quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

Do Monte Tabor ao Monte do Templo - Pe. Manuel João, MC

 Do Monte Tabor ao Monte do Templo

Ano B - Quaresma - 3º Domingo
João 2,13-25: “Não façais da casa de meu Pai casa de comércio!”

Eis-nos chegados ao terceiro domingo da Quaresma. Do deserto (para um encontro profundo connosco mesmos) subimos ao Tabor com Jesus (para um encontro transfigurador com Deus). Hoje subimos a Jerusalém, ao Templo do Senhor, para rever e purificar a nossa relação com Deus. Vamos com Jesus em peregrinação porque se aproxima a Páscoa, a festa por excelência, a festa da nossa libertação. 

A primeira Páscoa, o ponto de partida 

O evangelho que nos guia nesta visita ao Templo já não é Marcos, mas João. Curiosamente, o evangelista SJoão situa esta Páscoa no início da vida pública de Jesus, enquanto os sinópticos (Mateus, Marcos e Lucas) a situam no fim do seu ministério, alguns dias antes de ser condenado e crucificado. Para S. João é o ponto de partida, para os outros evangelistas é o ponto de chegada. Este facto não nos deve surpreender, se tivermos em conta que as narrativas estão alinhadas de acordo com o objetivo catequético de cada evangelho. Note-se também que só S. João nos fala de três Páscoas durante a vida pública de Jesus (cf. Jo 2,13; 6,4; 11,55), enquanto os sinópticos falam apenas de uma, a última. O relato de João é mais articulado e fornece-nos dados históricos valiosos, enquanto os sinópticos narram o evangelho de forma mais linear, como se todo o ministério de Jesus fosse orientado e se desenrolasse em função daquela única Páscoa da sua paixão, morte e ressurreição. 

Esta Páscoa é a que é conhecida como a da “purificação do Templo”. Jesus “encontrou no templo os vendedores de bois, de ovelhas e de pombas e os cambistas sentados às bancas”. Perante esta visão, Jesus enfureceu-se: “fez então um chicote de cordas e expulsou-os a todos do templo, com as ovelhas e os bois; deitou por terra o dinheiro dos cambistas e derrubou-lhes as mesas”. Nunca se tinha visto tal coisa desde o tempo dos profetas! O gesto de Jesus é um acto de provocação, um gesto profético de indignação. O profeta Malaquias (3,1-6) tinha dito que o Messias, “como o fogo da fundição e como a lixívia das lavadeiras”, purificaria o Templo e o culto. É por isso que os chefes religiosos lhe perguntam o significado desse gesto: “Que sinal nos dás de que podes proceder deste modo?”

A purificação do Templo do nosso coração

Qual é o significado profundo deste episódio para nós, hoje? Em que é que ele nos interpela? Limitar-me-ei a apresentar quatro aspectos.

1) A cólera do “Leão de Judá”. Estamos habituados a ver um Jesus “manso e humilde de coração” e, por isso, ficamos espantados e perplexos com a sua reação. Não nos apressemos a descrever esta cólera como “santa”, mas antes... saudável! Jesus, o Filho de Deus, é verdadeiro homem e conhece todos os nossos sentimentos de reação aos acontecimentos. Como é que este gesto deve ser interpretado? O evangelista oferece-nos a chave: “Os discípulos recordaram-se do que estava escrito: «Devora-me o zelo pela tua casa» (Salmo 69,10). Esta cólera de Jesus põe em causa uma certa atitude nossa de “pescoço torto” e “sem espinha dorsal”. Sim, ele é “o Cordeiro de Deus”, mas é também “o Leão de Judá” (Apocalipse 5,5), e assim devem ser os seus discípulos. O nosso problema é que, quando deveríamos ser “leões”, comportamo-nos como “cordeiros”, por medo e cobardia. Quando deveríamos ser “cordeiros”, comportamo-nos como “leões”, movidos pela violência e pela agressividade!

2) A combinação de Deus com o dinheiro! “Não façais da casa de meu Pai casa de comércio!”. Eis a denúncia profética de Jesus: o deus mamon tinha-se apoderado do Templo de Deus! A Páscoa era a grande ocasião para os negócios, para a venda de animais para os sacrifícios, para a troca de moeda, para os que vinham da diáspora, e do dinheiro que circulava no Templo, onde não se podia entrar com a moeda “profana” com a efígie do César. Além disso, era na Páscoa que entrava o imposto do Templo. Naqueles dias, corria um rio de dinheiro, gerido pela classe sacerdotal, especialmente pela família dos sumos sacerdotes, Anás e Caifás. Só para termos uma ideia, o Templo de Jerusalém era considerado o maior “banco” do antigo Médio Oriente. Não nos precipitemos e pensemos que esta denúncia não nos diz respeito ou, quando muito, diz respeito à Igreja institucional. Na realidade, todos nós corremos o risco de servir o deus dinheiro e que este ídolo ocupe o lugar de Deus nos nossos corações!

3) A era dos “sacrifícios” acabou! Tirai tudo isto daqui!”, diz Jesus aos vendedores, expulsando do Templo os animais para os sacrifícios. Mas, se não há animais, como é que se fazem os sacrifícios! Se não há cordeiro, como é que se celebra a Páscoa? A era dos sacrifícios acabou; é tempo de dar um passo em frente nesta religiosidade pagã que pretende agradar a Deus com sacrifícios. Deus é livre no seu amor; não quer sacrifícios, mas justiça, amor e compaixão! Não tomemos este passo por garantido. Todos somos tentados a pensar que Deus nos ama se... formos bons; se cumprirmos certos deveres; se formos à missa ao domingo! Certas práticas correm o risco de serem feitas com uma verdadeira mentalidade mercantil, uma forma de comprar o favor de Deus. Somos facilmente “religiosos”, mas somos lentos a ter fé!

4) Jesus, o novo Santuário. “Destruí este templo e em três dias o levantarei”, responde Jesus enigmaticamente aos chefes religiosos. Os seus discípulos só o compreenderão após a ressurreição: “Jesus, porém, falava do templo do seu corpo...” Jesus dirá à mulher samaritana: “Está a chegar a hora - e é agora - em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e verdade” (João 4,23). Jesus é o novo e definitivo Templo.Já não existe um espaço e um tempo sagrados que possam circunscrever a presença de Deus. No Novo Testamento, há a convicção de que o cristão está associado a este novo Templo e à nova liturgia. S. Pedro diz: “Como pedras vivas, sois também vós edificados como um edifício espiritual, para serdes sacerdócio santo e oferecerdes sacrifícios espirituais agradáveis a Deus por Jesus Cristo” (1 Pedro 2,5). S. Paulo diz também: “Não sabeis que sois o templo de Deus e que o Espírito de Deus habita em vós? Se alguém destruir o templo de Deus, Deus destruí-lo-á” (1 Coríntios 3,16-17). Actualmente, há uma consciência crescente de que não só o cristão, mas todos os homens e mulheres são um templo de Deus que deve ser respeitado!

Reflexão para a semana

1) Confrontar-se com os quatro aspectos acima mencionados para purificar o Templo do nosso coração. Peçamos ao Senhor que intervenha em nós com o “chicote” da sua Palavra!
2) Perguntemo-nos até que ponto cresceu em nós a consciência de que cada homem/mulher é o Templo de Deus.

P. Manuel João Pereira Correia, mccj
Verona, 28 de fevereiro de 2024

NB. Para a reflexão completa, ver: https://comboni2000.org/2024/02/28/la-mia-riflessione-domenicale-dal-monte-tabor-al-monte-del-tempio/ p.mjoao@gmail.com
https://comboni2000.org

 

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

7MARGENS E 7MONTES Frei Bento Domingues, O.P.

 

1. O Jornal digital 7Margens fez 5 anos no passado dia 7 de Janeiro. Em 2019, nasceu da vontade de um pequeno grupo de jornalistas especializados que encontrou eco entre vários grupos que, então, contactaram. Como eles próprios dizem, no horizonte deste jornal, estavam algumas preocupações: o cada vez menor lugar dado ao fenómeno espiritual e religioso pelos média generalistas; a falta de um espaço onde os crentes (sobretudo os católicos, expressão ainda maioritária no país) possam debater ideias, quer sobre o que se passa no interior das suas comunidades, quer sobre a relação da sua fé com a sociedade; a ausência de expressão pública das minorias religiosas; a falta de maior atenção a vários temas ligados aos direitos humanos, ao cuidado da casa comum e à justiça social[1].

É já uma referência na informação e no aprofundamento do debate religioso. Entretanto, mostrou a sua fecundidade com um novo título: 7Montes.

Este novo Jornal digital resultou de uma iniciativa sem fins lucrativos lançada pelo 7Margens e selecionada, no passado mês de Dezembro, para receber o financiamento do programa europeu Local Media for Democracy, destinado a servir comunidades locais que residam em áreas consideradas «desertos noticiosos». Centrado na realidade de Trás-os-Montes, o 7Montes pretende, através da difusão de notícias, histórias e realidades, «apoiar a capacidade de gerar futuro» naquela que é uma das regiões mais isoladas e esquecidas de Portugal[2].

2. De Trás-os-Montes, era o Frei Augusto José Matias (1947-2024), falecido no passado dia 17. Este dominicano nasceu na freguesia de Franco, concelho de Mirandela. Entrou na Ordem dos Pregadores (Dominicanos) a 4 de Agosto de 1965. Foi ordenado diácono em Maio de 1981.

O frei Matias viveu marcado por questões sociais. Foi animador cultural em bairros degradados integrado num projecto da UNESCO, para dois bairros – Curraleira (Lisboa), Estrada de Benfica (Amadora) – sobre «educação social, alfabetização, questões de higiene ambiental, planeamento familiar, além de outros apoios mais de circunstância». Para a mesma paisagem social, editou os Cadernos Libertar com uma metodologia, próxima de Paulo Freire, com o título, Isto tem que mudar.

Na sua configuração, a reflexão teológica era também uma preocupação constante. Entre 1977 a 1991 editou o jornal Libertar que apresentou deste modo: «Pretende dar notícia da Igreja portuguesa, textos de reflexão aproximada desses acontecimentos e tratar problemas mais importantes entre a Igreja e a política. Fazer textos simples sobre o Evangelho, teologia simples e popular».

Todas as celebrações da Eucaristia são uma resistência contra a morte, não morrerás. O Frei José Nunes, OP, foi o que nos disse no funeral do Frei Matias, lembrando-nos as muitas facetas da vida deste nosso Irmão.

O Frei Matias não precisou da vinda do Papa Francisco para entender e viver a recusa radical de estatutos de grandeza. Nem sequer quis ser padre e trabalhou silenciosamente, durante muitos anos, numa tipografia.

Lutou pela defesa da justiça e partilha de vida com os mais pobres. Foi militante antifascista, membro do CIDAC (que deu seguimento ao Boletim Anti-Colonial), activista em numerosos grupos de Justiça e Paz, trabalhador silencioso em bairros de barracas (as favelas de Lisboa…).

Simultaneamente, gastou grande parte dos seus anos a servir os irmãos nas comunidades de Lisboa, Barreiro ou Fátima, como ecónomo conventual, ecónomo provincial, Procurador das Missões, etc. Foi também, durante muitos anos, o grande animador do ISTA (Instituto São Tomás de Aquino).

Soube viver na alegria, dando alegria aos outros. Este filósofo e poeta dizia: «Eu rio-me do riso»! Mas não tolerava a solidão da sua mãe e, por isso, foi durante anos cuidar dela.

A este Irmão diz o livro do Apocalipse: «Bem-aventurados os que dormem no Senhor, porque agora descansam dos seus trabalhos e as suas obras os acompanham».

Não me admira a notícia de que existem várias iniciativas para não deixar morrer o seu exemplo.

3. No Domingo passado, quando me referi à Quaresma, foi na perspectiva e com as palavras do Papa Francisco: vencer com alegria as mil tristezas que nos assaltam.

O olhar inicial de Jesus não se dirigia ao pecado, mas ao sofrimento. Esta é a metáfora de todos os milagres: do paralítico, do coxo, do cego, do leproso, do defunto, etc. Para Ele, pecar era virar as costas ao sofrimento dos outros, negar-se a não estar junto de quem sofre.

A narrativa de S. Marcos, que a liturgia de hoje nos apresenta, mostra-nos uma igreja em movimento. Pedro, Tiago e João são figuras alteradas, modificadas e sempre expostas a novas transfigurações.

Estes discípulos preferiam o sossego do passado: Mestre, como é bom estarmos aqui! Façamos três tendas: uma para Ti, outra para Moisés, outra para Elias. Não sabiam o que diziam, pois estavam atemorizados. Veio então uma nuvem que os cobriu com a sua sombra e da nuvem fez-se ouvir uma voz: Este é o meu Filho muito amado: escutai-O. De repente, olhando em redor, não viram mais ninguém, a não ser Jesus, sozinho com eles. Ao descerem do monte, Jesus ordenou-lhes que não contassem a ninguém o que tinham visto, enquanto o Filho do homem não ressuscitasse dos mortos. Eles guardaram a recomendação, mas perguntavam entre si o que seria ressuscitar dos mortos[3].

A Ressurreição é considerada a expressão máxima da fé cristã. Repetimos isto muitas vezes, mas esquecemo-nos de perguntar o que é que isso significa. Significa que que não podemos consentir no mundo como ele está, tudo isto tem que mudar (Frei Matias). Acreditar na Ressurreição é uma forma de resistir à morte.

 

        25 Fevereiro 2024



[1] Cf. 7Margens, 06. 01. 2023

[2] Cf. Clara Raimundo, 7Margens, 24. 01. 2024

[3] C. Mc 9, 2-10

sábado, 24 de fevereiro de 2024

Livres. Para onde queremos ir? - Pe. Anselmo Borges, Prof de Filosofia

 Livres. Para onde queremos ir?

Anselmo Borges

24 fevereiro 2024

Aparentemente, não há nada que o ser humano tanto preze como a liberdade. Mas, tendo de

optar entre a segurança -- intelectual, espiritual, social, política, religiosa... -- e a liberdade,

não se sabe quantos ficariam do lado da liberdade e não da segurança.

Dostoiévski disse-o de modo ácido e também sublime num texto em que também se critica

a Igreja de Roma. Fá-lo em Os Irmãos Karamázov, no poema de Ivan com o nome O Grande

Inquisidor.

A história passa-se em Espanha, em Sevilha, nos tempos terríveis da Inquisição,

precisamente no dia a seguir a um “magnificente auto-de-fé” em que foram queimados de

uma assentada, na presença do rei, da corte, dos cardeais e das damas mais encantadoras da

corte e da numerosa população de Sevilha, quase uma centena de hereges. Cristo “apareceu,

devagarinho, sem querer dar nas vistas e... coisa estranha, toda a gente O reconhece.” Mas o

cardeal inquisidor aponta o dedo e manda que os guardas O prendam. E é num calabouço do

Santo Ofício que lhe diz que no dia seguinte O queima na fogueira como ao pior dos hereges.

E a razão é que a liberdade de fé tinha sido para Cristo a coisa mais preciosa. Não foi Ele que

disse tantas vezes: “Quero tornar-vos livres?”

Cristo, afinal, não percebeu que “o Homem não tem preocupação mais torturante do que

encontrar alguém em quem possa delegar o mais depressa possível a dádiva da sua

liberdade.” “Em vez de Te apoderares da liberdade das pessoas, acrescentaste ainda mais à

sua liberdade!”, diz-lhe o inquisidor. “Esqueceste-Te de que a tranquilidade e até a morte

são mais queridas para o Homem do que a escolha livre do bem e do mal? Não há nada mais

sedutor para o Homem do que a liberdade da sua consciência, mas também não há nada

mais torturante.” Assim, ao longo de quinze séculos, os hierarcas eclesiásticos corrigiram a

façanha de Cristo, baseando-a em milagre, mistério e autoridade. Agora, todos sabem em

que é que hão-de acreditar e o que é que hão-de fazer, sem terem de perguntar porquê nem

de escolher. “E as pessoas ficaram contentes por serem de novo guiadas como um rebanho e

por ter sido tirada dos seus corações a dádiva terrível que tanto sofrimento lhes causava.”

Como única resposta o prisioneiro beijou-o, e o velho cardeal vai até à porta, abre-a e diz:

“Vai-te embora e não voltes mais... não voltes... nunca, nunca!”.

O ser humano angustia-se com a liberdade. Porque ser livre quer dizer ser senhor de si e

dos seus actos e ter de escolher e ter de responder por si e pelo mundo e pelos outros. Ter

de escolher é para o ser humano, que quer tudo e todos os caminhos, ter de escolher algo e

um caminho só de cada vez e ter de renunciar a tantas outras possibilidades, sem poder

ficar com tudo, na consciência disso. Ser livre quer dizer entrar na urgência de um projecto

e poder falhar e, num tempo irreversível, que inexoravelmente caminha para a morte,

nunca mais ter tempo para remediar, para refazer, para fazer outra coisa e um ser si mesmo

outro: é tudo sempre pela primeira e última vez, sem ensaios...

A angústia da liberdade e da responsabilidade e a busca falaz da segurança explicam a

facilidade da entrega a poderes totalitários, a seitas cegas, a colonizadores de corpos e de

almas, a vendedores de “verdades e certezas” tapadas e irracionais.

A liberdade é condição de possibilidade da ética. Mas até do ponto de vista da raiz

etimológica grega -- ethos com épsilon e ethos com eta, que significam, respectivamente,

acção, costume, modo habitual de agir, e toca do animal, morada, casa -- se diz que a questão

ética é indissociável da pergunta pela nossa morada enquanto horizonte de sentido, pátria

onde se quer habitar. Sim! Afinal, para onde queremos ir? Na presente situação de

hecatombe político-moral no país e no mundo, para onde vamos sem uma conversão ética?

Ao contrário do animal, que vem ao mundo já feito e age no quadro de uma rede de

instintos, o homem vem ao mundo praticamente desarmado de instintos e aberto a

possibilidades sem conta e tendo de fazer-se a si mesmo no mundo com os outros. Pode

escolher entre esta e aquela possibilidade, até tem a capacidade de não escolher, mas quem

tenta escolher não escolher também escolhe. De qualquer modo, é capaz de erguer-se a si

mesmo acima do simplesmente agradável ou útil e colocar-se no lugar do outro. Transcende

os interesses particulares da natureza e enquanto ser racional dá a si mesmo de modo

autónomo a lei moral universal que é a lei da liberdade. Kant formulou-a nestes termos:

“Age segundo uma máxima que queiras ao mesmo tempo que se transforme em lei

universal de acção”, ou então: “Trata a humanidade em ti e nos outros sempre como fim e

nunca como simples meio.”

Sem capacidade moral e liberdade -- a liberdade é a condição de possibilidade da

moralidade e, consequentemente, da responsabilidade --, o Homem não seria digno de

louvor nem estaria sujeito à censura, e não haveria distinção entre o bem e o mal. Como

escreveu o filósofo Luc Ferry, “um materialismo consequente deveria limitar-se, sempre, a

uma ‘etologia’, sem nunca falar de moral a não ser como uma ilusão mais ou menos

necessária, fazendo parte do real mas, sem embargo, enganadora”. Embora condicionado, só

porque não é completamente subordinado nem guiado pela natureza é que o ser humano

“pode cometer excessos, quer no mal (o ódio e a maldade) quer no bem (o amor e a generodidade.

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

Domingo das Três Montanhas - Pe.Manuel João, mc

 Domingo das Três Montanhas - Ano B - Quaresma - 2º Domingo 

Mateus 9,2-10: "Rabi, é bom para nós estarmos aqui!"

No domingo passado, o Espírito Santo conduziu-nos com Jesus ao deserto para enfrentarmos "os nossos demónios" e sairmos vitoriosos como Jesus, o novo Adão. A luta não acabou, os demónios voltarão "no momento oportuno", mas não podemos ficar aqui. O nosso caminho quaresmal inclui várias etapas, seis para ser exato, tantas quantas os domingos da Santa Quaresma. 

1. Do deserto para a montanha

Se no primeiro domingo da Quaresma lhe chamámos "das tentações", no segundo poderíamos chamar-lhe "das montanhas". De facto, a primeira leitura fala do monte Mória, onde Abraão tinha ido oferecer o seu filho Isaac, um monte que a tradição identificou com o monte do Templo de Jerusalém. No evangelho, trata-se de "um monte alto", da Transfiguração, que a tradição considera ser o monte Tabor, na Galileia. No fundo destes dois, vislumbramos um terceiro monte: o Gólgota! 

Hoje o Senhor leva-nos consigo e conduz-nos a esse "alto monte" do Tabor. Talvez alguns de nós já lá tenham estado e apreciado a vista ampla e bela que oferece. Hoje, porém, não vamos lá como turistas ou caminhantes, nem sequer como peregrinos. Vamos lá como discípulos, personificados pelos três amigos íntimos de Jesus: Pedro, Tiago e João. Para o podermos fazer, temos de nos identificar com a sua situação. Estão a atravessar um mau momento de crise. Seis dias antes, tinham feito a sua profissão de fé. À pergunta de Jesus: "Quem dizes que eu sou?", Pedro tinha respondido em nome de todos: "Tu és o Cristo!". Jesus, no entanto, tinha-os gelado com um anúncio sem precedentes, dizendo-lhes que não era o Messias que esperavam, mas que o esperavam o sofrimento e a morte, antes de ressuscitar ao terceiro dia. Pedro sentiu-se obrigado a admoestá-lo, afastando-se, mas Jesus repreendeu-o duramente diante de todos: "Para trás de mim, Satanás!" Depois, com uma atitude de grande desprendimento que entristeceu profundamente o coração de todos, disse: "Se alguém quiser vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me!”. Como se dissesse: ou isso ou vai para casa, és livre! O escândalo da cruz foi a primeira grande tentação do discípulo!

Podemos imaginar como foi difícil e cansativa a subida da montanha. Não tanto pela subida de cerca de 500 metros - com Jesus tinham-se tornado grandes caminhantes! - mas por causa do pesado lastro que levavam no coração. É uma experiência que também nós conhecemos, a não ser que tenhamos levado a sério esta palavra de Jesus na cruz! 

2. O mistério do Rosto e dos rostos!

Ouvimos do Evangelho a narração do que aconteceu na montanha: uma experiência apaixonante de beleza e de luz; de encontro entre o humano e o divino; de diálogo entre a Palavra (Cristo) e a Torah (Moisés) e os Profetas (Elias); de admiração sagrada ao entrar na nuvem luminosa; de escuta da Voz que proclama: "Este é o meu Filho, o Amado: escutai-o!"... É uma antecipação da experiência da ressurreição de Jesus e da nossa bem-aventurança! 

Esta experiência não está reservada a alguns escolhidos, mas é oferecida a cada um de nós. É certo que de uma forma mais humilde, mas nem por isso menos verdadeira. Sem ela, a fé ficaria privada da alegria do Evangelho e a vida cristã tornar-se-ia um fardo insuportável. A Quaresma é um tempo propício para fazer esta experiência. Mas sob certas condições! Antes de mais, é preciso ter a coragem de deixar a "planície" e enfrentar a subida da montanha. Depois, parar durante muito tempo no cume, em oração de contemplação. Isto dá-nos uma perspetiva totalmente nova da existência. Por fim, descemos ao vale renovados para retomar a vida com novo vigor, guardando no coração a Luz e a Palavra desse encontro. A Transfiguração é um ícone de oração. Na iconografia oriental, o ícone da Transfiguração é o verdadeiro exame do iconógrafo, porque todos os outros ícones são iluminados pela luz do Tabor!

A fonte desta luz é o rosto de Cristo. "O seu rosto brilhava como o sol", diz Mateus (17,2). Todos nós procuramos esse rosto, como diz o salmista: "O teu rosto, Senhor, eu procuro! (Salmo 23). Esse rosto revela-nos a nossa identidade mais profunda, o nosso verdadeiro rosto, por detrás das muitas máscaras e maquilhagens. Desse encontro, saímos transfigurados, com o rosto radiante, como Moisés ao sair da presença de Deus (Êxodo 34,35). 

Só quem contemplou a beleza desse Rosto pode reconhecê-lo também no "Ecce Homo" e em todos os rostos marcados pelo sofrimento e pela injustiça e, por isso, trabalhará para secar as lágrimas e curar as feridas dos que sofrem! 

3. De cruz em cruz ou de glória em glória?

A vida cristã é uma experiência de transfiguração contínua até à transfiguração final da ressurreição. Considero muito eloquente um texto de S. Paulo: "E todos nós, com o rosto descoberto, reflectindo como um espelho a glória do Senhor, estamos a ser transformados nessa mesma imagem, de glória em glória, segundo a ação do Espírito do Senhor". (2 Coríntios 3:18). 

Esta visão paulina da vida do cristão contrasta com o nosso entendimento da fé como um vaguear de cruz em cruz para chegar ao céu. Em vez disso, Paulo diz-nos que vamos de transfiguração em transfiguração, de glória em glória, até à Transfiguração final. Esta é uma visão muito mais bela e desafiante da vida cristã!

Para uma reflexão pessoal esta semana 

1) Retomar a segunda leitura: Romanos 8,31-34.

2) Compare a tua compreensão da vida cristã com a de Paulo.

3) Sentes que cultivas momentos de exposição à luz do Rosto de Cristo?

P. Manuel João Pereira Correia, Comboniano

Verona, 21 de fevereiro de 2024

NB. Para uma reflexão completa ver:

https://comboni2000.org/2024/02/21/la-mia-riflessione-domenicale-domenica-dei-tre-monti/

domingo, 18 de fevereiro de 2024

Jesus: o poder e a autoridade Anselmo Borges 17 fevereiro 2024

 Jesus: o poder e a autoridade

Anselmo Borges
17 fevereiro 2024

Terminada a festa do Carnaval, os cristãos entram na Quaresma: 40 dias de mais profunda
meditação, de mais intensa conversão, de amor mais vivo e perfeito, em ordem a poder
celebrar com mais dignidade a Páscoa do Senhor enquanto passagem da escravidão à
liberdade, da morte à vida.

Logo na quarta-feira de cinzas, é dita a cada um, a cada uma, ao mesmo tempo que lhe é
colocada cinza na cabeça em sinal de humildade e exigência de reflexão, aquela palavra de
Jesus no início da sua pregação: “Convertei-vos e acreditai no Evangelho”, a Boa Nova,
notícia boa e felicitante.

De modo significativo, no primeiro Domingo da Quaresma, lê-se a passagem
do Evangelho referente às tentações de Jesus. Ora, é importante que se diga que as três
tentações estão todas referidas ao poder: poder económico, poder político, poder religioso.
Jesus, antes de iniciar a sua vida pública, foi para o deserto rezar, meditar, e tinha de decidir
se queria ser um Messias político, do poder, ou um Messias do amor, do serviço. Foi por esta
segunda alternativa que seguiu: “Eu não vim para ser servido, mas para servir”, e servir até
dar a vida.

Essencial: a única verdadeira tentação, segundo o Evangelho, é a do poder, no sentido da
dominação. Evidentemente, em qualquer sociedade o poder é inevitável. Toda a questão
consiste em saber como é que ele é exercido e com que finalidade. Quantos se lembram que
Ministro, na sua etimologia, significa pura e simplesmente servente, aquele que serve?
Primeiro-Ministro é o que está à frente no serviço. Jesus disse aos discípulos, portanto,
também ao Papa, bispos, cardeais, padres: “Sabeis que os chefes das nações governam-nas
como seus senhores. Não seja assim entre vós; pelo contrário, quem quiser fazer-se grande
entre vós seja vosso servo.”

Jesus renunciou ao poder enquanto domínio, mas é referido frequentemente
no Evangelho que ensinava com autoridade. A palavra autoridade vem do verbo
latino augere, que significa aumentar. Ter autoridade tem, portanto, a ver com fazer crescer,
aumentar no ser. Cá está: servir. O poder legitima-se enquanto serviço de fazer crescer na
liberdade e na dignidade... Presidentes, ministros, bispos, jornalistas, pais, professores,
padres, polícias... exercem legitimamente o poder enquanto autoridade, quando ele faz
crescer...

Assim, não são apenas os súbditos que devem obedecer. A palavra obediência também tem
a sua origem no latim: obaudire, que significa ouvir. Então, os que têm poder são os
primeiros a ter de obedecer, isto é, a ter de ouvir aqueles que precisam que lhes seja feita
justiça, ouvir a própria consciência, ouvir o apelo de todos aqueles que clamam por mais
liberdade e dignidade... Não há superiores e inferiores. Há apenas homens e mulheres iguais
em dignidade. E alguns estão constituídos em poder, que devem exercer como serviço a
essa dignidade inviolável.
"Jes
us renunciou ao poder enquanto domínio, mas é referido frequentemente no
Evangelho que ensinava com autoridade." Foto: D.R. / Freepik
É curioso: quando se fala em tentações, o que vem normalmente à ideia é a tentação da
carne, isto é, a tentação do sexo... Ora, sintomaticamente, Jesus também foi tentado, mas
nenhuma das tentações se refere ao sexo; as tentações estão todas em conexão com o poder,
com o domínio. Neste contexto, tenha-se presente o velho debate entre Freud e Adler:
enquanto, segundo Freud, a pulsão humana fundamental está referida à libido e
essencialmente ao prazer sexual, para Adler, essa pulsão tem a ver essencialmente com a
auto-afirmação, com a vontade de poder. Ora, neste diferendo, é bem possível que seja
Adler quem tem mais razão. Afinal, pensando bem, a própria sexualidade só constitui desvio
quando alguém é utilizado como meio de prazer, quando a pessoa é instrumentalizada e
coisificada.
Não; a grande tentação da Igreja, ao longo da sua história, foi e é o poder. Talvez isso
explique até porque é que, no catálogo dos pecados, o sexo teve não só o predomínio, mas
parecia, inclusivamente, deter a exclusividade do pecaminoso: no fundo, aninhava-se aí o
medo de que o prazer subvertesse o poder... A tentação do poder nas Igrejas é tanto mais
perigosa e deletéria quanto pretendam controlar, aprisionar o Sagrado e o Divino.
Escreveu, com razão, Miguel Baptista Pereira: “Perdido o sentido do Mistério, instala-se a
‘indoutrinação’ e a administração definitiva do Absoluto e consagra-se a intangibilidade dos
seus burocratas, não fosse dilema humano o serviço do Mistério ou a vontade ilimitada de
poder.”

O MESMO POR CAUSA DO DIFERENTE Frei Bento Domingues, O.P.

 

1. É uma alegria poder continuar a viver o começo de uma nova Quaresma com o Papa Francisco, fora da cadeia, em liberdade para todos.

Em vez de uma indiferença globalizada, ele representa o acordar contínuo para novas realidades, semeando uma nova esperança.

Geralmente, a Quaresma apresenta-se como a face triste da vida humana e da vida cristã. Este ano, o Papa sublinha que devemos abandonar as coisas que nos escravizam, nos amarram, que não nos deixam ser cristãos para a aventura de um mundo que ainda não sabemos como será o seu novo rosto.

E lembra-nos o que Jesus disse aos seus discípulos: «Não mostreis um ar sombrio, como os hipócritas, que desfiguram o rosto para que os outros vejam que eles jejuam».

Pelo contrário, veja-se a alegria nos rostos, sinta-se o perfume da liberdade, irradie aquele amor que faz novas todas as coisas, a começar das mais pequenas e próximas. Isto pode acontecer em toda a comunidade cristã.

O êxodo da escravidão para a liberdade não é um caminho abstrato. Exige e provoca um novo olhar para a realidade que nos cerca. E qual é essa realidade? O Papa aponta-a com um paradoxo: Tendo nós chegado ao limiar da fraternidade universal e a níveis de progresso científico, técnico, cultural e jurídico capazes de garantir a todos a dignidade, como é que tateamos, ainda, na escuridão das desigualdades e dos conflitos?

Para superar este paradoxo, devemos rever os nossos critérios de vida: o que é que conta mais para escolher e realizar?

Isto comporta uma luta: assim no-lo dizem claramente o livro do Êxodo e as tentações de Jesus no deserto. Com efeito, à voz de Deus, que diz «Tu és o meu Filho amado» e «não haverá para ti outros deuses na minha presença», contrapõem-se as mentiras do inimigo. Mais temíveis que o Faraó são os ídolos. Poderíamos considerá-los como a voz do inimigo dentro de nós. Poder tudo, ser louvado por todos, levar a melhor sobre todos: todo o ser humano sente dentro de si a sedução desta mentira.

Existe uma nova humanidade, o povo dos pequeninos e humildes que não cedeu ao fascínio da mentira. Enquanto os ídolos tornam mudos, cegos, surdos, imóveis aqueles que os servem, os pobres em espírito estão imediatamente disponíveis e prontos: uma força silenciosa de bem que cuida e sustenta o mundo.

2. É tempo de agir e, na Quaresma, agir é também parar: parar em oração, para acolher a Palavra de Deus, e parar como o Samaritano em presença do irmão ferido. O amor de Deus e o do próximo formam um único amor. Não ter outros deuses é parar na presença de Deus, junto da carne do próximo.

Nessa presença, tornamo-nos irmãs e irmãos, sentimos os outros com nova intensidade. Em vez de ameaças e de inimigos encontramos companheiras e companheiros de viagem. Tal é o sonho de Deus, a terra prometida para a qual tendemos, quando saímos da escravidão.

A forma sinodal da Igreja, que estamos a redescobrir e cultivar nestes anos, sugere que a Quaresma seja também tempo de decisões comunitárias, de pequenas e grandes opções contracorrente, capazes de modificar a vida quotidiana das pessoas e a vida de toda uma coletividade: os hábitos nas compras, o cuidado com a criação, a inclusão de quem não é visto ou é desprezado. Convido toda a comunidade cristã a fazer isto: oferecer aos seus fiéis momentos para repensarem os estilos de vida; reservar um tempo para verificarem a sua presença no território e o contributo que oferecem para o tornar melhor.

Na medida em que esta Quaresma for de conversão, a humanidade extraviada sentirá um abalo de criatividade, o lampejar de uma nova esperança. Quero dizer-vos, como aos jovens que encontrei em Lisboa no verão passado: «Procurai e arriscai; sim, procurai e arriscai. Neste momento histórico, os desafios são enormes, os gemidos dolorosos: estamos a viver uma terceira guerra mundial feita aos pedaços. Mas abracemos o risco de pensar que não estamos numa agonia, mas num parto; não no fim, mas no início dum grande espetáculo. E é preciso coragem para pensar assim». É a coragem da conversão, da saída da escravidão. A fé e a caridade guiam pela mão esta esperança menina. Ensinam-na a caminhar e, ao mesmo tempo, ela puxa-as para a frente[1].

3. A minha passada presença em Moçambique não me autoriza a fazer uma leitura crítica do livro, Moçambique, da Colonização à Guerra Colonial. A Intervenção da Igreja Católica, escrito por Amadeu Araújo e Manuel Vilas Boas[2], que recebi, precisamente, no primeiro dia desta Quaresma.

Existem vários estudos e reportagens sobre Moçambique. Não é um mundo totalmente desconhecido, mas dir-se-á que ainda não está suficientemente estudado para se poder avaliar o trabalho destes dois autores.

Neste novo livro, os autores falam, com ênfase, da primeira potência colonial a chegar a África e a última a sair – Portugal. Razões de natureza política, económica e histórica explicarão este desalinhamento com os demais Estados europeus. O modo atribulado como a colonização se processou, ajudará a compreender a conturbada descolonização. O caso de Moçambique parece paradigmático.

Não parece correcto afirmar que os interesses que moveram as caravelas portuguesas até ao Oriente eram diferentes dos que levaram as naus dos demais povos europeus para as mesmas paragens. A sede do lucro era, certamente, tão forte como o vento que soprava nas velas de uns e outros. Cremos, porém, que os marinheiros, criadores e corajosos que, pela primeira vez na história da Humanidade, dobraram o Cabo a sul do Continente africano, e que contribuíram decisivamente para o avanço da ciência, eram movidos por outras preocupações, além da mera ganância mercantilista. Aos historiadores pertence a investigação destes assuntos.

Eu só posso declarar a alegria que a sua leitura me proporcionou e o desejo de ver esta obra em muitas mãos. Sobretudo, que ela alimente a preocupação por um Cabo Delgado verdadeiramente independente. A Igreja deve continuar a ser a voz dos sem voz, do povo explorado, em nome da religião.

No meu entender, é fundamental não deixar adormecer a consciência dos portugueses em relação a esta tragédia.

A pergunta que devemos fazer no começo e no fim desta Quaresma é a seguinte: como estão os nossos irmãos em Cabo Delgado? Qual o nosso contributo para que eles saiam da escravidão em que se encontram?

 

        18 Fevereiro 2024



[1] Cf. Mensagem do Papa Francisco para a Quaresma 2024, www.vatican.va

[2] Amadeu Araújo e Manuel Vilas Boas, Paulinas, 2024

Domingo das Tentações - Pe. Manuel João , mc

 Domingo das Tentações 

Ano B - Quaresma - 1º Domingo: Marcos 1,12-15: "O Espírito conduziu Jesus para o deserto".

Com a imposição das cinzas na passada quarta-feira, entrámos na Quaresma. Tal como o Advento, que nos prepara para o Natal, a Quaresma é chamada um "tempo forte" que nos convoca, como povo, a iniciar um caminho de êxodo, em direção à Páscoa! 

1. A Quaresma, tempo de empenhamento e de graça!

A Quaresma é um tempo de empenhamento, sim, mas é sobretudo um tempo de graça (por isso é "forte"!), uma nova oportunidade, um "kairos", um tempo privilegiado, propício a um renascimento, a uma vida mais luxuriante. A Quaresma é um regresso às fontes da nossa vida cristã, ao nosso batismo, às nossas origens!

A Quaresma é um tempo "religioso", um tempo de exercício e de ginásio espiritual, sim, mas é também uma proposta muito humana, porque cada homem, cada mulher traz dentro de si o desejo de uma existência mais autêntica, mais livre. Cada um sente a necessidade de ter periodicamente a sua própria "Quaresma" para poder levar uma vida mais livre dos muitos constrangimentos sociais que nos impõem uma existência frenética e nos impedem de discernir o essencial do supérfluo. A Quaresma é um caminho de libertação do nosso "eu", sufocado por tanta tralha, para respirar o ar fresco da liberdade! 

É por isso que a Quaresma não é um fardo que se acrescenta à nossa agenda já sobrecarregada (ai, a Quaresma outra vez!), mas uma lufada de ar fresco, para ser vivida com o entusiasmo de quem parte para uma caminhada na montanha, com uma mochila leve às costas. Partir com a alegria e o entusiasmo de uma caminhada por um caminho de paisagens novas e surpreendentes. Se o seu coração não vibra com esta perspetiva e não sente um frenesim saudável para iniciar esta caminhada de quarenta dias, então esqueça, não é para si!

2. Das cinzas ao fogo!

A liturgia faz-nos iniciar a Quaresma com um sinal muito forte: a imposição das cinzas! As cinzas reflectem a nossa realidade: uma vida monótona e residual, de sonhos e esperanças desaparecidas, de uma rotina monótona, pontuada por necessidades e deveres, sem nada que possa suscitar um entusiasmo e uma alegria duradouros, capazes de resistir ao impacto das provações da nossa existência. Talvez o fogo ainda arda sob as cinzas, mas esse fogo não aceso está a apagar-se e ameaça extinguir-se. Precisamos de um sopro de ar forte e decidido para varrer as cinzas e reacender o fogo. É esta a obra do Espírito que está a atuar intensamente neste tempo santo, para nos conduzir ao Fogo Novo da Noite de Páscoa!

3. Domingo das Tentações

O evangelho do primeiro domingo da Quaresma apresenta-nos sempre o episódio das tentações,segundo os três evangelhos sinópticos. Jesus, logo após o batismo, que marca o ponto de viragem da sua vida e missão, é conduzido pelo Espírito ao deserto da Judeia, perto do Mar Morto. Ali, satanás, "o adversário", espera-o! 

Este ano lemos a versão de Marcos, a mais antiga e, por isso, extremamente concisa. De facto, o episódio das tentações é narrado em apenas dois versículos: "O Espírito conduziu Jesus ao deserto e, durante quarenta dias, foi tentado por satanás. Estava com os animais selvagens e os anjos serviam-no". Enquanto Mateus e Lucas falam do conteúdo das tentações, Marcos limita-se a dizer que Jesus foi "tentado por satanás". As tentações surgirão durante o seu ministério e todas se referem ao messianismo de Jesus que passa pela cruz. As três tentações, de facto, encontramo-las na cruz (Marcos 15,29-32): a primeira, na boca dos transeuntes, isto é, do povo: "Salva-te a ti mesmo, descendo da cruz!"; a segunda, na boca dos chefes religiosos: "O Cristo, o rei de Israel, desce agora da cruz, para que vejamos e acreditemos!"; a terceira, na boca dos malfeitores, que Lucas atribui a um deles: "Não és tu o Cristo? Salva-te a ti mesmo e a nós!". Portanto, só há uma tentação, que conhecemos bem: "Salva-te a ti mesmo!". Esta é a voz de satanás! É a voz do egoísmo em todas as suas formas. Jesus, pelo contrário, encarna "o amor maior", o de "dar a vida" pelos irmãos.

4. Do deserto da tentação ao Éden redescoberto

Marcos diz: "Estava com as feras e os anjos serviam-no". Cristo é o "novo Adão", o primogénito de uma humanidade reconciliada e em plena harmonia com a natureza e o Criador. O Espírito tinha-o "empurrado para o deserto" (é este o sentido do texto), tal como os nossos antepassados tinham sido expulsos do paraíso. Depois da experiência da intimidade trinitária, Jesus é "empurrado para fora" para enfrentar a dureza da vida, em extrema solidariedade com a nossa humanidade. O Espírito Santo não mantém o crente "aconchegado", talvez numa "igreja-fortaleza" ao abrigo de todo o risco, mas lança-o no meio do mundo, na luta, onde a batalha contra o mal é mais acesa. 

Depois desta experiência, Jesus está pronto para se tornar o novo Moisés que, através do deserto, conduz o seu Povo à Terra Prometida. O novo Êxodo é proclamado com este anúncio: "O tempo está cumprido e o Reino de Deus está próximo; arrependei-vos e acreditai no Evangelho". Este é "o tempo", ou seja, esta Quaresma! "O Reino de Deus está próximo", isto é, uma nova humanidade é possível e a gestação dos "novos céus e uma nova terra, onde habita a justiça" (2 Pedro 3,13) já começou, apesar de todos os sinais em contrário. Este é o evangelho, a boa nova! Qual é, por outro lado, a conversão necessária? Colaborar para que o deserto volte a ser um jardim! Uma história muçulmana diz: "No princípio, toda a terra era um jardim em flor. Deus, ao criar o homem, avisou-o de que, sempre que cometesse uma falta, lançaria do céu um grão de areia para o avisar. Os homens, porém, não deram importância. Afinal, o que é um grão de areia? Assim, grão após grão, os desertos invadiram a terra!" Qual é a nossa tarefa agora? Apanhar a areia e plantar nela uma flor! Este é o exercício quaresmal: onde reina o deserto, criado pelo egoísmo e produzido pelo satânico "salva-te a ti mesmo!", cavar e plantar um verdadeiro gesto de amor. Assim, grão após grão, semente após semente, os desertos do mundo florescerão! 

Para a reflexão semanal

1) Preparar o programa da Quaresma. Simples, como um lembrete constante para aproveitar este "tempo forte" de graça.

2) Ler e meditar a bela e inspiradora homilia do Papa na passada quarta-feira. Ou a sua mensagem para a Quaresma.

 

P. Manuel João Pereira Correia

Verona, 16 de janeiro de 2024

P. Manuel João Pereira Correia mccj

p.mjoao@gmail.com

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2024

JESUS CRISTO, PARÁBOLA DE DEUS Frei Bento Domingues, O.P.

 

1. Teologia e literatura não são universos estranhos. Reconheço-me, sem dificuldade, no artigo que Alex Villas Boas escreveu sobre as relações entre teologia e literatura, a procura de Deus na procura do sentido humano. A literatura bíblica pode ser vista como um grande testemunho dessa procura e até como abertura de muitos itinerários.

Neste sentido, Jesus Cristo é a própria Theopoiésis, ou seja, poesia de Deus, pois é afectado pelo pathos divino e humano. As parábolas e as curas de Jesus são expressão do Mistério da Sua vida de comunhão com Deus e abertura de um caminho para essa comunhão libertadora[1].

Como escreveu José Augusto Mourão, O.P., enquanto não sabemos o caminho, cantemos já o dom de caminhar; se estamos juntos, não teremos medo, alguém no invisível nos espera. Plantemos flores à beira do abismo, há-de haver no deserto um lugar de água, alguém que nos chame pelo nome e nos acolha no termo da viagem.

2. Jesus de Nazaré subverteu a cultura da exclusão. A noção de puro e impuro ligava a religião, a doença e a cura. A grande peça litúrgica deste Domingo é um texto de S. Marcos constituído por um diálogo desafiante.

Um leproso veio ter com Jesus, caiu de joelhos e suplicou: Se quiseres, tens poder para me curar. Compadecido, Jesus estendeu a mão, tocou-o e disse: Quero, fica curado. Imediatamente a lepra o deixou e ficou curado. Logo o despediu, dizendo-lhe em tom severo: Livra-te de falar disto a alguém; vai, antes, mostrar-te ao sacerdote e oferece pela tua cura o que foi estabelecido por Moisés, a fim de lhes servir de testemunho. Ele, porém, assim que se retirou, começou a proclamar e a divulgar o sucedido, a ponto de Jesus não poder entrar abertamente numa cidade; ficava fora, em lugares despovoados. E de todas as partes iam ter com Ele[2].

O Novo Testamento (NT) foi buscar ao livro do Levítico, a classificação de puro e impuro, aplicada a animais e a seres humanos, resultado de alguma imperfeição ou doença que neles se possa encontrar. Santo, que quer dizer saudável, puro, verdadeiramente Santo, é só o três vezes Santo, Deus.

Existia uma ciência e uma técnica, no mundo judaico, para se saber quem estava afectado por alguma impureza e como se tratava essa situação. Se o sacerdote, examinando-o, observar que a inflamação da chaga, sobre a parte posterior ou anterior da cabeça, é branca-avermelhada, revestindo-se do aspecto da lepra sobre a pele do corpo, essa pessoa era considerada leprosa, era impura; o sacerdote declará-la-ia impura. E o leproso atingido por tal afecção deveria rasgar as roupas, desalinhar o cabelo, tapar-se até à boca e gritar: Impuro!... Impuro! Enquanto conservar a chaga, será impuro, viverá isolado e a sua residência será fora do acampamento[3].

Era o mundo classificado das doenças e das curas, mas o próprio do NT é a apresentação de Jesus como libertador. Era a passagem de um mundo ameaçado para a libertação humana e espiritual, resultado do inconformismo de Jesus com o reino da fatalidade.

O que Deus pode ou não fazer não é da nossa competência. Em qualquer dos casos, Deus convoca-nos, a todos, a participar na cura uns dos outros, como no caso do paralítico, que estava à beira da piscina (Jo 5, 1-17), precisando de alguém que o lançasse à piscina quando as águas se agitavam. Na saúde e na doença, estamos sempre dependentes uns dos outros.

3. A pior situação em que o ser humano se pode encontrar é a do isolamento, não tendo a quem recorrer, e é uma situação vastíssima, desde que o mundo é mundo. O próprio Deus declarou que não é conveniente que o homem esteja só (Gn 2, 18). Deus, que é amor, criou o ser humano para a comunhão, inscrevendo no seu íntimo a dimensão das relações. Assim, a nossa vida, plasmada à imagem da Trindade, é chamada a realizar-se plenamente no dinamismo das relações, da amizade e do amor mútuo. Fomos criados para estar juntos, não sozinhos. E precisamente porque este projecto de comunhão está inscrito tão profundamente no coração humano, a experiência do abandono e da solidão atemoriza-nos e olhamo-la como dolorosa, desumana. E isto agrava-se ainda mais no tempo da fragilidade, da incerteza e da insegurança, causadas muitas vezes pelo aparecimento de alguma doença grave, ou em situações de exclusão, como aconteceu no período da pandemia.

Ao mesmo tempo, diz o Papa, associo-me, pesaroso, à condição de sofrimento e solidão de quantos, por causa da guerra e suas trágicas consequências, se encontram sem apoio nem assistência: a guerra é a mais terrível das doenças sociais e as pessoas mais frágeis pagam-lhe o preço mais alto.

Contudo, é preciso assinalar que, mesmo nos países que gozam da paz e de maiores recursos, o tempo da velhice e da doença é vivido frequentemente na solidão e, por vezes, até no abandono. Esta triste realidade é consequência sobretudo da cultura do individualismo, que exalta a produção a todo o custo e cultiva o mito da eficiência, tornando-se indiferente, e até implacável, quando as pessoas já não têm as forças necessárias para lhe seguir o passo. Torna-se então cultura do descarte, na qual, as pessoas já não são vistas como um valor primário a respeitar e tutelar, especialmente se são pobres ou deficientes, se “ainda não servem”, como os nascituros, ou “já não servem”, como os idosos (Fratelli tutti, 18).

Esta lógica permeia também, infelizmente, certas opções políticas, que não conseguem colocar, no centro, a dignidade da pessoa humana com as suas carências e nem sempre proporcionam as estratégias e recursos necessários, para garantir a todo o ser humano o direito fundamental à saúde e o acesso aos cuidados médicos. Ao mesmo tempo, o abandono das pessoas frágeis e a sua solidão acabam favorecidos ainda pela redução dos cuidados médicos apenas aos serviços de saúde, sem serem sabiamente acompanhados por uma aliança terapêutica entre médico, paciente e familiar[4].

Não só neste Dia Mundial dos Doentes, mas sempre, os doentes, os frágeis, os pobres devem estar no coração de todos, todos, no centro das nossas solicitudes humanas e cuidados pastorais.

 

 

11 Fevereiro 2024



[1] Cf. Alex Villas Boas, Teologia e Literatura, in Cenáculo, Revista dos Alunos da Faculdade de Teologia – Braga, nº 222, pp. 51-61

[2] Mc 1, 40-45

[3] Cf. Lev 13, 1-46

[4] Cf. Mensagem do Papa para o Dia Mundial do doente, www.vatican.va