz que “os Apóstolos [é a única vez que Marcos os chama de apóstolos] voltaram para junto de Jesus e contaram-lhe tudo o que tinham feito e ensinado”. Assim, na data que Jesus lhes havia marcado, eles se apresentaram, talvez aos poucos, para prestar contas do que tinham “feito” e “ensinado”. O apóstolo sempre retorna ao mandante, à fonte da missão. Jesus ouve-os satisfeito e, notando o cansaço, convida-os a fazer uma pausa: “Vinde comigo para um lugar isolado e descansai um pouco”. Havia, na verdade, muita agitação, com “sempre tanta gente a chegar e a partir”. O Mestre era a atração. Talvez outras pessoas das aldeias que os apóstolos tinham evangelizado quisessem acompanhá-los para conhecer Jesus. O facto era que “eles nem tinham tempo de comer”!

O grupo precisava não apenas de descanso físico, mas também de tranquilidade, reflexão, confronto com Jesus e com os companheiros para avaliar aquela primeira experiência de missão. Ali, corriam o risco de serem dominados pela frenesia do activismo ou de caírem até na armadilha do protagonismo. “Partiram, então, de barco para um lugar isolado, sem mais ninguém”. Diversas outras vezes o Mestre retirou-se da multidão para ficar sozinho com os seus discípulos”. Desta vez, porém, muitos perceberam para onde iam e, a pé, “chegaram lá primeiro que eles. Uma fuga fracassada! Como reagiu Jesus? “Ao desembarcar, Jesus viu uma grande multidão e compadeceu-se de toda aquela gente, porque eram como ovelhas sem pastor. E começou a ensinar-lhes muitas coisas”.

Tentemos agora colocar-nos no lugar dos três protagonistas desta passagem do evangelho: Jesus, os apóstolos e a multidão.

1. JESUS “compadeceu-se de toda aquela gente”. Ele comove-se diante da multidão e muda os seus planos. A sua atitude é para nós um duplo desafio. Primeiro de tudo, o seu olhar de compaixão. Tudo nasce do olhar. A nossa visão da realidade depende do nosso tipo de olhar. Cultivar um olhar compassivo é hoje uma prioridade absoluta. Através dos meios de comunicação, vemos todos os dias as multidões que sofrem e corremos o risco de nos acostumar com o sofrimento alheio e de cair na indiferença. O olhar de compaixão deve ser cultivado: como? Prestando atenção aos raciocínios, julgamentos e preconceitos que surgem em nós, anestesiando os nossos sentimentos. E, depois, traduzir a compaixão em gestos de solidariedade, mesmo que nos pareçam uma gota no oceano do sofrimento humano. Diz São Paulo: “Tende em vós os mesmos sentimentos de Cristo Jesus.” (Filipenses 2,5).

Também nos desafia a prontidão com a qual Jesus reage a essa situação. Ao ver aquela multidão, os apóstolos devem ter experimentado irritação, como acontece connosco tantas vezes, quando alguém nos obriga a mudar os nossos planos. Talvez voltemos do trabalho, cansados, desejosos de descansar e, em vez disso, os filhos esperam-nos para brincar, ou o cônjuge espera de nós atenção ou ajuda. Talvez, outras vezes, tenhamos um trabalho a terminar, com o tempo contado, e alguém vem interromper-nos ... Deixar-se interromper para acolher uma pessoa, estar disponível para mudar os nossos planos, dar prioridade ao outro e saber “perder tempo”, tudo isso faz parte da ascese do serviço!

2. OS APÓSTOLOS “nem tinham tempo de comer”. Muitas vezes, a situação deles é também a nossa. Muito ocupados com os nossos afazeres, arrastados pela frenesia dos nossos dias, corremos o risco de nos tornar espiritualmente desnutridos e, sem percebermos, de sermos sugados pela voragem de uma visão materialista da vida. É essencial cultivar momentos de pausa, de silêncio e de tranquilidade para ler as Escrituras ou um bom livro, para refletir e orar. Além disso, todos devemos ter “um lugar deserto, à parte” onde nos refugiar em certos momentos: uma igreja, um santuário, um parque... E, finalmente, seria oportuno verificar como passamos o domingo, se é realmente um dia de descanso, físico, mental e espiritual.

3. A MULTIDÃO: “eram como ovelhas sem pastor”. Era a multidão de que falava o profeta Jeremias na primeira leitura (veja também Ezequiel 34), uma multidão sem rumo, uma multidão negligenciada pelos pastores. E quando os pastores não cumprem o seu dever, surgem os ladrões, os bandidos e os lobos que seduzem e exploram o povo, oferecendo ilusões e vendendo vento, e conduzindo as multidões para caminhos de morte.

Nós podemos ser também essa multidão. Em momentos de mal-estar e vazio interior, de cansaço e busca de sentido, de desorientação e confusão, se não estivermos atentos, todos podemos ser encantados pelos flautistas que proliferam em nossa sociedade. Que o Senhor nos momentos de crise faça ressoar em nossos corações o seu convite: “Vinde a mim, todos os que estais cansados e oprimidos, e eu vos darei descanso.” (Mateus 11,28).

Proposta de exercício semanal: elaborar um plano de descanso (físico, psíquico e espiritual) para este período de “férias”.

P. Manuel João Pereira Correia mccj
Verona, 18 de julho de 2024

P. Manuel João Pereira Correia mccj
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domingo, 14 de julho de 2024

VENCER O CEPTICISMO DEMOCRÁTICO Frei Bento Domingues, O.P. 14 Julho 2024

 

VENCER O CEPTICISMO DEMOCRÁTICO

Frei Bento Domingues, O.P.

14 Julho 2024

 

1. Realizou-se a 50ª Semana Social dos Católicos de Itália, em Trieste, com o tema No coração da democracia. Participar entre história e futuro. O Papa esteve presente no encerramento dessa Semana, dia 7, de forma muito activa, a começar por uma antologia dos seus discursos e mensagens com o mesmo tema. Além da apresentação do livro, temos de ter em conta o discurso que proferiu e a importante homilia da Missa.

A presença de Francisco, no nosso mundo, não é de conformismo, de cedência ao que está a acontecer, mas de mudança. Ao procurar redescobrir o que é a democracia, aponta os perigos que, hoje, está a correr e o contributo original que o Cristianismo pode e deve oferecer ao mundo contemporâneo. Ao dar sentido à nossa história, alimenta a esperança sem a qual não há futuro.

O Papa lembrou que democracia é um termo que se originou na Grécia antiga para indicar o poder exercido pelo povo por meio dos seus representantes. Uma forma de governo que, embora se tenha difundido globalmente, nas últimas décadas, parece estar a sofrer as consequências de uma doença perigosa, o cepticismo democrático.

A dificuldade das democracias em assumir a complexidade do tempo presente cede, muitas vezes, ao fascínio do populismo. A democracia tem em si um grande e indubitável valor: o de trabalhar e viver juntos em liberdade. O facto de o exercício do governo se realizar no contexto de uma comunidade que se confronta, livre e secularmente na arte da procura do bem comum, é um nome diferente para o que chamamos política.

No discurso, aos 1 200 participantes da Semana, afirmou: A própria palavra democracia não coincide simplesmente com o voto do povo, mas exige que se criem as condições para que todos se possam expressar e participar. E a participação não se pode improvisar: aprende-se desde criança, adolescente e deve ser treinada, também no sentido crítico, perante as tentações ideológicas e populistas. Nesta perspectiva, o Cristianismo pode contribuir, promovendo um diálogo fecundo com a comunidade civil e com as instituições políticas. Só assim será possível libertar-se das escórias da ideologia, reflectindo de modo comunitário, especialmente sobre os temas relacionados com a vida humana e com a dignidade da pessoa.

O caminho democrático exige debater juntos e saber que, só juntos, esses problemas podem encontrar solução.

2. Em última análise, é na palavra participar que encontramos o sentido autêntico da democracia e entramos no coração de um sistema democrático. Num regime de ditadura ou dirigista ninguém pode participar, todos assistem ou sofrem passivamente.

Uma verdadeira democracia não exclui ninguém nem nenhum país. Nós sabemos o que foram e são os regimes de ditadura. Sem democracia não há paz.

É esta forma de governo que ajuda as pessoas a serem cada vez mais livres, fraternas e criativas. Os totalitarismos são formas de dominação. Na vida social, o importante é perguntar em que posso eu ajudar, vencendo a tentação de dominar.

O Papa deu como exemplos de actuação democrática Giuseppe Toniolo (1845-1918), inspirador e fundador das próprias Semanas Sociais, e o famoso político católico italiano, Giorgio La Pira (1904-1977) – um grande amigo – que defendia para o laicado a capacidade de organizar a esperança porque, sem ela, pode administrar-se o presente, mas não se constrói o futuro.

Já evoquei, nesta coluna, os leigos e padres portugueses que muito sofreram e lutaram pelo derrube da ditadura que nos oprimiu até ao 25 de Abril[1]. E agora, entre nós, também existem organizações políticas cansadas da democracia.

Os que lutaram e lutam contra as ditaduras têm de vencer a indiferença – cancro da democracia – e a passividade de muitos perante os rumos dos movimentos sociais.

Em Trieste, o Papa lembrou que são muitas as questões sobre as quais, democraticamente, somos chamados a interagir. Pensemos num acolhimento inteligente e criativo, que coopera e integra as pessoas migrantes; pensemos no inverno demográfico que afeta, agora, de forma generalizada, toda a Itália e não só; pensemos na escolha de políticas autênticas para a paz, que coloquem em primeiro lugar a arte da negociação e não o recurso ao rearmamento. Em resumo, aquele cuidado pelos outros, que Jesus nos indica continuamente no Evangelho, como a atitude autêntica de ser pessoa, de sermos humanos.

3. Poderíamos dizer que, tanto no livro que apresentou, no discurso que fez e na Eucaristia que celebrou, foi o tema da esperança que esteve sempre presente. Foi mesmo para a despertar que Deus suscitou e suscita profetas entre o povo.

Na celebração da Eucaristia, questionou muitas das nossas representações da fé cristã e lembrou que são os profetas que não deixam adormecer a esperança. São a voz de Deus, muitas vezes rejeitados. O próprio Jesus teve a mesma dolorosa experiência dos profetas, tornando-se escândalo para os seus conterrâneos.

A palavra escândalo não se refere a algo obsceno ou indecente como a usamos hoje. Na homilia do Papa, escândalo significa a própria humanidade de Deus manifestada em Jesus de Nazaré.

Os seus conterrâneos não conseguiam entender como do filho de José, o carpinteiro – uma pessoa comum –, poderia surgir tanta sabedoria e até mesmo a capacidade de realizar prodígios. Sob o ponto de vista teológico, o escândalo é a própria humanidade de Jesus, Deus humanado. O obstáculo que impede de reconhecer a presença de Deus em Jesus é o facto de Ele ser humano. Este escândalo é uma fé fundada num Deus que faz parte da humanidade, que cuida dela, que se comove com as nossas feridas, que toma sobre si o nosso cansaço, que se parte como pão para nós.

Hoje, precisamos exatamente desse escândalo da fé. Não de uma religiosidade fechada em si mesma, que ergue o olhar para o céu, sem se preocupar com o que acontece na terra, e celebra liturgias no templo, esquecendo-se da poeira que corre pelas nossas estradas.

Precisamos do escândalo da fé, de uma fé enraizada no Deus que se fez humano e, portanto, de uma fé humana, de uma fé de carne, que entra na história, que acaricia a vida das pessoas, que cura os corações partidos, que se torna fermento de esperança e germe de um mundo novo.

Deus esconde-se nos cantos escuros da vida e das nossas cidades. A Sua presença revela-se, precisamente, nos rostos escavados pelo sofrimento e onde a degradação parece triunfar.

O infinito de Deus está escondido na miséria humana, o Senhor agita-se e torna-se presença amiga, precisamente, na carne ferida dos últimos, dos esquecidos e dos descartados. Ali, Deus se manifesta[2].

Precisamos de uma teologia, de uma espiritualidade, de uma forma de viver que liguem o céu e a terra.

 

 



[1] Novos e velhos rostos da Igreja, in Público 29.04.2024; Memória e presos políticos no 25 de Abril, ibidem 05.05.2024

[2] Cf. www.vatican.va 07.07.2024