quinta-feira, 28 de março de 2019

ASSEMBLEIA GERAL DA UASP - LEIRIA


No passado dia 23 do corrente mês de Março realizou-se em Leiria no convento dos franciscanos a assembleia geral da UAASP para aprovação das contas relativas ao ano de 2018. Quase todas a associadas estiveram presentes. A nossa associação, secretário da mesa da assembleia geral, esteve representada por António Pinheiro. Para mais informações ler:
Para avaliar, discutir e aprovar as ações que a UASP (União das Associações dos Antigos Alunos dos Seminários Portugueses) realizou durante o seu exercício de 2018, a sua Direção convocou as Associadas para que, no dia 23 do corrente mês de Março, às dez horas, na cidade de Leiria, no Convento de S. Francisco da Portela, o fizessem em tranquilidade sob os olhares de umas paredes que tanta Paz irradiam e tanto ouviram ensinar a fazer o Bem, o lema de vida de todas as comunidades que tentam imitar S. Francisco (continua). VER MAIS
 
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domingo, 24 de março de 2019

DEUS NÃO SABIA O SEU NOME? Frei Bento Domingues, O.P.


1. Se Deus fala, é porque tem boca e diz coisas com sentido. Se tem boca, tem de ter um rosto. Se tem um rosto, tem uma cabeça. Quem já viu essa boca a pronunciar palavras? Numa reunião de catequese, a catequista viu-se surpreendida com essa pergunta de uma criança, já não tão criança. Ela própria ficou tão embaraçada que lhe disse: ó menina, isso não é pergunta que se faça, é uma maneira de dizer. A criança insistiu: mas Deus fala ou não fala?

No ambiente litúrgico e catequético, e até na linguagem corrente, os líderes das comunidades cristãs não se dão conta, pelo hábito de falar sem se explicarem, dando por sabido o que nem eles sabem, de que estão a preparar pessoas para confessar um credo e praticar rituais, mas sem a mínima inteligência do que dizem e fazem. Com o tempo, estão a preparar descrentes.

Já na Idade Média, Tomás de Aquino afirmava que, quando se pretende levar alguém à inteligência da raiz da verdade que confessa, tem muito que investigar para responder à pergunta: como é que é verdade aquilo que confessas ser verdade? Não basta recorrer a argumentos de autoridade. Nesse caso, o ouvinte fica sem ciência nenhuma e vai-se embora de cabeça vazia[1]. Não é boa recomendação a fé ignorante.

No âmbito religioso, estamos tão habituados a um certo uso da linguagem que julgamos estar sempre perante comunidades que merecem o elogio de S. Paulo: «tendo recebido a palavra de Deus, que nós vos anunciámos, vós a acolhestes não como palavra de seres humanos, mas como ela é verdadeiramente: palavra de Deus, a qual também actua em vós que acreditais»[2].

A criança a que nos referimos diria ao apóstolo: e como é que sabes que é palavra de Deus, se todas essas palavras são humanas, criadas por seres humanos?

Responder que, na Bíblia, o uso de gestos simbólicos, de parábolas e de metáforas, é a forma de dizer o indizível não basta, pois, se é indizível porque é andam sempre a esforçar-se por dizer? Mas cuidado, esse é o belo ofício dos poetas.

Estamos perante um tema imenso, mas não nos podemos esquecer que Jesus também não confiou no amontoado de explicações dos sábios e entendidos que deixavam nas trevas os que mais precisavam de uma nova luz. Como filho de Deus, agradece o advento de uma nova época que varre séculos e séculos de ignorância, como já disse numa destas crónicas[3]. O que importa é libertar a catequese, as homilias, a teologia de rotinas que impedem a alegria do Evangelho para os dias de hoje, isto é, nas mudanças culturais.  

2. A liturgia de hoje oferece um dos textos bíblicos que mais tem dado que falar em todos os tempos[4]. O cenário é de uma experiência do sagrado, do intocável, do tremendo e fascinante[5].

Moisés quer aproximar-se de um espectáculo que o atrai, mas há uma voz que lhe diz: não te aproximes. Tira as sandálias dos pés porque o lugar que pisas é terra sagrada. E acrescentou, eu sou o Deus dos teus pais, Deus de Abraão, Deus de Isaac e Deus de Jacob. Com o receio de olhar para Deus, Moisés cobriu o rosto.

Mas Deus olhou para o povo oprimido e manifestou a Moisés as suas intenções libertadoras. No final, Moisés quer saber mais do que lhe está a ser comunicado e atreve-se: Eis que eu vou ter com os filhos de Israel e digo-lhes: o Deus dos vossos pais enviou-me a vós. Eles dir-me-ão: qual é o nome dele? Que lhes direi eu?

Resposta de Deus: Eu sou aquele que sou, yhwh (Iavé). Assim dirás aos filhos de Israel: Eu sou enviou-me a vós!

De facto, as frases, Eu sou aquele que sou (‘ehyeh ‘axer ‘ehyeh) e Eu sou (‘ehyeh) são explicações etimológicas do tetragrama, yhwh. O verbo ‘ehyeh, ser/estar, tanto pode ser dito no presente como no futuro (eu sou-serei/eu estou-estarei).

Usado mais de 6800 vezes no AT, YHWH (Iavé), o chamado tetragrama (literalmente, quatro letras), é o mais frequente nome próprio do Deus Bíblico e está documentado em várias inscrições extra-bíblicas.

Como escreveu o grande exegeta, Francolino J. Gonçalves[6], judeus e cristãos crêem que as suas respectivas sagradas Escrituras são palavra de Deus. Os próprios muçulmanos reconhecem a origem divina das ditas Escrituras. Para o leitor que não usa o projector da fé, porque não o tem ou não se serve dele, Deus não é o único locutor na Bíblia. No entanto, é o seu protagonista. Deus desempenha na Bíblia um papel incomparavelmente mais importante do que qualquer uma outra das numerosíssimas personagens humanas. É sujeito de muitos discursos e objecto ou destinatário de muitos outros. É um dos narradores e, com muito mais frequência, objecto das narrativas.

Se, de facto, Deus fala na Bíblia de uma ponta a outra, só pode fazê-lo pela boca das pessoas humanas que nela intervêm, falando todas elas, explícita ou implicitamente, em seu nome. Para os leitores crentes, há uma sinergia entre Deus e os locutores humanos. A Bíblia é ao mesmo tempo palavra divina e palavra humana ou, melhor dito, palavra divina em palavras humanas. Nela está em acção o princípio da encarnação, que culmina no Verbo de Deus feito homem. Para os crentes, a Bíblia não é só palavra de Deus, mas também palavra sobre Deus. Directa ou indirectamente, ela fala de Deus de uma ponta a outra. Em geral, não fala de Deus por si mesmo, mas em relação com a criação e/ou com o seu povo.

3. Quando se diz, como no título desta crónica, Deus não sabia o seu nome, não é fazer dele um ignorante. Em certas culturas, conhecer o nome é tomar posse de uma pessoa, de um animal ou de uma coisa. Tive um professor de exegese que era alérgico à metafísica elaborada a partir da Bíblia. Não gostava nada de ouvir falar de metafísica sagrada do Êxodo, incluída na expressão, Eu sou.

A resposta que Moisés recebeu é uma forma de afirmação da transcendência divina. Deus não cabe em conceitos, em representações que, facilmente, resvalam para a idolatria e, por seu lado, a linguagem simbólica não diz, sugere. O célebre Mestre Eckhart rezava: Deus livra-me de Deus, de representações que pretendem substituí-lo. Outros místicos falam de Deus como nuvem luminosa, a luz misteriosa do mundo.

O Deus da Bíblia não é o Deus do silêncio nem o Deus das definições, mas precisamos de muito silêncio para O escutar nas suas mil vozes.



24. 03. 2019



[1] Quodlibetum Quartum, q.9, a. 3
[2] 1Ts 2, 13.
[3] Lc 10, 17-24
[4] Ex 3, 1-15
[5] Cf. Rudolf Otto, O Sagrado, Edições 70, 1992
[6] Iavé, Deus de Justiça e de Bênção, ISTA 22 (2009), 107-152. Este longo texto esteve sempre presente nesta crónica.

segunda-feira, 18 de março de 2019

Tempo de curar e renovar-MRFernandes, DM

1. É frágil a complexidade humana
perante o erro, mas é também capaz
de se levantar e corrigir as situações
que a ele conduzem. A Igreja
Católica está a atravessar uma grave
crise de imagem e credibilidade
na opinião pública por causa dos escândalos
de pedofilia praticados, em vários países,
por alguns membros do clero. O Papa Francisco
convocou os representantes dos bispos e de
ordens religiosas de todo o mundo para reflectir
e tomar medidas de correcção e prevenção
em relação ao repugnante flagelo da pedofilia
na Igreja. Espera-se que essas medidas não se
limitem apenas a curar e prevenir, mas tenham
também o alcance de renovar. E nesse verbo renovar
está também a necessidade de olhar para
além do estado actual de obrigatoriedade do celibato
do clero. Não me refiro aqui ao aspecto
subjectivo e pessoal do celibato enquanto decisão
carregada de investimento afectivo e religioso,
que faz a diferença psicológica, mas à
realidade biopsíquica que implica privação da
sexualidade. Porque, embora a pedofilia seja
uma tendência patológica que não acontece
apenas em contexto de celibato obrigatório (o
que faz com que, nesses casos, se não possa falar
de relação causa/efeito), estudos demonstram
que situações semelhantes podem potenciá-la
como forma de compensação (1).
Outro facto recente, que a comunicação social
tem divulgado muito, relacionado também
com o celibato obrigatório do clero, foi a
publicação do livro “No armário do Vaticano”,
por altura dessa reunião no Vaticano: é uma
denúncia de alegadas práticas de homossexualidade
por clérigos do Vaticano. Livro que logo
foi traduzido para várias línguas. Embora
se compreenda que falar destes temas ainda
seja psicanaliticamente melindroso para algumas
pessoas, eles devem ser tratados com
rigor científico e prático. E tanto mais quanto
é certo que o celibato obrigatório do clero,
como escreve o teólogo Hans Kung, embora
seja um dos pilares funcionais da organização
da Igreja, não tem nada a ver com questões
de Fé: é apenas uma questão de tradição
disciplinar na prática da Igreja que pode ser
abolida por um simples decreto do Papa, se
assim o entender.
2. Por outro lado, é difícil não associar estes
factos ao longo historial de polémicas e lutas
da repetida imposição do celibato ao clero,
tanto em concílios regionais, como o de
Elvira, em Granada, pelo ano 300, com o conhecido
cânone 33, que talvez estivesse mais
focado em evitar casamentos de idolatria do
que em impor o celibato como tal; os concílios
de Toledo III, no ano 589 e IX em 655;
o I concílio Germânico, em 742; o concílio I
de Sevilha (em 590); o II concílio de Braga,
em 572; a acção repressiva do Papa Gregório
VII; a carta do Papa Gregório IX no tempo de
D. Afonso Henriques a recomendar à Igreja
de Lisboa que “qualquer mulher encontrada a
viver com um clérigo fosse presa…”)… E também
concílios gerais da Igreja, como o II de Latrão
(em 1139) e o de Trento, em 1564... A diferença
substancial do concílio de Trento em relação
aos outros concílios foi que, enquanto estes
apenas impunham penas (e algumas muito severas
e desumanas), ele foi mais longe: para além
das penas, criou também uma escola de formação
para os candidatos a clérigos, os seminários,
que visavam a instrução e a formação da
personalidade, desde pequenos. Sinal dos tempos
é que, desde há várias décadas para cá, os
seminários (e conventos) foram ficando desertos
e fechando... Quer isto dizer que os caminhos
que eles simbolizavam já não passam unicamente
por esses modelos de vida? Cada tempo
tem a sua cultura, as suas realidades simbólicas,
os seus caminhos. Assim, por exemplo,
porque não admitir, para já, homens casados
com probidade reconhecida para desempenharem
essas funções? Porque não apostar a
sério na formação das comunidades de base,
mas não com uma teologia clericalizada?
3. Foi anunciado pelo Vaticano que era preciso
afastar os culpados e prevenir mais abusos
de pedofilia na Igreja. Dentro do quadro
actual, não havia outra solução. Mas, será que,
nada se alterando, essa estratégia vai resolver as
seculares polémicas do celibato obrigatório? A
lição da História e os actuais ensinamentos das
Ciências Humanas deixam-nos dúvidas, tanto
mais que a consciência social de hoje a respeito
da corporalidade e da sexualidade e o saber
actual das Ciências Humanas estão nos antípodas
das ideias da Gnose e do Monaquismo
de outros tempos… E mesmo que não se preveja
a probabilidade de, por decreto do Papa,
o celibato obrigatório ser abolido, há caminhos
de erosão das instituições que o adop tam que
vão levar a essa mudança. O que não quer dizer
que o celibato deixe de continuar a existir
como opção pessoal. A Igreja não deve ter receio
de se inovar em questões secundárias como
esta, sob pena de se autoexcluir da confiança
dos Homens; pelo contrário, deve assumir
uma nova antropologia cristã da sexualidade
humana, realçando a transcendência da sua
beleza e do seu sentido na construção da relação
humana. A Humanidade espera ansiosamente
esse passo; se o não fizer, outros o farão,
com riscos de aproveitamento enviesado.
Para além disso, há condenações de hoje, vidas
perdidas sem glória para ninguém, que a
História julgará como vítimas de falta de visão
de futuro e de não ter procurado entender os
meandros da psicologia humana nestes constrangimentos,
que podem levar a erros deploráveis.
Não se devem esquecer as sábias palavras
do poeta Bertolt Brecht: “toda a gente está
pronta para condenar as cheias do rio (os culpados
de hoje), mas poucos olham para as margens
que o comprimem” (a opressão da sua humanidade,
em nome de nada).
(1) J. de Ajuriaguerra, Psychiatrie de L’Enfant, 2.ª edição,
1974, Paris 6).
(Nota: o autor não escreve de acordo com o chamado
Acordo Ortográfico).

quinta-feira, 14 de março de 2019

Etiópia: A missão de um comboniano entre a história e a lenda

O padre espanhol Juan González Núñez, escritor e antropólogo, de 75 anos, permanece ao lado do povo que lhe foi confiado há cerca de quarenta anos e que hoje chora as vítimas do desastre aéreo
Quando foi ordenado em Valência em 1968, o padre Juan González Núñez sonhava em salvar as almas na África, mas teve que esperar sete anos, porque a congregação comboniana o destinou à formação dos jovens seminaristas, "falando de uma missão que só tinha visto com a imaginação". Depois foi mandado para a Etiópia e desde então nunca abandonou o país. Hoje chora junto com população as vítimas do acidente aéreo de domingo: 157 pessoas morreram no colapso do Boeing da Ethiopian Airlines, entre as quais oito italianos, alguns missionários como ele ou rapazes muito jovens que desenvolviam com dedicação um trabalho de voluntariado…
( Acho que as nossas vidas se cruzaram em MONCADA em 1965…)

segunda-feira, 11 de março de 2019

QUE FAREMOS DESTA QUARESMA? Frei Bento Domingues, O.P.


1. Quem nunca ri, quem nunca tem vontade de rir, quem anda sempre à procura de más notícias, falta-lhe alguma coisa. Desde sempre se considerou que o ser humano é um animal que ri, que ri das coisas e das situações mais variadas, que faz rir e, sabedoria suprema, sabe rir de si mesmo. Não é muito agradável viver com pessoas que reprimem, em si, o sentido de humor e que se ofendem com o humor dos outros.

A relação do riso com as religiões está tecida de contrastes. Só os ignorantes podem dizer que a alegria, o bom humor e a religião andaram e andam sempre de costas voltadas[1]. Pelo contrário, muitas das expressões da religião popular eram, também, as grandes celebrações da alegria do povo cristão. No entanto, em certas épocas e em certos grupos, no campo católico (mas não só), religião e tristeza, vida religiosa e clima sombrio, desenvolveram uma relação pouco sadia. Não riem e não suportam o riso dos outros. Sentem-se tão ofendidos com as brincadeiras que os outros fazem ou dizem acerca da sua religião que podem até suscitar a violência contra os humoristas. Decretam que o sagrado é intocável.

Foi há muitos anos – eu ainda era muito novo – que, numa aldeia vizinha, na festa de Santa Apolónia, ouvi o que nunca esqueci.

Não havia electricidade, mas uns geradores conseguiam que os altifalantes transmitissem discos de folclore nortenho que estavam proibidos em festas religiosas. É evidente que as populações nem dessa nova tecnologia precisavam para cantar à desgarrada e dançar horas a fio. Não faltava, nas aldeias, quem soubesse tocar viola, violão, cavaquinho, concertina, etc.. Nos anos 40 do século passado, nasceu e desenvolveu-se uma pastoral equivocada de “cristianização” das festas. Havia, na mesma altura, muita vontade de criar a JAC. Quem pertencesse à Acção Católica não podia dançar, mas a dança em público, no terreiro, era, na minha zona, tão antiga que era irreprimível.

Recordo que, nessa festinha de Santa Apolónia, estavam velhos e novos entusiasmadíssimos a dançar. De repente, ouviu-se a voz do pároco, pelo altifalante, a proibir aquela alegria e disse textualmente: «preferia ver-vos ir para o hospital de S. Marcos de Braga, de cabeça rachada, do que ver-vos dançar».

Para entender esta referência hospitalar, é preciso não esquecer que as feiras e as romarias não eram só ocasiões de folia. Eram, também, ocasiões de grandes cenas de pancadaria entre aldeias desavindas. Algo absolutamente brutal e estúpido. Ora, aquele bendito pároco preferia o exercício da violência entre grupos e aldeias às danças e às desgarradas das festas. O pecado não estava ligado à violência, mas aos folguedos decretados como pecado. O desnorte moral era tão disparatado que as expressões normais da alegria eram pecado e as expressões do ódio e da violência, uma boa alternativa.

2. A Quaresma vem depois do carnaval. Não tenho grande devoção às versões televisivas dos carnavais nacionais e estrangeiros. Não assinaria, porém, a carta da Irmã Lúcia ao Patriarca de Lisboa para que o governo de Salazar proibisse o carnaval. Substituir as festas populares do carnaval pela adoração reparadora do Santíssimo Sacramento pode ser um exercício espiritual de grande valor, mas pode também dar a ideia que Jesus se dá mal com a alegria popular. Quando se diz que os Evangelhos não mostram Jesus a rir, esquece-se que rir não é um milagre, uma acção extraordinária, mas o normal de gente normal. Por outro lado, é posto na boca de Jesus: eu digo estas coisas para que a minha alegria esteja em vós e a vossa alegria seja plena[2]. João termina a introdução à sua Primeira Carta em plena sintonia com o Mestre: e isto vos escrevemos para que a nossa alegria seja completa[3]. A maior ignorância de quem ouve falar do Evangelho é não saber que a palavra inicia a narrativa, em quatro versões, de boas notícias. Não tem nada a ver com o estilo usado nos telejornais que esquecem tudo o que há de bom, belo e alegre no mundo à mistura com o que estraga a vida. Inverte-se a realidade: é por causa da beleza e da bondade do mundo que é horrível aquilo que o perverte.

3. Com a quarta-feira de cinzas (dia 6) começou a quadra litúrgica da Quaresma. As cinzas não se parecem nada com um rito de alegria. Ainda sou do tempo que essa imposição era acompanhada de uma triste e niilista verdade empírica: lembra-te que és pó e em pó te hás-de tornar. Esta afirmação contrariava o prefácio da missa de defuntos, como lembrei no Domingo passado: a vida não acaba, apenas se transforma. No rito actual, a imposição das cinzas é magnífica: arrependei-vos e acreditai no Evangelho. Significa que não devemos continuar a estragar a vida, mas pelo contrário, acreditar que a alegria é possível. É o tempo da conversão, da esperança!

A proclamação do Evangelho[4], desse dia, é uma diatribe contra a hipocrisia das rezas, dos gestos, das esmolas, do jejum, de tudo o que é feito para compor um cenário de ostentação dos que querem dar uma boa imagem de si. O conselho de Jesus é outro: Quando jejuardes, não tomeis um ar sombrio, como os hipócritas, que desfiguram o rosto para mostrar que jejuam. Tu, porém, quando jejuares, perfuma a cabeça e lava o rosto para que os outros não percebam que jejuas. Deve bastar que seja Deus, teu Pai, a alegrar-se com as transformações que estão acontecer em ti.

Hoje, somos informados que Jesus também foi fazer retiro, um longo retiro, conduzido pelo Espírito de Deus. Estava perante a concretização do seu projecto de vida. Que fazer? Como fazer? Um dia publicará o manifesto das suas opções radicais em favor dos atirados para a margem da história[5].

O Diabo, a figura de tudo e todos os que se opunham a este projecto libertador, propõe-lhe uma alternativa exaltante: usa os teus recursos divinos para resolver, por decreto, os problemas da fome, da dependência política, exibindo um miraculoso espectáculo religioso. Deixa-te de lirismo e convence-te que o caminho é o do poder de dominação económica, política e religiosa.

Jesus, a todas essas propostas, disse um não absoluto, definitivo.

Sabemos demasiado as consequências das vezes que, na Igreja, se esqueceram as opções do Mestre.

Agora, parece-me ridículo, quando o Papa Francisco insiste, contra tempos e marés, na renovação da Igreja ao serviço da transformação do mundo na pátria da alegria, se exija que ele faça um milagre de transformar a Igreja e a sociedade, por decreto, dispensando o empenhamento de todas as pessoas de boa vontade.

10. 03. 2019



[1] Alessandro Pronzato, “La boca se nos llenó de risas”. Sentido del humor y fe, Sal Terrae, Santander, 2006.
[2] Jo 15, 11
[3] 1Jo 1, 1-4
[4] Mt 6, 1-18
[5] Lc 4, 16-30

quinta-feira, 7 de março de 2019

A caminho da Páscoa - Silva Araújo, DM

1.Principiou ontem o tempo
litúrgico da Quaresma, destinado
a preparar a celebração
da Páscoa.
Na mensagem que nos dirigiu
o Papa Francisco convida
a fazermos um esforço no sentido
de mudarmos para melhor.
O vocábulo conversão aparece repetidas
vezes. «O caminho rumo à Páscoa
chama-nos precisamente a restaurar a
nossa fisionomia e o nosso coração de
cristãos, através do arrependimento, a
conversão e o perdão, para podermos
viver toda a riqueza da graça do mistério
pascal».
Conversão para fazermos da Criação
um jardim e não um deserto.
2. O Papa alerta para a realidade do
pecado e para as suas consequências. É
«a causa de todo o mal» e «rompe a comunhão
com Deus».
«Quando não vivemos como filhos
de Deus, escreve, muitas vezes adotamos
comportamentos destruidores do
próximo e das outras criaturas – mas
também de nós próprios –, considerando,
de forma mais ou menos consciente,
que podemos usá-los como bem
nos apraz.
Então sobrepõe-se a intemperança,
levando a um estilo de vida que viola
os limites que a nossa condição humana
e a natureza nos pedem para respeitar,
seguindo aqueles desejos incontrolados
que, no livro da Sabedoria, se
atribuem aos ímpios, ou seja, a quantos
não têm Deus como ponto de referência
das suas ações, nem uma esperança
para o futuro (cf. 2, 1-11).
Se não estivermos voltados continuamente
para a Páscoa, para o horizonte
da Ressurreição, é claro que acaba por
se impor a lógica do tudo e imediatamente,
do possuir cada vez mais».
«Quando se abandona a lei de Deus,
escreve também, a lei do amor, acaba
por se afirmar a lei do mais forte sobre
o mais fraco».
3. Lembra o Santo Padre atos penitenciais
da Quaresma recomendados
pela doutrina tradicional da Igreja.
A Quaresma, diz, «chama os cristãos
a encarnarem, de forma mais intensa
e concreta, o mistério pascal na sua vida
pessoal, familiar e social, particularmente
através do jejum, da oração
e da esmola».
Seguidamente especifica cada um
destes atos:
«Jejuar, isto é, aprender a modificar
a nossa atitude para com os outros e
as criaturas: passar da tentação de ‘devorar’
tudo para satisfazer a nossa voracidade,
à capacidade de sofrer por
amor, que pode preencher o vazio do
nosso coração.
Orar, para saber renunciar à idolatria
e à autossuficiência do nosso eu, e nos
declararmos necessitados do Senhor e
da sua misericórdia.
Dar esmola, para sair da insensatez
de viver e acumular tudo para nós mesmos,
com a ilusão de assegurarmos um
futuro que não nos pertence.
E, assim, reencontrar a alegria do projeto
que Deus colocou na criação e no
nosso coração: o projeto de amá-Lo a
Ele, aos nossos irmãos e ao mundo inteiro,
encontrando neste amor a verdadeira
felicidade».
4. A mensagem termina com um renovado
apelo à conversão: «Não deixemos
que passe em vão este tempo favorável!
Peçamos a Deus que nos ajude
a realizar um caminho de verdadeira
conversão.
Abandonemos o egoísmo, o olhar fixo
em nós mesmos, e voltemo-nos para
a Páscoa de Jesus; façamo-nos p róximo
dos irmãos e irmãs em dificuldade,
partilhando com eles os nossos bens espirituais
e materiais.
Assim, acolhendo na nossa vida concreta
a vitória de Cristo sobre o pecado
e a morte, atrairemos também sobre a
criação a sua força transformadora».
«Que a nossa Quaresma, escreve ainda
o Papa, seja percorrer o mesmo caminho,
para levar a esperança de Cristo
também à criação, que ‘será libertada
da escravidão da corrupção, para alcançar
a liberdade na glória dos Filhos de Deus»

terça-feira, 5 de março de 2019

VITA MUTATUR NON TOLLITUR Frei Bento Domingues, O.P.


1. Para o filósofo L. Wittgenstein, acreditar em Deus significa reconhecer que a vida tem sentido. Hoje, vivemos obcecados pelo futuro que a ascensão da inteligência artificial e a biotecnologia nos desenham. O filósofo tem uma observação que, segundo me parece, conserva toda a pertinência: «sentimos que, mesmo que todas as possíveis questões científicas obtivessem resposta, os nossos problemas vitais não teriam ainda sido sequer tocados».

Concelebro, muitas vezes, a Eucaristia. Para mim, não é uma rotina devocional nem uma obrigação. Implica uma comunidade agradecida por acreditar que a morte não é a última palavra sobre o itinerário de uma existência humana. Essa convicção não é da ordem da razão, não é a conclusão de qualquer elaboração científica. Muitos chamam-lhe “fé na ressurreição”. São tantos os equívocos acerca do uso dessa palavra que não insisto muito nela.

Jesus Cristo teve um percurso breve, atribulado e que terminou cravado numa cruz, a morte mais cruel da antiguidade. Não morreu, foi assassinado mediante um julgamento iníquo. Sentiu-se abandonado pelo céu e pela terra e, sobretudo, sentiu o fracasso da sua luta. No entanto, teve folgo para perdoar aos autores da sua morte e para prometer o paraíso a um companheiro de infortúnio. Foi morto, mas, se estivermos atentos às narrativas da Paixão, a sua morte ia carregada com a vida de todos, com esperança para os próprios inimigos. Queixando-se do abandono de Deus, foi nas Suas mãos que lhe entregou o seu destino. A esperança contra toda a esperança foi o seu último suspiro.

Depois, as mulheres vieram dizer, não apenas que ele não estava no sepulcro, onde fora colocado, mas que as convocou para anunciar aos discípulos que estava vivo e era preciso continuar o caminho por ele aberto. As mulheres estão na origem do movimento cristão. São elas as pregadoras do Evangelho na sua novidade contra a morte.

Frei José Augusto Mourão escreveu um belo poema para uma música do Convento de La Tourette, o célebre convento de Corbusier. É cantado muitas vezes na minha comunidade dominicana: «…Ao pé de Deus hei-de sempre viver/ com Deus cheguei e com ele vou partir»[1].

2. Quando, mais tarde, foram escritos os textos do Novo Testamento, aparecem neles palavras extraordinárias atribuídas ao próprio Jesus: «Aquele que quiser salvar a sua vida há-de perdê-la, mas aquele que perder a sua vida por causa de mim e do evangelho há-de salvá-la»[2].

Ser discípulo de Cristo é empregar todas as energias para continuar a aventura da transformação da vida que a morte parece derrotar. Quem procura centrar a sua vida em si mesmo, nos seus projectos de êxito pessoal, muitas vezes à custa dos pobres, está perdido. Em todas as épocas e circunstâncias, o que caracteriza o cristão autêntico é cuidar de quem não pode cuidar de si. A história está carregada de figuras que gastaram as suas energias para que os outros pudessem viver com dignidade. O Papa Francisco veio relançar a criatividade do movimento das primeiras gerações. Os cépticos dizem que é um esforço perdido, pois a Igreja está morta na opinião pública por causa dos escândalos divulgados, dia a dia, na comunicação social.

O importante não é saber se o Papa vai vencer ou vai ser derrotado, mas se vamos ter ou não quem se apaixone pela paixão do Nazareno.

3. Houve muitas épocas nas quais se procurou exaltar o papel histórico da Igreja. Não é difícil fazer uma lista enorme dos seus contributos para o bem da humanidade. Tarefa inútil. Outros contam o rol de crimes que ela cometeu contra os direitos humanos, no seu interior e contra povos que dizia evangelizar.

Quando celebro a Eucaristia é para dar graças por toda a bondade do mundo e para pedir perdão pelos crimes acumulados ao longo dos séculos. Mas é, sobretudo, para reerguer a figura do Ressuscitado, o testemunho de que vale a pena, contra ventos e marés, acreditar na vida de todas as épocas da história. Uma vez, Jesus sentiu que os seus discípulos, não só procuravam honra e glória, como punham a sua esperança nos êxitos que iam conseguindo, em nome do próprio Nazareno. Este, porém, advertiu-os: «Não vos alegreis porque os espíritos se submetem a vós; alegrai-vos antes porque os vossos nomes estão inscritos nos céus»[3].

Para não profanar o nome de Deus (Iavé), os judeus usavam outras expressões de substituição. Daí falar-se de céu, de reino dos céus, que a ignorância confundiu com espaços astrais ou abstracções prometidas aos pobres. Quando Jesus declara alegrai-vos porque os vossos nomes estão inscritos nos céus, diz: a vossa vida está inscrita no coração de Deus e ninguém vos poderá arrancar desse infinito amor. Isto é tão verdade que o narrador acrescenta que o próprio Jesus se sentiu comovido, no Espírito Santo, pelo que tinha dito. Tanta interpretação e reinterpretação das Escrituras, por rabinos bem letrados, tinham ocultado o coração da realidade divina e da nossa esperança: somos amados e para sempre. Não por causa dos nossos méritos, mas por Deus ser quem é: pura expansão da gratuidade do amor. Finalmente, as artimanhas desses pretensiosos inteligentes e bem informados das Escrituras foram desmascaradas. Não se coíbe de ser enfático perante os discípulos: estamos a vencer séculos de ignorância.

Quando alguém morre, seja sepultado, seja cremado, a maneira de falar é horrorosa: enterrou ou cremou o pai, a mãe, o filho, o irmão, etc.. Se isso fosse verdade, era um caso de polícia. Aquilo que é enterrado ou cremado não é a pessoa, não é o corpo, são os restos mortais. Haverá muitas interpretações sobre este facto, mas nos cemitérios só existem as pessoas que os visitam. Pergunta-se: e as pessoas onde estão? S. Paulo responde com palavras de um gentio, anterior a Cristo, «é na divindade que temos a vida, o movimento e o ser»[4]. A fé cristã diz-nos que as pessoas, que já não vemos, andam por onde sempre andaram, estão onde sempre estiveram, vivem onde sempre viveram, em Deus. Dizer em Deus é dizer que são nossa companhia, que participam nos cuidados de Deus por nós e por todo o universo.

Concelebrei a Eucaristia do funeral do Frei Bernardo Domingues. É meu irmão de sangue e da Ordem dos Pregadores. Quando ele fez 80 anos, D. Manuel Clemente era Bispo do Porto. Escreveu uma síntese luminosa da vida do meu irmão: Os anos que o Frei Bernardo viveu, multiplicam-se nas vidas dos outros que ele ajudou a viver. São tantos, que só em Deus se podem contar e cantar.

Foram alguns amigos que juntaram meios para ele viver mais 8 anos quando estava sob a sentença de morte.



03.03.2019



[1] Não pode a morte reter-me na cruz
[2] Mc 8, 35
[3] Lc 10, 17-24
[4] Act 17, 28

sábado, 2 de março de 2019

Manicura no Parlamento - Laureano


Sexta-feira ‘bora, ‘bora,

Ala, moça, ‘tá na hora,

Moro longe, na Amoreira,

Regresso de uns dias fora,

Unhas de segunda-feira.



Que vida desvariada

Futriqueira, estressada,

Zaruca e outras alcunhas!

Não dá tempo para nada,

Muito menos para as unhas.



Isto não é um balé,

Não é serviço de pé,

É de mãos: computador

Mais tablé, mais telelé

Deixam as mãos num horror.



Até café quente ou chá,

As prejudicam, não dá,

E rasgar o pacotinho

Do açúcar, vejam lá

As resmas de cuidadinho!



Lavar pratos, panelinhas

Ai minhas ricas mãozinhas!

Além de estragar a pele,

As unhas ficam fraquinhas,

Mais finas do que papel.



Tirar e pôr os anéis

Quatro vezes, cinco, seis,

Às unhas não dá saúde,

E manusear papéis

Não é tarefa que ajude.



Com tamanhas agressões,

De que tempo é que dispões

Para as mãos e para os dedos

Em que as unhas em funções

Desvendam tantos segredos?



A única solução

De boa apresentação

Das unhas a cem por cento

É dar-lhes uma atenção

Mínima no Parlamento.





Não as trato enquanto falo,  

Mas no tempo em que me calo,

Quando os ânimos aquecem,

Ou então no intervalo,

Minhas mãozinhas merecem.



Julgas que é brilhante ideia

Tirar foto na Assembleia

De mãos em cena escondida,

Metendo-te em vida alheia,

Mete-te na tua vida!



Se pretendes guerra acesa

Com manicura indefesa

Vais levar com plano táctico        

Do não-decreto-defesa.

Toma lá, que é democrático!:



No Parlamento indiscreto

Pode não ser o correcto,

Pode haver mil testemunhas,

Contudo nenhum decreto

Proíbe tratar das unhas.







Lauro Portugal

Nov. 2018