domingo, 30 de junho de 2019

ESPIRITUALIDADE, MAS QUE ESPIRITUALIDADE? Frei Bento Domingues, O.P.


1. Será verdade que, no Ocidente, as religiões com os seus dogmas, catecismos, normas morais, esgotaram o prestígio que lhes atribuíram ao longo dos séculos? Ou será apenas a violência, em nome de Deus, que as desacreditou? Seja como for, a religião ganhou às religiões, a religiosidade ganhou à religião, a espiritualidade parece ganhar à religiosidade. O mercado das espiritualidades ganhou ao das religiões a la carte. As espiritualidades e sabedorias do Oriente tiveram um acolhimento inesperado no Ocidente. Mesmo no campo católico, repete-se que o século XXI ou se torna místico ou está perdido.

Quem anuncia um curso de teologia não pode esperar grande adesão, mas se propõe um curso sobre uma espiritualidade desconhecida, e quanto mais desconhecida melhor, terá aos seus pés um mundo de curiosos de todas as novidades esotéricas.

Existem sabedorias e espiritualidades que não estão ligadas a nenhuma confissão religiosa, mas constituem campos de busca de sentido existencial.

Este Papa encerrou uma época, muito recente, confiada aos Prefeitos da Congregação para a Doutrina da Fé, perfeitos em silenciar a liberdade no seio da Igreja.

Ele próprio não tem boas recordações da teologia que teve de frequentar como estudante, uma teologia de manuais, onde estavam previstas e congeladas as teses, as perguntas e as respostas. Desde a Alegria do Evangelho que sonha com «Faculdades de Teologia onde se viva a convivialidade das diferenças, onde se pratique uma teologia do diálogo e do acolhimento; onde se experimente o modelo do poliedro do saber teológico, em vez de uma esfera estática e desencarnada. Onde a investigação teológica seja capaz de se comprometer com um cativante processo de inculturação».

Está convencido que tanto «os bons teólogos, como os bons pastores, têm o cheiro do povo e da estrada e, com a sua reflexão, derramam óleo e vinho sobre as feridas dos homens». Para ele, a teologia deve ser «a expressão de uma Igreja que é um “hospital de campanha”, que vive a sua missão de salvação e de cura no mundo! A misericórdia não é só uma atitude pastoral, é a própria substância do Evangelho de Jesus».

2. O Papa Francisco incita os professores de teologia a que a centralidade da misericórdia se exprima nas várias disciplinas: na dogmática, na moral, na espiritualidade, no direito e assim por diante. «Sem misericórdia, a nossa teologia, o nosso direito, a nossa pastoral, correm o risco de se afundarem na mesquinhez burocrática ou na ideologia que, por natureza, quer domesticar o mistério».

Defende uma teologia do acolhimento que desenvolva «um diálogo sincero com as instituições sociais e civis, com os centros universitários e de investigação, com os líderes religiosos e com todas as mulheres e homens de boa vontade». A construção na paz de uma sociedade inclusiva e fraterna, assim como a protecção da criação, exige a colaboração de todos.

Está convencido de que este modo de proceder dialógico é a via para chegar até onde se formam os paradigmas, os modos de sentir, os símbolos, as representações das pessoas e dos povos. Importa «chegar até esse ponto – como “etnógrafos espirituais” da alma do povo, digamos assim – para poder dialogar em profundidade e, se possível, contribuir para o seu desenvolvimento». É fruto do anúncio do Evangelho do Reino de Deus o amadurecimento de uma fraternidade cada vez mais dilatada e inclusiva.

Nada disto é possível sem liberdade teológica. «Sem a possibilidade de experimentar estradas novas, não se cria nada de novo, e não se dá espaço à novidade do Espírito do Ressuscitado». A quem sonha com uma doutrina monolítica a ser defendida por todos, sem nuances, isto não lhe sabe bem. No entanto, é «essa variedade que ajuda a manifestar e a desenvolver melhor os diversos aspectos da riqueza inesgotável do Evangelho[1]». Para conseguir este objectivo, é preciso uma revisão adequada da ratio studiorum.

Sobre a liberdade de reflexão, o Papa observa: entre os estudiosos, é preciso avançar com liberdade; depois, em última instância, será o magistério a dizer alguma coisa, mas não se pode fazer uma teologia sem esta liberdade. Na pregação ao Povo de Deus, porém, não se deve ferir a sua fé com questões disputadas. Estas que fiquem entre os teólogos. É a sua tarefa. Ao Povo de Deus é preciso dar a substância que alimente a fé e que não a relativize.

O Papa não está a embarcar numa onda de espiritualismo fácil. Sublinha, pelo contrário, que o “discernimento espiritual” não exclui os contributos de sabedorias humanas, existenciais, psicológicas, sociológicas ou morais, mas transcende-as. «Nem sequer bastam as normas sábias da Igreja. Lembremo-nos sempre de que o discernimento é uma graça. Em suma, o discernimento leva à própria fonte da vida que não morre, isto é, conhecer o Pai, o único Deus verdadeiro, e a quem Ele enviou, Jesus Cristo[2]».

Uma teologia tão alerta só pode gerar uma espiritualidade de olhos bem abertos.

3. A dimensão espiritual, afirmada ou negada, está presente em todas as situações da vida. Como escreve o poeta Carlos Drummond de Andrade: Para isso fomos feitos/ para lembrar e ser lembrados/ para chorar e fazer chorar/ para enterrar os nossos mortos/ para isso temos braços longos para os adeuses/ mãos para colher o que foi dado/ dedos para cavar a terra/ (…) Fomos feitos para a esperança do milagre/ para a participação da poesia/ para ver a face da morte/ de repente nunca mais esperaremos/ hoje a noite é jovem; da morte/ apenas nascemos, imensamente.

Parece que os poetas não acreditam que a vida será regida apenas por super-computadores electrónicos[3]. Também não espero que um dia vá surgir, como pensava Jean Rostand, pílulas (tão obrigatórias como aprender a ler) destinadas a moderar a inveja, a dominar a ambição, a reduzir o desejo de poder, da força, da violência, de predomínio (as verdadeiras calamidades históricas) impondo aos seres humanos um sentido universal de solidariedade.

Isto seria um milagre: o homem tornar-se-ia humano através de um equilíbrio biológico sabiamente conseguido pela química[4]. Mas que teria isso a ver com um ser humano?



30. Junho. 2019



[1] Evangelii gaudium, 40
[2] Gaudete et exsultate, 170; para todas as questões, desta crónica, relativas à teologia, ver: Papa Francisco, na Pontifícia Faculdade de Teologia da Itália Meridional, Nápoles, 21.6.2019.
[3] São cada vez mais espantosos os benefícios da inteligência artificial, assim como as esperanças e os receios que semeiam. Cf. Arlindo Oliveira, Inteligência artificial, Fund. Francisco Manuel dos Santos, 2019. Ainda não conheço os poemas dessa famosa inteligência.
[4] Cf. Chianca de Garcia, Cartas do Brasil, Edição O Independente, Lisboa, 2004, 19. 23. 132-133

quarta-feira, 26 de junho de 2019

Efeitos da cultura «next»? - João Teixeira, DM

1. É sabido que ser homem
é ser nómada, peregrino,
viandante.
Mesmo quando nos
sedentarizamos, dificilmente
o fazemos por muito tempo
e no mesmo lugar. Muitas
vezes, só nos sentamos depois
de vencermos «toneladas» de
quilómetros.
2. Cada acção sedentarizada
programa habitualmente a
«próxima» acção sedentarizada.
Não raramente, esta ocorre
num sítio diferente e até pode
obrigar-nos a deslocações para
locais muito distantes.
3. São os efeitos da cultura
«next».
Se repararmos, nunca estamos
inteiros onde estamos.
no me desaires, la gente lo va
a notar; pues que digan lo que
quieran, contigo no he de bailar;
hechó mano a la cintura y
una pistola sacó; y a la pobre
de Rosita no mas, 3 tiros le dió;
Rosita está en el cielo, dandole
cuenta al Criador, Hipolito
está en la cárcel, dando su declaración…”.
Isto se passou, como
disse, em 1900. Já em Novembro
de 1933, aconteceu o
assassinato, numa “cantina” e
por rivalidades amorosas, de
um tal Agustín Jaime. “Agustín
bajava, a caballo, a ver a su
chata (Maria Garcia) que estaba
en Rio Bravo; bonito Saltillo,
no puedo negar, murió Agustín
Jaime, porque supo amar;
bonito caballo que Jaime montaba,
como era entendido, a
señas le hablaba”.
6 Infelizmente, os heróis
dos “corridos “ de hoje são outros).
Razão tem Trump, ao vigiar
bem a sua longa fronteira
(Califórnia, Arizona, Novo
México, Texas). Os “corridos”
de hoje celebram prósperos e
audaciosos traficantes de droga
(e agora, também de seres
humanos), ao pé dos quais a
“velha” Mafia do sul de Itália
lembra um educado pequeno
grupo de “meninos de coro”.
Estamos sempre com o pensamento
no «próximo» local, na
«próxima» actividade, no próximo
«projecto», etc.
4. Seremos mesmo «gente
que não sabe estar»? De facto e
à primeira vista, é o que parece.
Parece que deixamos de saber
«estar». O que mais fazemos
é «andar», «correr», «acelerar».
5. Tudo isto – no limite –
atira-nos para um paradoxo
existencial: por um lado, saímos
para «estar com» toda a
gente; mas, por outro lado, não
somos capazes de «estar para»
quase ninguém.
E é assim que vamos coleccionando
– à escala planetária
– «lugares de passagem». Não
arranjaremos tempo para desfrutar
de um único «lugar de
paragem»?
6. Dá a impressão de que
a mobilidade está a destapar
uma contínua – e entranhada
– insatisfação.
«Andamos», «corremos»
e «aceleramos» porque nos
sentimos insatisfeitos onde
estamos. Mas, pela amostra,
também não nos satisfazemos
muito nos espaços onde passamos
a estar.
7. Porfiamos, com extremos
de ansiedade, pela «próxima
» experiência. Mas quando
esta chega, facilmente a descartamos
com cominações de
decepção.
No fundo, o que mais consumimos
é a velocidade, a
pressa e a pressão. Quem, hoje
em dia, chega descansado de
uma viagem planificada para
descansar?
8. Desistimos de parar, de
contemplar, de valorizar o hoje
e de optimizar o agora. Estamos
numa terra e a pensar
no tempo que leva a chegar
ao «próximo» destino.
Em nenhum lugar nos sentimos
em casa. Passamos a vida
de malas feitas, passeando
pelo mundo o nosso irremediável
desconforto.
9. Até dentro de nós temos
dificuldade em parar. Até dentro
de nós não conseguimos estar
em nós.
Daí a necessidade de estarmos
sempre em movimento e
cercados de ruído. Nem de noite
nos recolhemos O encontro
connosco incomoda-nos?
Não espanta que o homem –
segundo Nietzsche – se tenha
tornado «o ser mais distante
de si mesmo».
10. Só em Deus descansaremos.
Só n’Ele venceremos
a «fadiga de ser eu» (A. Ehrenberg)
e a amargura de nos sentirmos
«apenas» nós.
Inquietos nos veremos enquanto
não repousarmos em
Deus. Só na Sua mão – como
poetou Antero – «repousa, afinal,
o nosso coração»!

domingo, 23 de junho de 2019

HÁ BOAS NOTÍCIAS Frei Bento Domingues, O.P

Não será esta uma posição demasiado radical?????


1. Na última quinta-feira, a Igreja católica celebrou a festa do Corpo de Deus, feriado nacional. As origens desta festa estão envolvidas em histórias de muita fantasia. A chamada Lenda Rigaldina (séc. XIV) é a mais divertida. Estava Santo António a pregar, em Toulouse, sobre a presença real de Cristo sob as espécies do pão e do vinho, quando um ateu, chamado Bonillo, o enfrentou com um desafio: só acreditaria no que acabava de ouvir se a sua mula se ajoelhasse diante do ostensório eucarístico. Frei António aceitou e ampliou o desafio. Mandou que deixassem o animal sem comer três dias e, no final, lhe fosse apresentado um monte de erva e, ao lado, o ostensório.

No fim do terceiro dia, a mula esfomeada foi solta e, passando por um monte de feno e aveia, foi ajoelhar-se em frente da Custódia. Esta lenda deu origem a outra: uma freira agostiniana, Juliana de Mont Carnillon, terá conhecido ecos da pregação do Santo e teve visões de que era o próprio Cristo a manifestar-lhe o desejo de que o mistério da Eucaristia fosse celebrado com mais solenidade. Terá revelado esse desejo ao futuro Urbano IV. Entretanto, na cidade de Bolsena, perto de Orvieto, residência do Papa, aconteceu um espantoso milagre: um padre, ao celebrar a Eucaristia e ao partir a Hóstia consagrada, viu cair sobre a toalha gotas de sangue!

O Papa determinou que fossem levados para Orvieto, em grande procissão, os objectos envolvidos nesse prodígio, o que aconteceu a 19 de Junho de 1264. Terá sido esta a primeira procissão da festa Corpus Christi promulgada por Urbano IV.

De vários textos em concurso para a celebração da festa, foi preferido o de S. Tomás de Aquino. É uma grande peça poética e teológica de que faz parte o Tantum Ergo Sacramentum cantado até aos nossos dias.

A insistência na chamada presença real tornou-se um problema, sobretudo a partir do séc. XI, em resposta às negações do teólogo Berengário de Tours. História longa e complexa. Quando não se entende que não existe oposição entre presença simbólica e presença real, todos os equívocos são possíveis.

As narrativas sobre a Eucaristia evocam todas a Quinta-Feira Santa, que só a partir do séc. IV foi solenizada. São todas festas do Corpo de Deus, do Deus connosco, do Deus humanado.

O excesso de ritualização, no cristianismo, tende a esquecer o verdadeiro alcance dos seus símbolos fundadores. É o que passamos a procurar.

2. Este ano, os textos escolhidos para a celebração do Corpo de Deus, são dos mais antigos e dos mais provocadores para a nossa contemporaneidade, a nível local e global: a persistência das escandalosas desigualdades sociais e da fome, cuja erradicação é sempre anunciada para continuar sempre adiada. Que pode a missa contra isto?

Pelos vistos, é uma questão com a qual S. Paulo, no texto mais antigo sobre a Eucaristia, se viu confrontado[1]. Observou divisões sociais inaceitáveis na comunidade cristã de Corinto. Alguns serviam-se da própria reunião eucarística para exibir a sua superioridade económica e social. Levavam consigo boa comida e boa bebida que não partilhavam. S. Paulo fica indignado: será que não tendes casas para comer e beber ou vindes desprezar a Igreja de Deus e envergonhar aqueles que nada têm? Não esperem o meu louvor.

Vale sempre a pena regressar a um texto que ele próprio recebeu do Senhor e que, ainda hoje, é norma em todas as celebrações. Quando Jesus diz Isto é o meu corpo, evoca o sentido que deu a toda a sua vida e que deve ser o sentido da vida dos discípulos, de cada cristão: gastar suas energias para que todos tenham vida e vida em abundância. Nós, ao comungarmos, recebemos essa missão. Cada um tem de se examinar sobre o que pode fazer pelo bem dos mais marginalizados e marginalizadas.

Quando acrescenta: este cálice é a nova aliança no meu sangue, todas as vezes que o beberdes fazei-o em memória de mim, Jesus não estava a erguer um monumento à sua memória, como se tivesse receio de ser esquecido. O que ele procura é que o Evangelho seja continuado, que o seu percurso, pelo qual foi morto, não seja esquecido. A nova Aliança é o compromisso de Deus com as populações mais pobres, que não pode ser adulterado. Ao insistir, em memória de mim, é para não esquecermos a vida perigosa em que Jesus se envolveu: o caminho da fidelidade cristã, ao longo dos séculos, nas situações mais imprevisíveis.

Quem vai às celebrações eucarísticas sem este compromisso está a iludir-se: come e bebe a sua própria condenação. Uma Eucaristia é uma convocatória para alterar o rumo do mundo desumanizado e responsabilizar as Igrejas: como é possível missa após missa, rito após rito, continuar tudo na mesma?

O texto do Evangelho escolhido para essa celebração é uma parábola provocatória: os discípulos imaginam Jesus distraído. Falou e falou muito, mas fez-se tarde e parecia que Jesus não se apercebia da situação real. O melhor era que desse por encerrada a sessão e que cada um procurasse onde poderia ir comer. Tentaram descartar-se. Jesus intima-os: dai-lhes vós mesmos de comer[2]. Tinham pouco: 5 pães e 2 peixes para cinco mil pessoas? Jesus mostra uma lei universal. O que existe no mundo ou pode ser produzido, se for bem repartido, dá para todos e ainda sobra: é o sentido da parábola da multiplicação dos pães e dos peixes.

Não se pode pensar em partilha dos bens quando está tudo organizado para que os que têm, tenham cada vez mais e os que não têm fiquem ainda mais longe da mesa que deveria ser comum, o destino universal dos bens[3]. Como diz o Papa Francisco, cada vez há menos ricos, menos ricos com a maioria da fortuna do mundo. E cada vez há mais pobres com menos do mínimo para viver[4].

Quando celebramos a Eucaristia, a grande preocupação não pode ser, apenas, a de não faltarem hóstias para os fregueses. A pergunta é outra: desta Eucaristia vai sair gente empenhada em que a ninguém falte o pão, a casa e o trabalho? Quando Jesus diz isto é o meu corpo é também a esse corpo social que se refere.

3. Há duas boas notícias sobre a Eucaristia. No documento de trabalho para o Sínodo da Amazónia, está aberta a discussão sobre a ordenação de homens casados e a revisão dos ministérios das mulheres na Igreja. Este tabu acabou. Os sinos tocaram na Ribeira Seca e ela floriu. Não creio que Jesus Cristo estivesse de acordo com a suspensão a divinis, há 40 anos, do padre Martins Junior. Parece que o novo Bispo também não acreditou nisso.

23. Junho. 2019



[1] 1Cor 11, 16-34
[2] Lc 9, 11-17
[3] Discurso aos juízes do continente americano reunidos em congresso no Vaticano.
[4] Mensagem do Santo Padre Francisco para o III Dia Mundial dos Pobres (17 de Novembro de 2019).


sábado, 15 de junho de 2019

O FILHO DE MARIA - Anselmo Borges

1 - Um dia, num debate, perguntei ao eurodeputado Paulo Rangel sobre a crítica e até hostilidade à Igreja Católica, também no meio político, a nível europeu. Ele respondeu que essa crítica existe e que a hostilidade se estende também à Igreja ortodoxa, menos às Igrejas protestantes. Mas sublinhou: “Nunca ouvi alguém dizer mal de Jesus”.
Jesus é uma das figuras “decisivas, determinantes”, da História, como sublinhou o grande filósofo Karl Jaspers. Penso mesmo que é, quando se pensa fundo, a figura mais revolucionária. A partir da revelação de que Deus é Amor e de que todos os seres humanos valem para Deus, a ponto de o critério último que decide da salvação definitiva ser determinado pelo que se faz pelos outros nas necessidades mais imediatas, porque é a Deus, mesmo sem o saber, que se faz — “destes-me de comer, de beber, vestistes-me, foste ver-me ao hospital e à cadeia... —, independentemente do sexo, género, religião, cor, etnia, opção filosófica ou política, foi germinando a ideia da igual dignidade de todos.
Os grandes pensadores tiveram consciência disso. O próprio conceito de pessoa apareceu no contexto dos debates teológicos à volta da compreensão da pessoa de Jesus. Hegel reflectiu bem que a consciência da liberdade, da igualdade e da dignidade veio ao mundo pelo cristianismo. Ouvi o filósofo ateu Ernst Bloch declarar: “Nenhum ser humano pode ser tratado como gado, e isso sabemo-lo pelo cristianismo”. Também escreveu: Jesus agiu como um homem “pura e simplesmente bom, algo que ainda não tinha acontecido”. Jürgen Habermas, o filósofo vivo mais influente, reflectiu que a democracia, que se expressa em eleições livres com igual valor dos votos — “um homem, um voto” —, é a transposição para a política da ideia cristã de que cada homem e cada mulher são filhos de Deus. A liberdade, a igualdade, a fraternidade, assentam no Evangelho. Aliás, a consciência dos direitos humanos e a sua proclamação deram-se em contexto judaico-cristão. Onde é que nasceu a Declaração dos Direitos Humanos? Foi na China? Foi na Arábia? Mesmo se, desgraçadamente, foi e vai sendo preciso impô-la também à própria Igreja enquanto instituição... Mahatma Gandhi deixou estas palavras: Jesus “foi um dos maiores mestres da Humanidade.” “Não sei de ninguém que tenha feito mais pela Humanidade do que Jesus. De facto, nada há de mau no cristianismo.” Mas acrescentou: “O problema está em vós, os cristãos, pois não viveis em conformidade com o que ensinais.” E tem razão.
É necessário confessar e denunciar os erros, fragilidades, exploração brutal, até obscena, por parte da hierarquia eclesiástica, crimes do cristianismo histórico, mas é indubitável que da compreensão dos direitos humanos e da democracia, da tomada de consciência da dignidade inviolável de todo o ser humano, homens e mulheres, da ideia de História e do progresso, da separação da Igreja e do Estado, portanto, da laicidade, de modo que crentes e ateus têm os mesmos direitos, faz parte inalienável a mensagem originária do cristianismo.
O cristianismo tem no seu activo também, e sobretudo, o maior impulso para a esperança no sentido último da existência. Mais uma vez, Ernst Bloch, o filósofo ateu da esperança, viu bem, ao escrever: “O cristianismo, na concorrência com outros profetas da imortalidade e da sobrevivência, venceu em grande parte graças à proclamação de Cristo: ‘Eu sou a Ressurreição e a Vida’. No século primeiro depois do acontecimento do Gólgota, a ressurreição foi referida ao Gólgota de uma forma inteiramente pessoal, de tal modo que pelo baptismo na morte de Cristo se experiencia a ressurreição com ele. Imperava então um desespero apaixonado, que hoje nos parece incompreensível.” De facto, hoje, face ao Além e à vida eterna, o que parece estar em vigência é a indiferença. Mas Bloch prevenia: “Nada impede que dentro de 50 ou 100 anos volte essa neurose ou psicose de angústia da morte, de tipo metafísico, com a pergunta radical: para quê o esforço da nossa existência, se morremos
completamente, vamos para a cova e, em última instância, não nos resta nada?
2 - Recentemente, também Juan José Tamayo chamou a atenção para a influência de Jesus: “Toda a gente coincide em que Jesus foi uma pessoa eticamente sem mácula”. E apresentou vários testemunhos de cristãos, mas também de não cristãos e até de ateus. Gandhi escreveu: “O espírito do Sermão da Montanha exerce em mim quase o mesmo fascínio que a Bhagavad Gita. Este sermão é a origem do meu afecto por Jesus.” A filósofa Simon Weil: “Antes de ser Cristo, é a verdade. Se nos desviarmos dele para ir ao encontro da verdade, não andaremos muito até cair nos seus braços”. J.-J. Rousseau confessava: “Se a vida e a morte de Sócrates são as de um sábio, a vida e a morte de Jesus são as de um Deus”. Albert Camus: “Eu não creio na sua ressurreição, mas não esconderei a emoção que sinto perante Jesus e o seu ensinamento. Diante dele e da sua história, só sinto respeito e veneração”. Nietzsche, que proclamou a morte de Deus, define Jesus como o “bom mensageiro”, que “morreu como viveu, como ensinou, não para ‘redimir os homens’, mas para mostrar como se deve viver. O que ele legou à Humanidade é a prática: o seu comportamento perante os juízes, perante os verdugos, perante os acusadores e toda a espécie de calúnia e mentira, o seu comportamento na cruz.”
3 - Sobre Jesus há um consenso universal. E poderíamos citar escritores, filósofos, teólogos, poetas, artistas, romancistas, realizadores de cinema, cientistas, representantes das várias religiões...
Para citar um português, fica aí o testemunho da escritora Lídia Jorge, que acaba de publicar na sua obra O Livro das Tréguas este belíssimo e comovente diálogo de Maria com o Filho, Jesus, num poema pregnante, intitulado precisamente “O Filho de Maria”:
“Filho, enquanto eu ordenho as cabras, porque não te sentas/
à sombra da videira e não entranças as gavinhas como os outros/
meninos fazem? Não imitas o canto do galo, não desenhas
o burro na areia? /
- Mãezinha, eu estou a ler as escrituras para amanhã/
ir discutir com os sábios. /
Filho, gostava que carpinteirasses uma mesinha, quatro cadeiras/
um leito alto, e cativasses uma rapariga como a filha da vizinha/
a linda Madalena, para a aninhares à noite/
na tua túnica. /
- Mãe, eu estou guardado para o indizível, não posso/
envolver-me com descendência humana. /
Filho, a lua apareceu vermelha, pressinto perigos. Não acompanhes/
o teu primo João, aquele que vive das ervas do deserto e prega contra o rei/
como se fosse um guarda. Podem ferir-te, podem matar-te/
meu estremecido filho. /
- Mulher, falas demais, o meu tempo não é este tempo/
melhor é afastares-te do meu caminho. /
Filho meu, batido, cruxificado, desfalecido, aqui tens a tua mãe/
mais o José de Arimateia, e azeite morno para suavizar as tuas feridas. /
Para lavar os teus pés, as minhas lágrimas, e antes que te dêem/
vinagre e fel, um púcaro de água. Estou no chão, a minha alma/
está de rastos. Ainda me ouves? /
- Pai distante, meu pai, só penso em subir ao céu, para me sentar/
à tua direita, além das nuvens e dos astros.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 9 JUN 2019

domingo, 9 de junho de 2019

PENTECOSTES: SÓ A MUITAS VOZES! Frei Bento Domingues, O.P.


1. É muito bela a narrativa mítica da Torre de Babel e, a meu ver, muito mal interpretada. A diversidade das línguas e a dificuldade que ela representa, para a chamada comunicação, é um dado da experiência universal. O desejo/sonho de uma só língua, para ser realizado, precisa de um poder dominador universal que elimine todas as outras. No referido mito, é a intervenção de Deus que se opõe a esse imperialismo de destruição da diversidade linguística para a realização de projectos megalómanos[1]. Muitas vezes se contrapôs o mito do Pentecostes[2] ao da Torre de Babel quando, de modo diferente, são ambos a apologia da diversidade. No Pentecostes, cada qual os ouvia falar na sua própria língua. Estupefactos e surpreendidos diziam: Não são todos galileus, esses que estão a falar? Como é que cada um de nós os ouve na sua própria língua materna?

O universalismo do movimento cristão não é uma razia da diversidade cultural e linguística. O desejo de catecismos universais e de um direito canónico, onde está tudo previsto, são incapazes de se converterem à diversidade na História da Igreja. Apesar do Vaticano II, a unicidade nas expressões da Fé cristã continua a contrariar a pluralidade cultural, mesmo dentro de um só país.

2. Este Pentecostes foi preparado por alguns acontecimentos significativos em relação ao desejado pluralismo.

O célebre historiador, José Mattoso, ao receber o Prémio Árvore da Vida, reconheceu que um conjunto de personalidades tem feito da fé cristã o fundamento da sua obra cultural. «Em vez de oporem a fé à racionalidade, inspiram-se nela para produzir cultura. Houve tempos e lugares em que esta associação se considerava impossível. A fé opunha-se à ciência, à razão e à cultura. Hoje o diálogo tornou-se pacífico, e a crença é, para muitos, fonte verdadeira de inspiração cultural».

Lembrou ainda que «a obsessão uniformizadora do catolicismo quinhentista e seiscentista persistiu durante os séculos seguintes e levou, por exemplo, a proibir a leitura de Erasmo, a condenar Copérnico, a criar a Inquisição, a legitimar a tortura, a proibir a leitura da Bíblia em língua vulgar, a fazer abortar os primeiros ensaios do Liberalismo Católico.

«Creio que temos alguma coisa a aprender com a História, sobretudo com a história da espiritualidade e das ordens religiosas. Tal como no século XV, procuramos conciliar a pluralidade das iniciativas e experiências, com a necessária firmeza e unidade da Igreja. Creio que só um pluralismo de raiz evangélica, fruto da Palavra única de Jesus Cristo, pode conciliar a imensidade e a multiplicidade das suas incarnações, no tempo e no espaço»[3].

Realizou-se, em Lisboa, na Faculdade de Letras, na Universidade Nova e no Convento de S. Domingos, de 20 a 22 de Maio de 2019, um Simpósio Internacional de exegetas, em Homenagem a Frei Francolino Gonçalves, O.P. (1943-2017), investigador e professor da Escola Bíblica de Jerusalém. Só um simpósio deste nível podia celebrar o seu contributo inovador na exegese bíblica. A sua teoria dos dois Iaveísmos – o universalista e o nacionalista – permite uma leitura libertadora, do Antigo Testamento, com novas perspectivas, tanto no campo da exegese bíblica como no da teologia e da acção pastoral da Igreja.

Eduardo Lourenço, autor de uma imensa obra inaugurada pela publicação de Heterodoxia (1949), recebeu, no seu dia de anos, o Prémio Livraria Lello. O papel desta obra, para a sociedade portuguesa, foi incomparável. Se a nossa hierarquia eclesiástica a tivesse acolhido, muitos dos Vencidos do Catolicismo, evocados por Ruy Belo, teriam sido vozes múltiplas do Pentecostes que muitos esperaram em vão.

Quem poderia imaginar, nesse tempo, o que o actual Bispo do Porto disse no funeral de Agustina Bessa-Luís? São palavras suas: «Obrigado, Deus, porque nos deste uma pessoa de tão alta categoria intelectual, religiosa, cristã; e obrigado Agustina, por esta extraordinária lição de teologia que a tua vida acabou por nos dar»[4].

3. No âmbito da programação desenhada para 3º Ciclo, do Núcleo Parque dos Poetas |Templo da Poesia, da Câmara Municipal de Oeiras, depois de os anteriores dedicados a Camões e a Fernando Pessoa, chegou a vez de Sophia de Mello Breyner Andresen. Entre as múltiplas perguntas, acerca desta grande poeta, fui convidado para responder a uma pouco usual: Sophia foi crente?

No longo Prefácio [Pórtico] aos Contos Exemplares, o célebre Bispo do Porto, António Ferreira Gomes, escreveu: «Cristã e mesmo quase litúrgica é a vivência poética de Sophia nos seus Contos (dizemos bem, poética, porquanto de prosa aqui não há mais que o aspecto gráfico, íamos a dizer tipográfico). (…) E que melhor liturgia natalícia da Palavra se poderia desejar do que essa extraordinária parábola de Os Três Reis do Oriente?[5]

Na sua notável obra, Helena Malheiro dedicou um capítulo à Viagem Sagrada de Sophia[6]. Eu próprio me referi, em dois pequenos textos, à dimensão original da sua concepção religiosa e cristã[7].

Não disponho de espaço para mostrar, através dos seus poemas, a originalidade da sua fé. Não era panteísta nem ateia. A grande tarefa de Sophia foi a de não desqualificar a realidade imanente em nome da transcendência de Deus. Não eclipsar o mundo para encontrar o divino: Senhor sempre Te adiei/ embora sempre soubesse que me vias / Quis ver o mundo em si e não em ti / E embora nunca te negasse te apartei.

O seu longo poema, A casa de Deus, assume as ciências, as técnicas, as artes: Os homens a constroem na terra/ Situada no tempo/ Para habitação da eternidade.

Como ela própria diz, nesta casa celebramos a Páscoa porque Deus nos criou para a alegria.



09. Junho. 2019



[1] Gn 11, 1-9
[2] Act 2 1-13
[3] Ver o texto na íntegra no site do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura.
[4] Quem desejar conhecer a sua atitude de católica militante, algo heterodoxa, veja A Educação na Fé, in Agustina Bessa-Luís, Contemplação carinhosa da Angústia, Guimarães Editores, 2000, 335-348; Maria Luiza Sarsfiel Cabral, A dimensão religiosa na obra de Agustina Bessa-Luís, in Frei Bento Domingues e o Incómodo da Coerência, 419-445.
[5] Sophia de Mello Breyner Andresen, Contos exemplares, Figueirinhas, 35ª edição, 2004 (1962), pág. 35
[6] Helena Malheiro, O Enigma de Sophia. Da Sombra à Claridade, Oficina do Livro, Lisboa, 2008, 239-274.
[7] Frei Bento Domingues, O.P., Sophia: Uma poesia do limiar, in Homenagem a Sophia de Mello Breyner Andresen. Actas. 3 e 4 de maio de 2000, Areal Editores, 12-16; Não eclipsar o mundo para encontrar o divino, in JL de 8 a 21 de Maio. 2019, 11

terça-feira, 4 de junho de 2019

Preparados para os «momentos Simão Cireneu»? João Teixeira - DM

1.Instintivamente, somos mais conduzidos
pelo prazer do que pelo dever.
O ideal era que os dois convergissem
sempre. É sabido, porém, que tal raramente
acontece.
2. Numa sociedade hedonista – e de alto
teor egocêntrico –, a maior ambição é fazer o que gostamos.
Mais difícil é gostar do que fazemos.
Há palavras – e atitudes – que repelimos com impulsiva
veemência. Uma delas é «obrigação». É claro
que há imposições que são inaceitáveis. Mas será que
temos consciência das obrigações que contraímos para
com a sociedade?
3. Pagar impostos, por exemplo, é uma obrigação
que nos onera e contraria. Mas não é ela necessária para
o bem comum?
É imperioso que muitos partilhem do que possuem
para que todos possam ter acesso ao que precisam.
4. É, contudo, notório que não é com prazer que cumprimos
tais obrigações.
É vital apelar ao sentido do dever. É deste modo que
a obrigação – mesmo a que vem do exterior – se vai
inscrevendo no nosso interior.
5. Xavier Zubiri notava que, muitas vezes, seguimos
pela via da «impelência». Há prioridades que nos «impelem
» a determinados actos e compromissos.
O sentido do dever – ainda que não nos agrade –
acaba por nos influenciar poderosamente.
6. No fundo, é muito o que fazemos porque somos
obrigados.
Mas nem por isso o valor decresce. Há obrigações
que fazem parte daqueles a que Sean O’Malley chamou
«momentos Simão Cireneu».
7. Como é sabido, quando Jesus caminhava para o
Calvário, houve alguém que O ajudou. Só que não O
ajudou porque quis; ajudou-O porque foi obrigado
(cf. Mc 15, 21). Não se tratou de um auxílio voluntário
mas imposto.
Sean O’Malley conjectura até que tal imposição terá
deixado Simão Cireneu «zangado, perturbado e frustrado
». Afinal, tomar parte «numa execução não consta
propriamente da lista dos desejos humanos».
8. Sucede que esse gesto viria a mudar a sua vida. Há
quem pense que ele e os seus filhos (Alexandre e Rufo)
se tornaram cristãos.
Aquele que foi o pior dia da sua vida viria a converter-
se, assim, na hora mais decisiva da sua existência.
9. Quem não passa por estes «momentos Simão Cireneu
»? Tanta cruz para carregar! Tantas imposições
para suportar!
No início, sofremos e pouco entendemos. Mais tarde,
porém, sentimos que aquilo que mais nos doeu foi
também aquilo que mais nos amadureceu.
10. A felicidade costuma derramar sorrisos.
Mas pode começar com a face sulcada de lágrimas e
com a alma coberta de dores!

segunda-feira, 3 de junho de 2019

A DESPEDIDA IMPOSSÍVEL Frei Bento Domingues, O.P.


1. Não estamos condenados a repetir os mesmos erros. O Concílio de Florença-Ferrara, de 1442, produziu a seguinte declaração solene: «A Santa Igreja crê, firmemente, confessa e proclama que ninguém, fora da Igreja católica – e não apenas os pagãos, mas também os judeus e os cismáticos – não podem tomar parte na vida eterna, mas irão para o fogo eterno, preparado pelo diabo e os seus anjos (Mt 25-41), a menos que antes do fim da sua vida de novo se lhe tenham unido». Temos, assim, uma instituição dedicada a meter gente no inferno. Esta Igreja estava divorciada de Jesus Cristo. Pensava que mandava em Deus. Este teria de a consultar acerca dos que merecem o céu e dos que já estão condenados.

Vejamos, no entanto, um contraste, que não é o primeiro. No voo de regresso da visita apostólica à Bulgária e à Macedónia, o Papa Francisco começou por frisar o que estes países tiveram de sofrer para se conseguirem constituir como nações, mas esquecemos que o cristianismo entrou no Ocidente pela Macedónia (Act 16, 9). Em ambos os países existem comunidades cristãs, ortodoxas, católicas e muçulmanas. A percentagem ortodoxa é muito alta nos dois países, a dos muçulmanos é menor e a dos católicos é mínima na Macedónia e maior na Bulgária. O Papa ficou muito impressionado com o bom relacionamento entre os diferentes credos, entre as várias crenças. Na Macedónia impressionou-o uma frase do Presidente: «Aqui não há tolerância de religião. Há respeito». Eles respeitam-se! Num mundo onde falta o respeito pelos direitos humanos e por tantas outras coisas, inclusive o respeito pelas crianças e pelos idosos, que o espírito de um país seja o respeito, impressiona!

Passou, depois, ao elogio dos Patriarcas ortodoxos. De todos só soube dizer bem. Dão um grande testemunho. Encontrei neles irmãos e de verdade, em alguns, não quero exagerar, mas quero dizer a palavra, encontrei santos, homens de Deus. Depois existem questões de ordem histórica. Hoje, dizia-me o Presidente da Macedónia: o cisma entre o Oriente e o Ocidente começou aqui, na Macedónia. Agora, pela primeira vez, vem o Papa… para consertar o cisma? Não sei, mas somos irmãos.

Antes de se despedir dos jornalistas, não resistiu a contar duas experiências-limite que muito o impressionaram: uma com os pobres na Macedónia, no Memorial da Madre Teresa. Estavam tantos pobres, mas aquelas irmãs cuidavam deles sem paternalismo, como se fossem seus filhos. Uma capacidade de acariciar os pobres com ternura. Hoje, estamos habituados ao insulto: um político insulta outro, um vizinho faz o mesmo e até nas famílias se insultam entre si. O insulto é uma arma ao alcance da mão, assim como a calúnia e a difamação. Aquelas irmãs cuidavam de cada pessoa como se fossem Jesus. Eram uma igreja-mãe. Depois, pude participar na primeira comunhão de 245 crianças. Eram o futuro da Igreja, o futuro da Bulgária!

Este Papa anda sempre a despedir-se sem nunca o conseguir. Fica com as comunidades e as pessoas que visita e, como nos Actos do Apóstolos, conta as suas experiências para semear outras formas de ser Igreja, que não têm nada a ver com a instituição dos anátemas.

2. Os cristãos celebram hoje a Ascensão, a Festa de todos os equívocos. Cristo para onde foi? Abandonou-nos? Mas, por outro lado, não tinha já declarado: Eu estou convosco todos os dias, até à consumação dos séculos[1]? A confusão é, por vezes, hilariante[2]. O melhor é recorrer ao livro dos Actos, o segundo volume de uma obra mais vasta. São a primeira história da Igreja, embora muito parcial. Vale a pena lembrar o seu propósito: «No meu primeiro livro, ó Teófilo, narrei as obras e os ensinamentos de Jesus, desde o princípio até ao dia em que, depois de ter dado, pelo Espírito Santo, as suas instruções aos Apóstolos que escolhera, foi arrebatado ao Céu. A eles também apareceu vivo depois da sua paixão e deu-lhes disso numerosas provas com as suas aparições, durante quarenta dias, falando-lhes também a respeito do Reino de Deus. No decurso de uma refeição que partilhava com eles, ordenou-lhes que não se afastassem de Jerusalém, mas que esperassem lá o Prometido do Pai, do qual – disse Ele – me ouvistes falar. João baptizava em água, mas, dentro de pouco tempo, vós sereis baptizados no Espírito Santo».

A seguir complica mais as coisas: «Estavam todos reunidos, quando lhe perguntaram: Senhor, é agora que vais restaurar o Reino de Israel? Respondeu-lhes: Não vos compete saber os tempos nem os momentos que o Pai fixou com a sua autoridade. Mas ides receber uma força, a do Espírito Santo, que descerá sobre vós, e sereis minhas testemunhas em Jerusalém, por toda a Judeia e Samaria e até aos confins do mundo».

O programa estava traçado. O reaparecimento dos mundanos sonhos de dominação política dos discípulos são, de novo e definitivamente, recusados. Parecia que as despedidas estavam feitas. Mas não. «Dito isto, elevou-se à vista deles e uma nuvem subtraiu-o a seus olhos. E como estavam com os olhos fixos no céu, para onde Jesus se afastava, surgiram de repente dois homens vestidos de branco, que lhes disseram: Homens da Galileia, porque estais assim a olhar para o céu? Esse Jesus que vos foi arrebatado para o Céu virá da mesma maneira, como agora o vistes partir para o Céu»[3].

3. Não era fácil a tarefa dos autores das narrativas a seguir ao Domingo de Páscoa.

Fui abordado, várias vezes, com esta pergunta directa: o Crucificado e o Ressuscitado são a mesma pessoa? Com esta pergunta vem outra associada: o que é que sobrevive das pessoas, quando morrem? Mantêm a sua personalidade essencial? Para onde vão? Onde vivem?

Os textos, no referente a Cristo, coincidem todos com a conclusão do extraordinário e atrevido sermão de Pedro no Pentecostes: «Saiba, portanto, toda a casa de Israel, com certeza: Deus constituiu Senhor a Cristo, a esse Jesus que vós crucificastes»[4].

Tenha-se em conta que a palavra céu, céus, ou reino dos céus significa Deus. Em Deus vivemos, nos movemos e existimos. Deus é a casa do mundo.

Perguntar onde fica o céu é confundir uma metáfora com um lugar. Cristo não se pode despedir do mundo. Pela incarnação é o Emanuel, isto é, Deus connosco. Neste sentido, Cristo é contemporâneo de todos os povos, de todos os tempos e de todos os lugares. Então que significam as suas despedidas impossíveis? É o tema da próxima crónica: o Pentecostes, a recusa de uma despedida.



02.Junho.2019



[1] Mt 28,20
[2] Jo. 16, 5-11
[3] Act 1, 1-10
[4] Act 2, 36