sábado, 14 de setembro de 2024

O Homem: questão para si mesmo. 6. A tensão de um corpo-pessoa Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia 14 Setembro 2024

 O Homem: questão para si mesmo.

6. A tensão de um corpo-pessoa

Anselmo Borges

Padre e professor de Filosofia

14 Setembro 2024

Raramente alguém disse de modo tão realista o ser humano na sua tensão como Vergílio

Ferreira neste texto magnífico: “Um corpo e o que em obra superior ele produz. Como é

fascinante pensá-lo. Um novelo de tripas, de sebo, de matéria viscosa e repelente, um

incansável produtor de lixo. Uma podridão insofrida, impaciente de se manifestar, de rebentar o

que a trava, sustida a custo a toda a hora para a decência do convívio, um equilíbrio difícil em

dois pés precários, uma latrina ambulante, um saco de esterco. E simultaneamente, na

visibilidade disso, a harmonia de uma face, a sua possível beleza e sobretudo o prodígio de uma

palavra, uma ideia, um gesto, uma obra de arte. Construir o máximo da sublimidade sobre o

mais baixo e vil e asqueroso. Um homem. Dá vontade de chorar. De alegria, de ternura, de

compaixão. Dá vontade de enlouquecer.”

O Homem vive-se a si mesmo numa tensão insuperável.

Por um lado, o corpo é o seu peso, a sua limitação - parece que, se fôssemos espírito puro,

poderíamos, por exemplo, estar em todo o lado. Com o tempo, o corpo decai, envelhece e,

aparentemente, envilece-nos. Adoecemos e desmoronamo-nos. Depois, com a morte, o que

resta do corpo é lixo biológico e coisa que apodrece. Referindo-se ao nascimento, Santo

Agostinho, nada exaltado, tem estas palavras cruas: “Inter faeces et urinam nascimur”,

nascemos entre fezes e urina.

Encontrados destroços de navio francês que naufragou em 1856

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E, aqui, faço uma observação fundamental: ele usa a passiva para o

nascimento: nascimur (somos nascidos). Em português, usamos a activa: nascemos, nasci,

outras línguas usam a passiva: natus sum, soy nacido, suis né, bin geboren, am born, sono nato...

De facto, alguém se lembra do seu nascimento e decidiu nascer? Foi muito, muito lentamente

que fomos dando conta de nós até tomarmos consciência de nós como um “eu” - é isso:

afirmamo-nos, assentes numa passividade originária.

Por outro lado, será sempre misterioso um corpo que fala: produz sons que encarnam e

transmitem sentido. Um olhar é sempre a visita do in-finito. Um corpo humano canta, ora, sorri,

produz obras de arte, que param o tempo e visibilizam a transcendência. De um bloco de

mármore Miguel Ângelo arranca a Pietà; misturando tintas, Van Gogh põe à vista as Botas com

atacadores e Leonardo, a Última Ceia. Com instrumentos de sopro, de percussão e de cordas e

vozes, corpos executam música, a mais utópica das artes (E. Bloch), que nos leva lá para onde

nunca estivemos, mas aonde queremos sempre voltar de novo.

vozes, corpos executam música, a mais utópica das artes (E. Bloch), que nos leva lá para onde
nunca estivemos, mas aonde queremos sempre voltar de novo.

"Tenho
corpo, mas sou corpo. Eu sou um corpo que diz 'eu' e, portanto, vivo-me a mim mesmo por
dentro como corpo-sujeito, corpo-pessoa. (...) O Homem transcende o simplesmente biológico.
'Começou a ser Homem intentando criar beleza', escreveu Pedro Laín Entralgo. E vive do
gratuito: cria e contempla a beleza, é o ser 'criativamente possuído pelo fascinante esplendor do
inútil' (G. Steiner)." IMAGEM: Rawpixel.com

Um corpo humano desabrocha como alguém perante outro alguém. Quando dois corpos
humanos se abraçam são duas pessoas que dizem uma à outra quanto se querem bem. E mais
uma vez Vergílio Ferreira, exprimindo a vivência do corpo pessoal e interpessoal: “Mónica,
minha querida. Porque o teu corpo não é só o teu corpo. Não é isso, não é isso. É entrar em ti, e
a tua pessoa estar lá.”

E o corpo humano é um corpo livre, que não se entende como se fosse uma máquina, nem na
simples continuidade da explicação biológica. É um corpo capaz de dizer não ao que a biologia
pede - é um asceta da vida, não fica submerso nas suas necessidades. Então, exprime liberdade.
E a liberdade é o salto milagroso. Kant escreveu que é impossível compreender a produção de
um ser dotado de liberdade por uma operação física, sendo mesmo difícil, se não impossível
também, compreender como pode o próprio Deus criar seres livres.

Por isso, o materialismo mecânico ou biológico não dá conta do Homem. Mas quem defender

uma concepção dualista de Homem - um composto de alma e corpo, matéria e espírito - terá de

responder à pergunta daquela criança de uma estória ingénua: diante do cadáver da avó, o

miúdo perguntou à mãe o que é que estava a acontecer. A mãe foi-lhe explicando que a avó

tinha morrido e que a alma dela tinha ido para Deus e o corpo ia para a terra. Quando ela

própria morresse, também ia ser assim: a alma iria para Deus e o corpo para o cemitério.

E continuou, angustiada: “Sabes, meu filho, quando tu morreres, a tua alma vai ter com Deus e o

teu corpo fica no cemitério.” Aí, o miúdo observou, perplexo: “A minha alma vai ter com Deus e

o meu corpo vai para o cemitério. E eu?”

Há o corpo fisiológico, anatómico - quando vou ao médico, espero que perceba de anatomia.

Mas também há o corpo fora da anatomia - quando vou ao médico, espero que me trate como

pessoa e não como simples corpo, à maneira de máquina desarranjada que ele, como técnico

especializado, vai recompor. Tenho corpo, mas sou corpo. Eu sou um corpo que diz “eu” e,

portanto, vivo-me a mim mesmo por dentro como corpo-sujeito, corpo-pessoa. E também os

outros, todos os outros são corpo-pessoa, vivendo-se a si mesmos como sujeitos. O Homem

transcende o simplesmente biológico. “Começou a ser Homem intentando criar beleza”,

escreveu Pedro Laín Entralgo. E vive do gratuito: cria e contempla a beleza, é o ser

“criativamente possuído pelo fascinante esplendor do inútil” (G. Steiner). Para sobreviver, não

precisava de investigar na mecânica quântica... O que ganha no tempo dedicado aos mortos? No

entanto, o tempo que gastamos inutilmente - inutilmente? - com os mortos!...

Ser Homem é viver esta tensão, numa arte quase impossível. Porque permanentemente espreita

o perigo de coisificar o corpo ou de desprezá-lo, refugiando-se num idealismo angélico. Mas já

Pascal preveniu: “O Homem não é anjo, nem é besta, e, desgraçadamente, quem quer fazer de

anjo faz de besta.

quinta-feira, 12 de setembro de 2024

O TEMPO DAS TESTEMUNHAS - Pe. Manuel João , MC

 O TEMPO DAS TESTEMUNHAS

 

24o Domingo do Tempo Comum (B) 
Marcos 8,27-35: “Tu és o Messias”

O trecho do evangelho de hoje apresenta-nos a chamada confissão de Pedro em Cesareia de Filipe, episódio também narrado por São Mateus e São Lucas. O evangelho de São Marcos, escrito pensando sobretudo nos catecúmenos, tem como tema central a identidade de Jesus. Uma pergunta o percorre do início ao fim: “Quem é este homem?” (Mc 4,41). 

O título que São Marcos deu ao seu evangelho foi: “Início do evangelho de Jesus, Cristo, Filho de Deus” (1,1). Com o trecho de hoje, chegamos ao centro do itinerário que o seu evangelho nos propõe: “Tu és o Cristo!”. A confissão de fé na messianidade de Jesus é o primeiro grande marco e sinaliza a viragem para uma segunda etapa, a do reconhecimento da sua filiação divina, que ocorrerá junto à cruz: "Verdadeiramente, este homem era o Filho de Deus!” (15,39).

Tu és o Messias!”. Enquanto a multidão intui que Jesus é uma figura especial, mas o interpreta com categorias do passado (João Batista, Elias ou um dos profetas), Pedro vê em Jesus o Messias, aquele que Israel aguardava há séculos, anunciado pelos profetas. Uma figura, portanto, que vem "do futuro", como promessa de Deus, projetando-se no porvir como esperança de Israel.

A palavra hebraica Mashiah ou Messiah, traduzida como "Cristo" em grego, significa "Ungido". Eram ungidos (com óleo perfumado) os reis, profetas e sacerdotes no momento de sua eleição. Com o tempo, o Messias, o Cristo, o Ungido por excelência, tornou-se o libertador escatológico esperado pelo povo de Deus, por alguns considerado de estirpe sacerdotal, por outros de estirpe real.

Jesus era o Messias, o Cristo. Ele mesmo o reconhece durante o interrogatório diante do sinédrio: “És tu o Cristo, o Filho do Bendito? Jesus respondeu: Eu sou!” (Mc 14,60-61), provocando o escândalo do sumo sacerdote. Por que, então, Jesus impôs silêncio aos apóstolos, “ordenando-lhes severamente que não falassem dele a ninguém”? Porque esse título estava carregado de expectativas terrenas e ambíguas. Israel esperava um Messias terreno e glorioso, enquanto Jesus seria um Messias derrotado e humilhado. Só depois de sua paixão e morte, quando ficou claro que tipo de messianismo era o seu - o do "Servo de Javé" da primeira leitura - o título Cristo tornou-se seu segundo nome. Encontramo-lo mais de 500 vezes no Novo Testamento, quase sempre como um nome composto: Jesus Cristo, ou Nosso Senhor Jesus Cristo.

Depois, começou a ensinar-lhes que o Filho do homem tinha de sofrer muito... E Jesus dizia-lhes claramente estas coisas”. “Começou”: trata-se de um novo começo. Cada etapa alcançada torna-se um novo ponto de partida, pois Deus está sempre mais além. A nova etapa é a da cruz, palavra que aparece agora em São Marcos pela primeira vez. E aqui Pedro, orgulhoso de ter vencido a etapa anterior, tropeça imediatamente, aliás, torna-se ele mesmo pedra de tropeço (Mt 16,23).

A este novo começo corresponde uma nova vocação ou chamada, dirigida tanto aos discípulos quanto à multidão: “Chamando a multidão com os seus discípulos, disse-lhes: Se alguém quiser seguir-me, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me”. Esta nova etapa não é para simples simpatizantes ou amadores. O caminho torna-se árduo. Trata-se de carregar a cruz (cada dia, diz São Lucas), ou seja, assumir a própria realidade, sem sonhar com outra, e colocar-se na sequela de Jesus. A aposta é grande: ganhar ou perder a própria vida, a verdadeira!

Pontos de reflexão 

Mas vós, quem dizeis que eu sou?”. Esta pergunta interpela os discípulos de Jesus de todos os tempos e exige de cada um de nós uma resposta pessoal, consciente e existencial. Conhecemos bem a opinião da gente. Para muitos, Jesus de Nazaré é uma figura especial da história, um sonhador ou um revolucionário. Para a maioria, no entanto, é uma figura do passado que já teve o seu tempo. “Mas para vós, para ti, quem sou eu?”. No texto a pergunta é precedida pela conjunção adversativa “mas”, que nos coloca em contraposição à opinião comum. O discípulo de Jesus distingue-se da multidão anônima por uma confissão de fé em Jesus de Nazaré como o Messias ungido e enviado por Deus como Libertador da humanidade (Lucas 4,18-21).

Para o cristão, Cristo é a chave da história e o sentido da vida. “Eu sou o Alfa e o Ômega, Aquele que é, que era e que vem, o Todo-Poderoso”, “O Primeiro e o Último, e o Vivente”, “O Princípio e o Fim” (Apocalipse 1,8; 1,17-18; 21,6; 22,13). Sem o seu "Eu Sou", eu não sou. Como rezava Hilário de Poitiers (+367): “Antes de te conhecer, eu não existia, era infeliz, o sentido da vida me era desconhecido e, na minha ignorância, meu ser profundo me escapava. Graças à tua misericórdia, comecei a existir”.

Confessar que Jesus é o Cristo implica estar pronto para sofrer o mesmo destino que ele. O nosso tempo será cada vez mais um tempo de mártires, de testemunhas. Não será um martírio glorioso e heroico, mas humilde e oculto. O cristão é aquele que acolhe e guarda "o testemunho de Jesus" (Apocalipse 1,2.9; 12,17; 19,10; 20,4), a "Testemunha fiel" (1,5; 3,14), para comunicar à humanidade: “Deus amou tanto o mundo que deu o seu único Filho” (João 3,16). 

P. Manuel João Pereira Correia, mccj

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segunda-feira, 9 de setembro de 2024

JESUS CURA A COMUNICAÇÃO - Pe. Manuel João, MC

 JESUS CURA A COMUNICAÇÃO 

 

23º Domingo do Tempo Comum (B)
Marcos 7,31-37: “Faz que os surdos oiçam e que os mudos falem”

JESUS CURA A COMUNICAÇÃO 

O episódio da cura do surdo-mudo narrado no evangelho de hoje encontra-se apenas em São Marcos. Está situado fora dos limites da Palestina, na Decápole, em território pagão. A anotação geográfica é um pouco estranha porque Jesus, para descer até ao lago de Genesaré, primeiro desloca-se para o norte (de Tiro em direção a Sidônia, no atual Líbano) para depois descer pela margem oriental do Jordão, em território da Decápole (atual Jordânia). Jesus é um “cruzador de fronteiras” e muitas vezes não segue o caminho reto, pois quer alcançar todos em nossos caminhos tortuosos e levar o evangelho aos vastos territórios pagãos da nossa vida. 

O texto diz que o surdo-mudo foi "levado" a Jesus por outras pessoas que lhe “suplicaram que impusesse as mãos sobre ele”. Encontramos outros casos nos evangelhos em que a iniciativa de pedir a cura de alguém é tomada por outros. Isso ocorre especialmente quando o doente é incapaz de ir a Jesus (veja o paralítico de Cafarnaum: Mc 2,1-12; e o cego de Betsaida: Mc 8,22-26). Mas todos nós precisamos ser "levados" pelos irmãos e pela comunidade. Jesus então “afastou-se com ele da multidão”, não só para evitar publicidade, mas para favorecer um encontro pessoal com aquele homem. 

A modalidade de cura é bastante incomum: Jesus “meteu-lhe os dedos nos ouvidos e com saliva tocou-lhe a língua. Depois, erguendo os olhos ao Céu, suspirou e disse-lhe: «Effathá», que quer dizer «Abre-te»” Normalmente, basta um gesto ou uma palavra de Jesus para operar a cura. Aqui, o evangelista talvez queira destacar a nossa resistência, de um lado, e o envolvimento de Jesus na nossa situação, do outro. Este relato lembra-nos a cura do cego de Betsaida, em território da Galileia, que ocorrerá mais tarde (Marcos 8,22-26). Pagãos ou crentes, todos precisamos ser curados em nossos sentidos espirituais para ter um relacionamento novo com Deus e com os irmãos. Assim se realiza o que Isaías havia profetizado na primeira leitura: “Então se abrirão os olhos dos cegos e se desimpedirão os ouvidos dos surdos. Então o coxo saltará como um veado e a língua do mudo cantará de alegria”. 

Pontos de reflexão 

1. Tudo começa pela escuta. Na Sagrada Escritura, o sentido privilegiado no relacionamento com Deus é a audição. Encontramos 1.159 vezes o verbo ouvir no Primeiro Testamento, muitas vezes tendo Deus como sujeito (biblista F. Armellini). É por isso que o primeiro mandamento é Shemà Israel, Escuta Israel (Dt 6,4). Ser surdo era uma patologia grave, como um castigo (cfr. João 9,2) pois impossibilitava ouvir a Torá. É por isso que os profetas anunciavam para os tempos messiânicos: “Naquele dia, os surdos ouvirão as palavras do livro” (Isaías 29,18). Na realidade, o caminho daquele que acredita é uma progressiva abertura e sensibilidade para a escuta: “Cada manhã Ele desperta o meu ouvido para que eu ouça como um discípulo. O Senhor Deus abriu meu ouvido e eu não resisti” (Isaías 50,4-5). 

Vivemos numa sociedade acusticamente poluída, com o risco de uma "otosclerose", o endurecimento do nosso ouvido, por habituação ou defesa. Esta "surdez física" pode repercutir-se na esfera espiritual. A voz de Deus torna-se uma entre muitas e, inclusive, ofuscada por outras vozes amplificadas pelos mídia. O crente tem extrema necessidade de ser continuamente curado da surdez do coração. 

2. Da escuta nasce a palavra. Da escuta de Deus e do irmão nasce a palavra verdadeira, a comunicação autêntica. A cura da língua é consequente à do ouvido: “Abriram-se os ouvidos do homem, soltou-se-lhe a prisão da língua e começou a falar corretamente”.

Num mundo hiperconectado, cresce a Babel da incomunicabilidade, que se manifesta na linguagem falsa e manipuladora, no bullying e na opressão. A palavra é banalizada, mortificada e tornada insignificante, gerando bloqueio comunicativo, solidão e mutismo. Esta situação tem repercussões na esfera familiar e nas relações interpessoais, bem como na sociedade e na Igreja.

Deveria preocupar-nos especialmente a afonia da Igreja e do cristão. Um cristão afônico dificilmente pode comunicar a boa nova do evangelho. A afonía da Igreja corrói a dimensão profética da fé, com o risco de torná-la cúmplice da injustiça que se espalha pelo mundo. 

O que fazer para “falar corretamente” como o homem do evangelho? Como recuperar a voz profética “que grita no deserto”, para fazer ressoar a Palavra nos numerosos desertos do mundo de hoje? 

Talvez nos falte aquela meia hora de silêncio de que fala o Apocalipse: “Quando o Cordeiro abriu o sétimo selo, fez-se silêncio no céu por cerca de meia hora” (8,1). Talvez na Igreja estejamos muito habituados a subir à cátedra e menos a calar e fazer silêncio. Sem silêncio: não há discernimento para captar a "gravidade" do momento que vivemos; não há sensibilidade para se abrir ao assombro da intervenção divina; não há palavra iluminada para ler o presente! Como o profeta Elias, precisamos frequentar o Horeb da nossa fé, a cruz de Cristo, para captar a nova modalidade da presença de Deus na "voz do silêncio" (1Rs 19,12). 

Talvez nos falte a higiene matinal da alma. Todos os dias lavamos cuidadosamente os ouvidos e a boca, mas muitas vezes negligenciamos a lavagem dos ouvidos e da boca do coração. Seria necessário lembrar, todas as manhãs, o evento do nosso batismo e, mergulhando as nossas mãos naquelas águas, repetir interiormente, em oração, o Efatá batismal: “O Senhor Jesus, que fez os surdos ouvirem e os mudos falarem, me conceda hoje a graça de escutar a sua palavra e de professar a minha fé, para louvor e glória de Deus Pai!” 

P. Manuel João Pereira Correia, mccj

P. Manuel João Pereira Correia mccj
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segunda-feira, 2 de setembro de 2024

O Homem: questão para si mesmo. 4. Somos livres? Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia 31 Agosto 2024

 O Homem: questão para si mesmo.

4. Somos livres?

Anselmo Borges

Padre e professor de Filosofia

31 Agosto 2024

Esta é a pergunta decisiva. De facto, se não somos livres, o que se chama dignidade humana

pode ser uma convenção, mas não tem fundamento real.

Mas quem nunca foi assaltado pela pergunta: a minha vida teria podido ser diferente? Para

sabê-lo cientificamente, seria preciso o que não é de modo nenhum possível: repetir a vida

exactamente nas mesmas circunstâncias. Só assim se verificaria se as “escolhas” se repetiam nos

mesmos termos ou não.

Não há dúvida de que a liberdade humana é condicionada. Mas ela existe ou é uma ilusão? Não

pretendem agora neurocientistas dizer que, mediante dados da tomografia de emissão de

positrões e da ressonância magnética nuclear funcional, se mostra que afinal as nossas decisões

são dirigidas por processos neuronais inconscientes?

De qualquer modo, já em 2004, destacados neurocientistas também tornaram público

um Manifesto sobre o presente e o futuro da investigação do cérebro - cito Hans Küng, no

seu Der Anfang aller Dinge (O princípio de todas as coisas) -, revelando-se prudentes no que toca

às “grandes perguntas”: “Como surgem a consciência e a vivência do eu? Como se entrelaçam a

acção racional e a acção emocional? Que valor se deve conceder à ideia de ‘livre arbítrio’?

Colocar já hoje as grandes perguntas das neurociências é legítimo, mas pensar que terão

resposta nos próximos dez anos é muito pouco realista.” É preciso continuar as investigações, no

sentido de perceber o nexo entre a mente e o cérebro. “Mas nenhum progresso terminará num

triunfo do reducionismo neuronal. Mesmo que alguma vez chegássemos a explicar a totalidade

dos processos neuronais subjacentes à simpatia que o ser humano pode sentir pelos seus

congéneres, ao seu enamoramento e à sua responsabilidade moral, a autonomia da ‘perspectiva

interna’ permaneceria intacta. Pois também uma fuga de Bach não perde nada do seu fascínio,

quando se compreende com exactidão como está construída.”

A liberdade não é desvinculável da experiência subjectiva, da “perspectiva interna”. Essa

experiência é uma experiência transcendental, no sentido de que se afirma até na sua negação.

De facto, se tudo se movesse no quadro do determinismo total, como surgiria o debate sobre a

liberdade? Ele seria possível?

Essa experiência coloca-se concretamente no campo da moral e da responsabilidade. Neste

contexto, há um célebre exercício mental de Kant na Crítica da Razão Prática, que já aqui citei e

que é elucidativo e obriga a pensar.

Suponhamos que alguém, sob pena de morte imediata, se vê confrontado com a ordem de
levantar um falso testemunho contra uma pessoa que sabe ser inocente. Nessas circunstâncias e
por muito grande que seja o seu amor à vida, pensará que é possível resistir. “Talvez não se
atreva a assegurar que assim faria, no caso de isso realmente acontecer; mas não terá outro
remédio senão aceitar sem hesitações que tem essa possibilidade.” Existem as duas
possibilidades: resistir ou não. “Julga, portanto, que é capaz de fazer algo, pois é consciente de
que deve moralmente fazê-lo e, desse modo, descobre em si a liberdade que, sem a lei moral,
lhe teria passado despercebida.”
O que confunde frequentemente o debate é a falta de esclarecimento quanto ao que é
realmente a liberdade. Ela é a não submissão à necessidade coactiva, externa e interna, mas não
pode, por outro lado, ser confundida com a arbitrariedade e a pura espontaneidade - não
implica a espontaneidade a necessidade?
A liberdade radica na experiência originária do ser humano como dom para si mesmo.
Paradoxalmente, é na abertura a tudo, portanto, no horizonte da totalidade do ser, que ele vem
a si mesmo como eu único e senhor de si. Então, agir livremente é a capacidade de erguer-se
acima dos próprios interesses, para pôr-se no lugar do outro e agir racionalmente. Faço a
experiência de que sou dado a mim próprio como senhor de mim; portanto, sou dono de mim
(já ouvi uma criança de 6 anos dizer à mãe: “Tu não és a minha dona”) e, portanto, dono dos
meus actos e, consequentemente responsável, respondo por eles e por mim.
É preciso distinguir entre causas e razões. Quando se age sob uma causalidade constringente,
não há liberdade. Ser livre é propor-se ideais, deliberar e agir segundo razões e argumentos,
impondo limites aos impulsos, inclinações e desejos, o que mostra que o Homem pode ser
senhor dos seus actos e, assim, responsável, pode e deve responder por eles.
Só existe liberdade, se há alguém capaz de autodeterminação. A determinação por um “eu”,
segundo um juízo de valor, é que faz com que uma acção seja livre e não puro acaso ou
enquadrada no determinismo das leis naturais. Como diz P. Bieri - ver de novo citação em O
princípio de todas as coisas -, “é inútil procurar na textura material de um quadro o
representado ou a sua beleza; é igualmente inútil procurar na mecânica neurobiológica do
cérebro a liberdade ou a sua ausência. Ali, não há nem liberdade, nem falta de liberdade. Do
ponto de vista lógico, o cérebro não é o lugar adequado para esta ideia. A vontade é livre, se se
submete ao nosso juízo sobre o que é adequado querer em cada momento. A vontade carece de
liberdade, quando juízo e vontade seguem caminhos divergentes.”
Quando se pensa em profundidade e verdade, ser Homem é ser livre e, consequentemente,
responsável: responder por si e pelos outros. O que quero fazer de mim? Para onde queremos ir
verdadeiramente?
Escreve sem aplicação do novo Acordo Ortográfico