sábado, 31 de dezembro de 2016

CELEBREMOS A VIDA !... Fernando Paulo

celebremos a vida
afinal tão efémera
como o próprio fluir do tempo
que como diz platão
no timeu
não é senão
a imagem móvel da eternidade
e tão volátil
como as homéricas folhas
de outono
rodopiando ao sopro do vento
no chão frio
da terra exangue

celebremos
em serena harmonia
esta vida
que nos foi dada
e que temos
assim
tal como é
nem mais nem menos

ergamos com júbilo
a nossa taça
aos deuses
e aos demónios
sem discriminação
de ninguém

que todos eles
são importantes
rezando
e esconjurando
cantando
dançando e bebendo
à saúde inteira
da amizade
verdadeira
e vertical

celebremos pois a vida
num forte e apertado
abraço
coração a coração
sob o olhar vígil
e tutelar
das estrelas
benignas

afaguemo-la
ao ritmo e ao lume
da crepitante fogueira
dos afectos
no lar
capital
e sem par

da fraternidade
universal!...

( Fernando Paulo Carmo )

Para celebrar este último dia do ano e brindar ao Ano Novo que agora começa recorri a este magnífico ( na minha modesta opinião) poema do nosso colega e amigo Fernando Paulo que teve a gentileza de mo enviar estes dias. Apreciemos a vida e celebremo-la bebendo até ao fim os dias que ela nos consente.
António Pinheiro

sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

CARTA ABERTA AO MENINO JESUS...Fernando Paulo

meu menino infinitamente bom
vindo da terra prometida
ao colo de nossa senhora
num jeriquinho ruço
puxado por uma trela de estrelas
pela mão calejada de teu pai josé
com um bornal de pirilampos
e de sonhos
às costas
e um casalinho
de pombas
poisadas nas abas
do seu capote coçado
e cheio de serrim

em toda a parte estarás
como de deus se diz

mas agora assim
a bater o dente
em cada lágrima de frio e fome
como quem
já não tem
nem pai nem mãe
e é sem abrigo
já não me lembro que te visse
nem mesmo no tempo em que à lareira
a minha avó ceguinha
me contava em seu regaço a tua história
de pastores e de grutas
em terras de belém

estes meninos de carne e osso
que destilam a dor em corpo e alma
por esse mundo fora
e que são seguramente os teus melhores irmãos
e os mais amigos
não sabem quem tu és
nem por que é que fizeste
tal viagem
não compreendem mesmo
que ainda não tenhas tido tempo
para vir ter com eles
jogar o pião
e saltar ao eixo
no largo do terreiro

tu que tens tanto poder
vê lá se fazes alguma coisinha
em que os possas ajudar

segue junto no correio
uma cestinha
de corras e de vimes
com ovos mel e requeijão
feito do leite daquela nossa ovelha
a preta
lembras-te dela
que me disse o meu avô
que era bisneta
da que te viu parir
e te lambeu e te deu o bafo quentinho
naquela noite gelada em que vieste ao mundo

vê lá se não te esqueces cá da gente
vem aqui ter
que nós cá ficamos à tua espera
junto à fogueira
para fazermos um magusto
e brincarmos ao rapa e aos pinhões

depois da ceia
levamos-te connosco à missa do galopara beijares também aquele menino tão lindo

Fernando Paulo
(carta do tempo em que ainda não sabia escrever)

MEMÓRIA DE NATAL...Fernando Paulo

Se a poesia
viesse
no presépio
dum poema
montado no coração
não parava
de girar
à volta desta lareira
de fogo familiar

Pulsava
de mão em mão
cantado
pela nossa voz
como a verdade
primeira
de que cada um de nós
traz em seu rosto
um irmão

Poema fraterno e quente
canção da luz
auroral
na ternura
dum menino
na memória

do Natal

( Fernando Paulo )

segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

NATAL OU PÁSCOA? Frei Bento Domingues, O.P.


1. O dia 25 de Dezembro não celebra o aniversário histórico do nascimento de Jesus de Nazaré. A Igreja de Roma fixou esta data como réplica pastoral à festa solar pagã do Natalis Invicti, festa de inverno no hemisfério norte. Foi uma bela astúcia. Procurava destronar a heliolatria, o culto do sol, pela celebração do nascimento de Jesus Cristo, o verdadeiro Sol Invencível, a luz da justiça e da graça. Se o Natal é decisão romana, a Epifania, a 6 de Janeiro, é de origem oriental: celebram ambas a mesma realidade, a manifestação do Deus humanado.

A linguagem das Escrituras e da Liturgia não caiu do Céu. Para fazer entender a novidade cristã foram transpostas, muitas vezes, imagens e festas pagãs para o universo católico. Onde hoje alguns podem julgar que houve uma paganização do Cristianismo, outros vêem, nesse esforço, a sua cristianização. A este propósito, as descrições que Epifânio de Salamina[i] fez  da festa pagã, de tipo solar, ajudam-nos a perceber os discernimentos que foram necessários para entender a nossa festa de 6 de Janeiro.

Vale a pena ler: “em muitos lugares, os charlatães inventam ritos idolátricos para enganar os adoradores dos ídolos que neles confiam. Celebram, uma festa grandiosa, precisamente na noite que precede o dia da epifania… Temos de referir, em primeiro lugar, a festa que se celebra em Alexandria, no chamado Koreion. Ficam acordados toda a noite, a cantar alguns hinos e a tocar flauta para acompanhar os cânticos que entoam em honra do ídolo. Uma vez terminada a celebração nocturna, ao cantar do galo, descem, empunhando tochas, a uma espécie de capela subterrânea e pegam num ídolo de madeira, despido, colocado sobre uma peanha… A seguir, levam o ídolo em procissão, dando sete voltas ao recinto interior do templo, ao som de flautas, de tambores e a cantar hinos; terminada a procissão, levam o ídolo para a sua sede subterrânea. Se lhes perguntarmos que mistério é esse, respondem: Hoje, a esta hora, Kore, a virgem deu à luz Aion.”

Além desta conotação solar, a festa oriental da epifania aponta para outra festa pagã, a das águas. Epifânio relaciona a festa de 6 de Janeiro com o milagre de Caná.

“Até aos nossos dias, em muitos locais, repete-se o prodígio divino que teve lugar naquele tempo, a fim de dar testemunho aos incrédulos. Em muitos sítios, comprovam-no fontes e rios transformados em vinho. Isto acontece na fonte de Cibyra, cidade de Caria, no momento em que os servos tiram água dizendo: levai-a ao mestre-sala.” (…) Também a 11 de Tybi, 6 de Janeiro, segundo os egípcios, todos irão tirar água e pô-la de parte, tanto no Egipto como noutros países.

2. Este ano, o Natal é num Domingo, a celebração semanal da Páscoa. Mas é Páscoa ou Natal? Pensando bem, não poderia haver Páscoa sem Natal, mas um natal sem Páscoa seria dar à morte a última palavra.

Uma coisa é dizer e outra é ter consciência do que isso implica. Há uns tempos a esta parte, observo o seguinte: há cristãos que, ao participarem na Eucaristia dominical, regressaram ao costume depressivo de ficar de joelhos. Uns fazem-no durante a anáfora e outros ajoelham antes de comungar.

Talvez não seja descabido ler o que, já no século II, Tertuliano[ii] destacava: nós consideramos que, ao domingo, não é permitido jejuar nem rezar de joelhos. Do mesmo privilégio gozamos no dia de Páscoa e durante o período do Pentecostes. O grande teólogo, S. Basílio[iii] sublinha: “É de pé que fazemos a oração do primeiro dia da semana, mas nem todos sabem a razão de tal facto. Permanecemos de pé quando rezamos no dia consagrado à ressurreição – como ressuscitados com Cristo e devendo procurar as coisas do alto[iv]– não só porque recordamos a graça que nos foi dada, mas por aquele dia ser, de certo modo, uma imagem do mundo que há-de vir. (…) É necessário, pois, que a Igreja habitue os fiéis a rezar de pé, a fim de que, pela incessante invocação da vida eterna, não nos esqueçamos de preparar o nosso viático, em vista da nossa partida para o céu”.

3. Dir-se-á que não vale a pena perder tempo a procurar saber se é melhor rezar de pé, de joelhos ou sentados. É verdade e seria ridículo dizer a uma pessoa que se ajoelha para comungar: levante-se!

A oração não é um comportamento exclusivo de nenhuma religião. Jesus era um grande orante, mas o seu primeiro cuidado não foi o de arranjar um manual de orações para os seus discípulos, que se queixaram desse descuido. Não se esqueceu, porém, de evangelizar a oração[v].

Segundo S. Mateus, importa não imitar os hipócritas exibicionistas nem os gentios que entendem que é pelo palavreado excessivo que serão ouvidos: o vosso Pai sabe do que tendes necessidade antes de lho pedirdes. A oração nasce em nós, por causa dos nossos limites. Pedir socorro, quando se está aflito, é uma atitude normal e saudável. É uma forma de resistência ao fatalismo.

Importa, no entanto, não transferir para a nossa relação com Deus a ficção de que O estamos a informar e a convencer, inventando um sistema de cunhas para O fazer entrar nos nossos projectos.

A oração não é para convencer a Deus é para nos convencer de quanto precisamos de Deus e dos outros para transformar o mundo.

Boa ressurreição!

25.12.2016





[i] 310-403 dC. Cf. José Manuel Bernal, Para viver o ano litúrgico, Gráfica de Coimbra, 2001, pp 301-303
[ii] 160-220 dC
[iii] 329-379
[iv] Col 3, 1
[v] Mt 6, 1-13; Lc 11, 1-2;

quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

OS ROSTOS DA SOLIDARIEDADE ….

No âmbito do projecto da UASP, “Por Mares dantes Navegados”, tivemos a feliz companhia de um notável cronista que, depois, ao longo do ano, nos trouxe à memória a experiência inolvidável da nossa missão solidária à Guiné-Bissau. Na verdade, há momentos da nossa vida de cristãos em que somos chamados e enviados, e como quer e testemunha o Papa Francisco, para as periferias existenciais. Para cuidar, sobretudo, daqueles que a maior parte do mundo não vê…. Em Janeiro e Março, do ano em curso, partiram dois grupos para aquela antiga colónia de Portugal onde alguns dos “peregrinos” foram antigos combatentes. Mas, agora, a missão não era de soberania, mas de Paz e, essencialmente, solidária. Nesse sentido, uma forte motivação nos guiava, como refere, na sua última crónica “AFINAL”, o Padre Artur, nosso Alferes Capelão.
A nossa viagem foi um pequeno, mas importante, sinal de Esperança para muitos dos seus habitantes que vivem em condições de extrema pobreza. Foi comovedor ver e partilhar da alegria de tantas crianças e adultos, os rostos da solidariedade, e sentir neles a força de poderem, ainda, viverem e esperarem um futuro melhor. E, para que tal aconteça, lá estão a ajudar os missionários das Ordens Religiosas e Institutos femininos e masculinos, a Igreja viva, muitos voluntários, nomeadamente, médicos e outros… Todos os que tivemos a graça de palmilhar o chão areoso e escaldante da Guiné; de atravessar bocados de um mar sereno e os muitos canais com as margens revestidas de arbustos e árvores entrelaçados e dobrados sobre as águas límpidas, como que a saudar-nos, até chegarmos às tabancas de um povo politicamente resignado, mas profundamente crente, amigo e acolhedor…. Ao visitarmos as várias instituições e casas de ajuda e acolhimento constatámos como o trabalho é realizado com alegria e disponibilidade pelos missionários e voluntários!…..
Mas, há outras maneiras de continuarmos presentes na encantadora terra da Guiné-Bissau.
E assim aconteceu!
O espírito solidário, reforçado na identidade e missão da UASP, continuou, depois, na cidade berço de Guimarães. Foram acolhidos fraternalmente e apoiados dois jovens médicos que vieram, por alguns meses, frequentarem acções de formação, da especialidade, no Hospital local e regional da Senhora da Oliveira. O dr. Amaro está destacado no hospital franciscano da Cumura que visitámos e daí o conhecíamos; o dr. Maurício, em Mansoa. Chegaram a Portugal sem recursos! Como é publico, o governo da Guiné habitualmente tem os salários em atraso e a bolsa, atribuída pela Fundação Calouste Gulbenkian, só chegou mais tarde. Mas, graças a Deus e à boa vontade dos homens, não lhes faltou o essencial para uma estadia humanamente digna. O Américo Soares, antigo aluno do Seminário Arquidiocesano de Braga e combatente, nosso Furriel enfermeiro, em Bula, acompanhou-os quase diariamente e proporcionou-lhes visitas culturais a vários pontos turísticos e religiosos do Minho, como Sameiro, Bom Jesus, Santa Luzia, em Viana do Castelo e, mais distante, a Fátima. A seu pedido, mas, igualmente, por nossa vontade, acompanhámos os jovens médicos ao Convento franciscano de Montariol, em Braga, onde o guardião, Frei João Vicente, cerca de 30 anos missionário na Guiné e Vigário Geral da diocese de Bissau, nos ofereceu o almoço conventual, proporcionando-lhes o desejado encontro com o Frei Vítor, padre franciscano e médico, durante longos anos na Cumura e, também, director clínico de quem o dr. Amaro dependia profissionalmente. Actualmente trabalha no Centro de Cuidados Continuados, “O Poverello”, que tiveram a oportunidade de visitar e constatar a qualidade dos serviços ali prestados.
Já no início do Verão também aqui chegou o Benelívio Cabral, professor no liceu de Bissau, dr. Agostinho Neto, jornalista e relator desportivo. Mereceu, igualmente, todo o apoio necessário e ainda lhe foi proporcionado um encontro com membros da direcção do Vitória de Guimarães, como era seu forte desejo, tendo em vista celebrar eventuais protocolos. Mais tarde, no passado mês de Novembro, o Américo teve conhecimento, pela imprensa local, de que dois médicos e uma enfermeira, drs. Vasco e Quintino e Enfª Alexandrina, estavam a concluir acções de formação, nas diversas especialidades, e que partiriam brevemente para a sua terra natal. Diligente, tomou a iniciativa de os contactar, promover o encontro e, desse modo, além de um jantar-convívio de despedida, de novo, generosamente, colmatou algumas dificuldades financeiras e logísticas que humildemente lhe manifestaram esses profissionais de saúde da Guiné.
Os contactos têm continuado, porque os nossos amigos guineenses têm memória e são gratos e a solidariedade perdura. Sabem que as portas ficaram abertas para futuras acções de formação médica ou visitas de outra ordem. “AFINAL”, o título da última crónica do Padre Artur, em “Ecos da Guiné”, publicada no site da UASP; afinal, o acolhimento é a expressão concreta das “Obras de Misericórdia”…..
Alfredo Monteiro, antigo aluno franciscano e Alferes Milº.

terça-feira, 20 de dezembro de 2016

Festas Felizes!

Graças ao coração misericordioso do nosso Deus,que das alturas nos visita como sol nascente.(Lc 1, 78)

A UASP deseja a todas as Associadas, amigos e familiares Santo Natal e Feliz Ano Novo!

Pela Direcção
P. Armindo Janeiro

Os sins e os nãos para a fusão dos combonianos de Portugal e Espanha 16 de Dezembro de 2016

O P. Manuel Augusto Lopes Ferreira, comboniano português, fez uma pesquisa histórica sobre a união jurídica e canónica das presenças combonianas em Portugal e Espanha, de 1964 a 1969. A 6 de Outubro de 1969, a direcção-geral do Instituto comboniano erigia de novo a província de Portugal, passando a existir duas províncias autónomas. Hoje, pensa-se, de novo, numa eventual reunificação.

Para ajudar à reflexão sobre as vantagens e as desvantagens de uma nova fusão de ambas as duas províncias, o missionário realizou esta pesquisa. No final deste “caso de estudo”, como lhe chama o autor, o P. Manuel Augusto não se manteve neutro. À pergunta se se deve repetir a experiência da união, conclui: “À luz da análise que fizemos creio que não.”

Leia aqui o texto completo.

( Um texto muito interessante!...Vivi esses tempos... e estou plenamente de acordo com o autor a quem envio um grande abraço de amizade fraterna)

segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

DE MÃE A DISCÍPULA Frei Bento Domingues, O.P.


1. Pertencem a Paulo os primeiros escritos do Novo Testamento. Não são de carácter narrativo. São tentativas de interpretação de uma experiência que mudou completamente a sua vida, que o fez nascer de novo. A iluminação que derrubou as suas certezas não o fez ver apenas que nem Jesus nem os seus discípulos eram traidores da autêntica fé de Israel. Esta tinha sido atraiçoada ao deixar-se prender pela Lei, pelos seus preceitos e regulamentos, tornando-se uma questão nacionalista.

Jesus não cabia em Israel e não era só um judeu fora de série. Era um começo novo da humanidade. S. Lucas imaginou a sua genealogia como filho de Adão, como filho de Deus[1] e S. Mateus dirá, citando Isaías, que ele é Deus connosco[2]. É o evangelho de um filho da humanidade para toda a humanidade.

Quem frequentar as engenhosas narrativas, magníficos romances do nascimento e dos começos da vida de Jesus, não corre o perigo de imaginar que estamos a preparar, com o Advento, o nascimento de Cristo, assunto há muito resolvido. O que nos falta é consentir em nascer de novo. Como já referimos na semana passada, a grande figura do Natal é Nicodemos, um fariseu membro do Sinédrio[3], que andava de noite à procura da luz.

2. Maria, nunca foi, nunca será tirada do Presépio, mesmo que este não figure nem no Evangelho de Marcos nem no de João, que apanharam Jesus já em andamento.

No Evangelho de João, Maria é surpreendida entre dois milagres, ou sinais, como ele gosta de dizer. Tudo começa com um casamento onde se encontrava a Mãe de Jesus e para o qual também o seu filho e os seus discípulos foram convidados.

É estranho que numa boda falte vinho. Maria mostra-se muito ansiosa com aquela vergonha e pede ao filho que faça alguma coisa. Recebe uma resposta mal criada, agressiva. Maria faz-se desentendida e diz aos serventes: fazei o que ele vos disser. Água não faltava e, de repente, torna-se num vinho de excepção. Todos conhecemos o resto da conversa, o milagre da água convertida em vinho. Só que o verdadeiro milagre não foi esse. Esquecemos o milagre dos milagres.

Fixemos o contraste da narrativa. No começo, Maria é a mãe que mostra a sua relação com o filho. O seu filho. É ela que toma a iniciativa. Não esqueçamos a continuação.

Depois do que aconteceu, desceu a Cafarnaum ele, a sua mãe, os seus irmãos e os discípulos. Ali ficaram alguns dias.[4]

Qual foi, então, o grande milagre? A partir daquele momento, no Evangelho de S. João, nunca mais se fala de Maria, mãe de Jesus. Só reaparece durante a crucificação do seu filho: Perto da cruz de Jesus, permaneciam de pé a sua mãe, a irmã de sua mãe, Maria, mulher de Clopas e Maria Madalena. Jesus então, vendo a sua mãe e, perto dela, o discípulo a quem mais amava, disse à sua mãe: Mulher, eis o teu filho! Depois disse ao discípulo: eis a tua mãe! E, a partir dessa hora, o discípulo recebeu-a em sua casa[5].

3. Que significa este longo silêncio? Jesus viveu uma longa polémica com os discípulos: traído por um e abandonado por muitos[6]. Os seus irmãos também não acreditavam nele[7].

O caso de Maria é completamente diferente. O Evangelho de João mostrou que a mãe de Jesus deixou de mandar no seu filho, mas não o abandonou, nem deixou de acreditar nele. Tornou-se a mãe que vai, silenciosamente, para a escola do filho. Só reaparece quando já está identificada com o projecto de Jesus e com a decisão de o acompanhar até ao fim.

Se Jesus passou a vida, a sua vida de intervenção pública, a tentar fazer família com que não era da família, a ponto de os familiares o julgarem doido[8], na cruz, Maria é apresentada como a Mãe da nova humanidade. Ela vai aparecer no meio dos apóstolos na preparação do advento do Pentecostes: eram Pedro, João, Tiago, André, Filipe e Tomé, Bartolomeu e Mateus, Tiago, filho de Alfeu, Simão Zelote e Judas filho de Tiago. Todos, unânimes, eram assíduos à oração com algumas mulheres, entre as quais Maria, Mãe de Jesus e os seus irmãos[9].

O doido da família conseguiu enlouquecer a família.

Se a Igreja renunciasse a trabalhar por um mundo, família de muitas famílias, de muitos povos, culturas e religiões ou sem religião, significaria que tinha renunciado a acreditar na sua missão: revelar que, na sua imensa diversidade, há uma só humanidade, feita de filhos de Deus, de irmãs e irmãos. Talvez continuasse a falar na dignidade e no primado da pessoa humana, mas estaria apenas a referir-se a uma abstracção.

Importa confessar que isto está muito atrasado. Passaram dois mil anos e, quando dizemos que Jesus é o Messias, ainda estamos longe dos poemas de Isaías e das promessas do Apocalipse de um novo céu e uma nova terra[10].

Não é coisa que não se soubesse há dois mil anos. As parábolas do grão de mostarda e do fermento não nasceram por acaso.

No entanto, nem elas nos podem valer. Não temos nenhuma fórmula que nos explique o mistério do tempo. A Fé cristã está ligada a um crucificado. A Ressurreição diz-nos que a morte não é a última palavra sobre a nossa vida. A sua garantia só é dada pelo que fizermos para ressuscitar alguém esquecido na sua dor.

A igreja não tem nenhuma fórmula para salvar o mundo. É uma convocatória para o trabalho. Não é pouco.





[1] Lc 3, 38
[2] Mt 1, 23
[3] Jo 3, 1-21
[4] Jo 2, 1-12
[5] Jo. 19, 25-27
[6] Jo 6, 64-71
[7] Jo 7, 1-16
[8] Mc 3, 20-33
[9] Act 1, 12-14
[10] Ap 21-22

domingo, 18 de dezembro de 2016

Ecos da Guiné: Memorial da escravatura …

E depois… rumámos ao Cacheu. Mais um dia  dedicado à SOLIDARIEDADE. Segunda feira, com o tempo quase a expirar. Dia em pleno, a aspirar belos ambientes de cultura e educação, por dedicadas irmãs, de diversas nacionalidades, que, na sua vocação, descobriram que dar-se é mais que dar e, por isso, em terras inóspitas e de contrastes étnicos e espirituais (reina a religião animista, feita de feitiços e tradições contraditórias, antagónicas e às vezes bárbaras), aí  encontraram a realização pessoal e comunitária que, do nada ou do muito pouco, jorra em simpatia, carinho  e entrega generosa, em favor de crianças que ao seu viver podem começar a dar o nome de vida digna.
Uns solavancos inusitados, por falta de alcatrão ou por lombas rudes,  incómodas, e mal sinalizadas, faziam saltar uns “ais”, logo afogados em gargalhadas estridentes a denotar boa disposição. Estávamos por tudo, habituados ao entassamento, à dureza dos bancos  e à estreiteza do espaço para mexer as pernas… Mas, olhando pela janela, íamos admirando a paisagem: tabanca aqui, tabanca ali, mercado de rua, quase contínuo, à mistura com porcos e galinhas, cachopos, muitos cachopos, ali uma banca com frutos de cajú, além outra de laranjas descascadas, bananas, batatas, tubérculos, mandioca, sacos de lenha e de carvão, empilhados à espera de comprador ou transporte. Gente, muita gente, movimentação frenética, algum tráfego com carrinhas apinhadas de gente.
As “ânsias” do Zé Ricardo, de olhos esbugalhados à procura, foram satisfeitas muito a custo, quando, junto a um majestoso poilão, outro a apodrecer jazia como monstro derrubado em amontoados de lixo, a população de Có deambulava num mercado meio rústico mas recheado. Finalmente Có! Apeámos. Arma aperrada (máquina fotográfica, claro), era vê-lo à procura do trilho que 50 anos separavam numa memória que foi vida ali durante 2 anos. Trilho acima, massas de capim  dum lado e doutro, não dava com a orientação que a memória quase esquecera. Informação recolhida fez-nos penetrar mais na mata. Era mais além, depois dumas tabancas infectas… e mal situadas. Era ver o apontar da “arma” a uns resquícios de militança que, em espaço pleno, e na altura cuidado, acolheu anos a fio. Oi! Ali está ainda resto da estrutura metálica do depósito de água! E sai um disparo. Olha ali o arame farpado, um poste de cimento afogado em capim, mais além isto, mais além outra coisa… resquícios. Era um júbilo memorial de alguém que ali perdeu muito do cabelo que a cabeça já não exibe. Mais foto, mais recordações, deixámos Có. O reviver do Zé Ricardo deu alma a mais uma caminhada.
A caminho de Canchungo (Teixeira Pinto se dizia então), corredores de morte a serem apontados a dedo, visitámos a Escola Criança Esperança. Magnificamente cercada e muito bem cuidada, é uma escola de acolhimento e formação de crianças das redondezas. Verdadeiro oásis de formação e cultura. Foi belo ver aqueles pequenitos, em formação guerreira e tradicional, vestidos a rigor, a demonstrar as características dalgumas tribos da Guiné. Marcha e sapateado, atitudes guerreiras, guizos e espadas, folclore tradicional. Que encanto! Que magia! As visitas tiveram direito a uma manifestação infantil da cultura autóctone. Passámos por Canchungo, visitámos a igreja, onde anos a fio foi missionário o oureense franciscano Zé Henriques, da Cacinheira, o tal que, por uma boca infeliz no curso de capelães em Janeiro de 1974, foi castigado, adiado na promoção a oficial. A estrutura do curso de então, o 10º, muito característico pelo ambiente que já estava a fervilhar, foi o único que despromoveu 3 dos aspirantes capelães, por “chumbo no curso”. A revolução do 25 de Abril resolveu o castigo. Se não, seriam incorporados como furriéis, para maqueiros…
Fomos almoçar ao Cacheu, numa esplanada à beira rio. Lá está em saliência o “MEMORIAL DA ESCRAVATURA”. Era o porto de chegada e posto de armazenamento dos escravos de toda a África para comercializar e carregar, como gado, para as Américas. Memorial meio desprezado, mas guardado, onde a revolução guineense houve por bem guardar empilhadas algumas das estátuas do tempo colonial. Que desprezo, que memorial!  Almoço à beira rio preparado pelo amigo Pereira, um português ali sediado e que serve de apoio à Fundação que para ali faz canalizar muito do material adquirido em Portugal. É o Zé Luís Ponte o grande animador. Desde biblioteca, centro de formação e tantas outras valências que ali estão de pé, graças a boas vontades dos que, um dia, contrariados, ali tiveram que servir um espírito colonialista que se sustentava da guerra. Parabéns aos voluntários. Bela colaboração em favor dos necessitados. O bichinho picou e o voluntariado generoso é uma bênção.
Foi um dia cheio de visitas, de memorial e de emoções fortes. E assim demos por terminada mais uma jornada de solidariedade e bem fazer.
AO (Alferes capelão)

quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

Mensagem de Natal 15 de Dezembro de 2016

Caros irmãos em Cristo,

Recebei um abraço fraterno por ocasião da celebração do mistério da Encarnação de Nosso Senhor.
...
O Natal oferece-nos um tempo propício para contemplar Deus na fragilidade e na esperança de que um mundo novo é possível.
...
O Conselho Geral deseja-vos um Natal de 2016 repleto de bênçãos e um 2017 rico de iniciativas que nos motivem a colaborar com o plano que Deus leva por diante através de nós.

O Conselho Geral

domingo, 11 de dezembro de 2016

SEMEADORES DE MUDANÇA: POETAS SOCIAIS (2) Frei Bento Domingues, O.P.


1. A partir dos finais dos anos 60 do século passado, os militantes dos movimentos cristãos eram bombardeados com repetidas afirmações marxistas: a fé é a alienação da vida humana, a Igreja é o secular instrumento da alienação e os padres são os intelectuais orgânicos desse processo alienador.

A liturgia e a mística eram consideradas formas de fuga do mundo. Nesta perspectiva, a mística era rejeitada como expoente máximo do medo à realidade material, da fuga das responsabilidades sociais, da alienação na sua forma extrema. Era também recusada por ser uma mística de olhos fechados perante a história, sem ligação com as tarefas humanas[i].

Muitas atitudes e práticas religiosas, do passado e do presente, merecem bem esta crítica, mas diante do texto do domingo passado, e que desejo continuar hoje, essa crítica faz-nos sorrir. Não foram poucos os marxistas da época que se emburguesaram. Muitas pessoas da Igreja – e muitas que não se reconhecem em todas as suas expressões -, lideradas pelo Papa Francisco, vêem o mundo a partir dos excluídos e vivem em função da transformação da sociedade, como ficou claro no 3º Encontro com os participantes dos Movimentos Populares.

As organizações dos excluídos - e de tantas outras de diversos sectores da sociedade - estão chamadas a revitalizar e a refundar as democracias que atravessam uma verdadeira crise. Não devem ceder à tentação de se deixarem reduzir a agentes secundários ou, pior, a meros administradores da miséria existente. Nestes tempos de paralisia, desorientação e propostas destruidoras, a participação como protagonistas dos povos que procuram o bem comum pode vencer, com a ajuda de Deus, os falsos profetas que exploram o medo e o desespero, que vendem fórmulas mágicas de ódio e crueldade ou de um bem-estar egoísta e uma segurança ilusória.

Como vimos no Domingo passado, Bergoglio não acredita na fórmula beata: vai-se fazendo o que se pode e depois se verá. Para revitalizar a democracia é preciso não fechar os olhos e alimentar ilusões. Enquanto não forem radicalmente solucionados os problemas dos pobres, renunciando à autonomia absoluta dos mercados e da especulação financeira e atacando as causas estruturais da desigualdade social, não se resolverão os problemas do mundo nem problema algum. A desigualdade é a raiz dos males sociais[ii]. Por isso, o Papa Francisco disse e repetiu: o futuro da humanidade não está unicamente nas mãos dos grandes dirigentes, das grandes potências e das elites. Está fundamentalmente nas mãos dos povos, na sua capacidade de se organizarem e orientarem este processo de mudança com humildade e convicção[iii]. Não devem consentir em serem excluídos da Política, com letra grande, e reduzir cada um dos movimentos à sua pequena horta.

2. O velho argentino tocou num segundo risco dos Movimentos: deixar-se corromper. Assim como a política não é uma questão de “políticos”, também a corrupção não é um vício exclusivo da política. Há corrupção na política, nas empresas, nos meios de comunicação, nas igrejas e, também, nas organizações sociais e nos movimentos populares. Há corrupção radicada nalguns âmbitos da vida económica, em particular na actividade financeira. É menos noticiada do que a corrupção de âmbito político e social.

Importa, no entanto, realçar o seguinte: aqueles que escolheram uma vida de serviço têm uma obrigação acrescida de honestidade. A medida é muito alta: é preciso ter vocação para servir com um forte sentido de austeridade e humildade. Isto é válido para os políticos, para os dirigentes sociais e para nós pastores.

Disse «austeridade» e gostaria de esclarecer que esta palavra é equívoca. Refiro-me à austeridade moral, no modo de viver, pessoal e familiar. Não estou a falar daquela que é imposta pelas leis e astúcias do mercado…

3. A qualquer pessoa que seja demasiado apegada às coisas materiais e que ama o dinheiro, banquetes exuberantes, casas sumptuosas, roupas de marca, carros de luxo, aconselharia que compreenda o que está a acontecer no seu coração e que reze a Deus para que o liberte destes laços. Mas, parafraseando o ex-presidente latino-americano que está aqui, todo aquele que seja apegado a estas coisas, por favor, que não entre na política, não entre numa organização social ou num movimento popular, porque causaria muitos danos a si mesmo, ao próximo e sujaria a nobre causa que empreendeu. E que também não entre no seminário!

Peço aos dirigentes que não se cansem de praticar esta austeridade moral, pessoal, e peço a todos que exijam dos dirigentes esta austeridade, que — de resto — os fará sentir-se muito felizes.

É no Advento que estou a ler este longo, belo e exigente discurso do Papa. Não é para preparar o nascimento de Jesus. Essa questão está resolvida há mais de dois mil anos. Para o Natal que interessa, a grande narrativa é a conversa nocturna de Jesus com Nicodemos: precisas de nascer de novo e não perguntes como, sendo já velho[iv].

Boa receita! 

11.12.2016



[i] Olegario González de Cardedal, Cristianismo y mística. Teresa de Jesús de la Juan de la Cruz, Educa, Buenos Aires, 2013, pp.215-216.
[ii] Exortação Apostólica Evangelii gaudiumn. 202
[iii] Discurso no segundo encontro mundial dos movimentos popularesSanta Cruz de la Sierra, 9 de julho de 2015
[iv] Jo 3, 1-21

terça-feira, 6 de dezembro de 2016

Projeto missionário JIM 2016/2017

"...Missão de Adu, no Quénia
As Irmãs Missionárias Combonianas propõem a criação de três grupos de 30 mulheres, onde elas serão capacitadas para mais tarde começarem os seus próprios negócios. Farão cursos de costura, alfabetização e educação familiar que as ajudarão a tratar dos filhos e das famílias. Diz-se em África: “Ajuda uma mulher e estás a mudar a sociedade.” Estes cursos terão a duração de um ano.
...
O custo do Projeto

A Família Comboniana quer contribuir com 10.440 euros, que serão usados para o salário da coordenadora local, o transporte, material de escritório, o salário para três professoras e a compra de máquinas e material de costura.

Como contribuir

Foi criada uma conta onde se pode fazer depósitos ou para a qual fazer transferências:

IBAN PT 50 0035 0557 0004 1132 5300 6

Por favor identifique os donativos com o nome “Projeto Missão de Adu”. Os contributos também poderão ser enviados ou entregues em qualquer das casas combonianas em Portugal.
..."

domingo, 4 de dezembro de 2016

SEMEADORES DE MUDANÇA: POETAS SOCIAIS (1) Frei Bento Domingues, O.P.


1. Falar e escrever para calar os outros era uma tradição papal que João XXIII interrompeu. O exemplo não vingou, mas o Papa Francisco tem gosto em acolher, ouvir e partilhar a palavra seja com quem for, seja onde for. Não aceita que a Doutrina Social da Igreja continue a ser apenas a voz dos Papas.
No passado dia 5 de Novembro, Bergoglio acolheu, em Roma, o 3º Encontro dos Movimentos Populares. No anterior, realizado na Bolívia, ficou claro que sem transformar as estruturas não é possível vida digna para as populações. A luta continua e entusiasma o argentino: “Vós, movimentos populares, sois semeadores de mudança, promotores de um processo para o qual convergem milhões de pequenas e grandes acções interligadas, de modo criativo, como numa poesia. Foi por isso que vos quis chamar poetas sociais”.
 O ritmo dessa poesia é marcado pelos passos da caminhada rumo a uma alternativa humana face à globalização da indiferença: 1. pôr a economia ao serviço dos povos; 2. construir a paz e a justiça; 3. defender a Mãe Terra.
O discurso do papa é longo e multifacetado[i]. É uma antologia da vida dos movimentos populares na resistência à tirania. Esta alimenta-se da exploração do medo e do terror. Os cidadãos que ainda conservam alguns direitos são tentados pela falsa segurança dos muros físicos ou sociais. Muros que prendem uns e exilam outros. De um lado, cidadãos murados, apavorados; do outro, os excluídos, exilados, ainda mais aterrorizados. Será esta a vida que Deus, nosso Pai, deseja para os seus filhos?

2. Além de ser um bom negócio para os comerciantes de armas e de morte, o medo destrói as nossas defesas psicológicas e espirituais, anestesia-nos diante do sofrimento do próximo e torna-nos cruéis.
Quando se festeja a morte de um jovem, que talvez tenha errado o caminho, quando se prefere a guerra à paz, quando se propaga a xenofobia, quando propostas intolerantes ganham terreno, sabemos que por detrás de tal crueldade sopra o frio vento do medo.
O Papa não esquece a capacidade mobilizadora da oração: peço-vos que rezeis por todos aqueles que têm medo. O próprio Jesus nos intima: Não tenhais medo[ii]! Tende misericórdia. A misericórdia é muito melhor do que os remédios, antidepressivos e tranquilizantes. Mais eficaz do que muros, grades, alarmes e armas. E é grátis: uma dádiva de Deus.
Bergoglio acredita que todos os muros, mas todos, vão ruir. «Continuemos a trabalhar para construir pontes entre os povos, pontes que nos permitam derrubar os muros da exclusão e da exploração». Enfrentemos o terror com o amor!

3. O fosso entre os povos e as nossas actuais formas de democracia alarga-se cada vez mais, como consequência do enorme poder dos grupos económicos e mediáticos, que parecem dominá-las.
Sei, diz o Papa, que os movimentos populares não são partidos políticos. Em grande parte, é nisto que se encontra a vossa riqueza. Exprimis uma forma diferente, dinâmica e vital de participação social na vida pública. Mas não tenhais medo de entrar nos grandes debates, na Política com letra maiúscula, e cito Paulo VI: «A política é uma maneira exigente — não a única — de viver o compromisso cristão ao serviço do próximo». Ou então a frase que repito muitas vezes e já não sei se é de Paulo VI ou de Pio XII: «A política é uma das formas mais altas da caridade, do amor».
 Frisa, então, dois riscos na relação entre movimentos populares e política: o de se deixarem encurralar e o de se deixarem corromper.
Não se deixar cercar, porque alguns dizem: a cooperativa, o refeitório, a horta agro-ecológica, as micro-empresas, o projeto dos planos assistenciais... até aqui tudo bem.
Enquanto vos mantiverdes no âmbito das «políticas sociais», enquanto não puserdes em questão a política económica ou a Política com «P» maiúsculo, sois tolerados. A ideia das políticas sociais concebidas como uma política para os pobres, mas nunca com os pobres, nunca dos pobres e muito menos inserida num projeto que reúna os povos, às vezes parece-me um carro de carnaval a esconder o lixo do sistema.
Quando vós, da vossa afeição ao território, da vossa realidade diária, do bairro, do local, da organização do trabalho comunitário, das relações de pessoa a pessoa, ousais pôr em causa as «macro-relações», quando levantais a voz, quando gritais, quando pretendeis indicar ao poder uma organização mais integral, então deixais de ser tolerados. Estais a deslocar--vos para o terreno das grandes decisões que alguns pretendem monopolizar em pequenas castas. Assim a democracia atrofia-se, torna-se um nominalismo, uma formalidade, perde representatividade, vai-se desencantando porque deixa de fora o povo na sua luta diária pela dignidade, na construção do seu destino.
Não estará o Papa a meter-se em seara alheia? Sem qualquer monopólio da verdade, deve pronunciar-se e agir face a «situações nas quais se tocam as chagas e os sofrimentos dramáticos, e nas quais estão envolvidos os valores, a ética, as ciências sociais e a fé».
Continuaremos no próximo Domingo do Advento.


[i] O meu texto pretende chamar a atenção para o discurso do Papa. Não procura reproduzi-lo. Os recortes e as paráfrases são da minha responsabilidade.
[ii] Mt 14, 27

sábado, 3 de dezembro de 2016

Ecos da Guiné: Por mares e ares dantes “navoados” (3)

Para não massacrar mais os leitores vou terminar com este 3º texto a 2ª viagem da UASP à Guiné-Bissau de 18 a 25 de Março de 2016.
As cerimónias da 5ª Feira Santa na Catedral foram um momento alto nesta viagem.
A Catedral estava cheia de gente que participou activamente nas cerimónias. A alegria e os movimentos do grupo coral davam-lhes outra vida diferente do que é costume em Portugal. Certamente que os altifalantes fora da Catedral não incomodavam os guineenses de outra religiões.
Na manhã do dia 25 voltei de novo a Bissau visitando outros lugares com um companheiro que fora Professor durante um ano no Liceu de Bissau. Lá estava esse Liceu do tempo da guerra e a precisar de obras. Conversámos com Professores que estavam a prestar provas de exame de Português.
Visitámos várias zonas de Bissau e mais demoradamente o cemitério junto ao Hospital Simão Mendes. As dezenas ou centenas de campas de soldados portugueses que lá ficaram estavam impecavelmente pintadas de branco e sem ervas nesses talhões, o que contrastava com os outros espaços e as outras campas, mesmo de ilustres pessoas.
Concluída a viagem importa tirar algumas conclusões.
O sol, as nuvens e o calor e a claridade do céu da Guiné mantêm-se como antes do 25 de Abril.
Já não encontrei a nudez daquele tempo, mas a pobreza não deve ser muito diferente.
As casas do tempo colonial estão muito abandonadas, mesmo que ainda ocupadas. O alcatrão estava a ser espalhado por mais ruas de Bissau.
A nova avenida entre Bissau e o aeroporto está rodeada de muitas casas de 3 e 4 pisos, com vários edifícios governamentais, para tribunais, para bancos, etc. Estes edifícios são muito bonitos.
Mas fora das ruas principais aparecem a terra batida, o lixo e as valas.
É pena que os partidos e o P República se não entendam. É pena que as pessoas sintam que há muita burocracia e que os funcionários não tenham mais rentabilidade.
Ser polícia é um posto e por vezes gostarão de complicar.
O povo é simpático e sorridente e conversa connosco sem qualquer problema.
A calma e o sorriso de quem abnegadamente  trabalha nas missões e obras católicas desarmam  quem possa estar de pé atrás ou aborrecido pelo calor ou pelas dificuldades.
Esta viagem foi um passeio um pouco duro, mas foram oito dias de alegria constante e contagiante entre todos nós.
Foi com alegre saudade que NAVegámos parte dos mares da Guiné e que VOámos nos seus ares.
Timóteo Moreira