sábado, 27 de janeiro de 2024

Jesus, o Nazareno, profeta poderoso em palavras e obras - Pe. Manuel João, MC

 Jesus, o Nazareno, profeta poderoso em palavras e obras

 

Ano B - Tempo Comum - 4º Domingo

Marcos 1,21-28: 

 

Aqui estamos nós a seguir Jesus, na companhia de Simão e André, Tiago e João, depois do apelo de domingo passado. Jesus leva-nos com ele a Cafarnaum, uma cidade a norte do lago da Galileia. Este será o nosso primeiro dia com ele. Um dia memorável que se chamará o "Dia de Cafarnaum", um dia típico da atividade de Jesus. Começamos hoje e concluímo-lo no próximo domingo. Neste primeiro dia, encontramos o programa de todo o evangelho. As duas primeiras actividades de Jesus, segundo este evangelho, são o ensino e o exorcismo. 

 

O Profeta e a Palavra com autoridade

É sábado e "imediatamente" o Mestre entra na sinagoga e, após a proclamação das duas leituras, a primeira da Torá de Moisés (o Pentateuco) e a segunda dos Profetas, Jesus toma a palavra. E todos ficam maravilhados: "Porque os ensinava como quem tem autoridade, e não como os escribas". Os escribas eram os profissionais das Escrituras, mas "não tinham autoridade"! De facto, limitavam-se a relatar os pareceres de outros rabinos famosos, palavras antigas feitas de leis e preceitos que amarravam ainda mais as pessoas. Jesus, pelo contrário, não recita um papel, fala com autoridade, traz novidade, toca os corações e desperta a vida. 

A primeira tarefa de Jesus é ensinar. O texto fala quatro vezes de ensinar e de ensinamento. No evangelho de Marcos, encontramos o verbo ensinar 50 vezes, sempre dito de Jesus (exceto uma vez que se refere aos discípulos). Não se diz o que ele ensina "porque o que ele ensina é o que ele faz" (Silvano Fausti).

Ele é o Profeta prometido por Deus através de Moisés: "Suscitar-lhes-ei um profeta do meio dos seus irmãos e porei as minhas palavras na sua boca" (primeira leitura, Deuteronómio 18,15-20). Jesus é o Profeta e é a própria Palavra de Deus. "Um grande profeta surgiu no meio de nós", dizem as multidões (Lucas 7,16). Os dois discípulos de Emaús vão apresentá-lo como: "Jesus, o Nazareno, que era profeta poderoso em obras e palavras, diante de Deus e de todo o povo" (Lc 24,19).

O título de profeta atribuído a Jesus foi pouco desenvolvido na tradição cristã. Talvez devêssemos redescobri-lo. Diz-se hoje com frequência que a Igreja está a perder autoridade e credibilidade. A "boa nova" do Evangelho não pode ser proclamada sem a unção profética de Jesus: "O Espírito do Senhor está sobre mim; por isso, ele me ungiu e me enviou para levar a boa nova aos pobres, para proclamar a libertação aos cativos e a recuperação da vista aos cegos, para pôr em liberdade os oprimidos, para proclamar o ano de graça do Senhor. (Lucas 4,18-19). O que é urgente para a Igreja é um "novo ensinamento" que desperte a esperança e aqueça os corações. É urgente que cada batizado redescubra a sua vocação de profeta, recebida pela unção do Espírito. 

 

A Palavra de Jesus destrói o espírito impuro 

"E eis que na sinagoga deles estava um homem possuído por um espírito impuro, e começou a gritar, dizendo: 'Que queres de nós, Jesus de Nazaré? Vieste para nos arruinar? Eu sei quem tu és: o Santo de Deus!

É sábado e estamos na sinagoga, ou seja, num tempo e num espaço sagrados. O que faz ali este espírito impuro? Parece ser um frequentador habitual da sinagoga. Estava sempre ali, calado e sem ser incomodado. Mas hoje começa a gritar! Os sermões dos escribas parecem nunca o terem incomodado, mas este "novo ensinamento" de Jesus ele não o suporta. 

E nós podemos perguntar-nos: não será este "espírito impuro" um fiel frequentador também das nossas assembleias? Não estará a dormir sem ser perturbado nalgum recanto profundo e escuro dos nossos corações? E, se for esse o casso, por que é que não se manifesta? Não nos estará a faltar este "ensinamento novo"?! Ou será que se habituou a um "evangelho" domesticado? Os "demónios" mais perigosos não são os que vemos fora de nós, mas os que se escondem dentro de nós, esses "espíritos impuros" que contaminam e enfraquecem as nossas "obras e palavras"!

E Jesus ordenou-lhe com firmeza: "Cala-te! Sai dele! E o espírito imundo, arrastando-o e gritando em alta voz, saiu dele". Este é o primeiro "milagre" de Jesus apresentado por Marcos: um exorcismo. Jesus realiza-o apenas com a sua palavra. E todos na sinagoga ficam ainda mais espantados: "Que é isto? Um ensinamento novo, dado com autoridade. Ele até dá ordens aos espíritos imundos e eles obedecem-lhe!". Marcos apresenta o seu evangelho como uma luta entre o bem e o mal. Satanás é vencido por Jesus. Chegou o "homem forte" (Mateus 12,29) que vem libertar o homem, a obra-prima de Deus!

Mas quem ou o que é este "espírito impuro"? Os evangelistas, em particular Marcos, traduzem "demónio" por "espírito impuro". Encontramos cerca de cinquenta vezes a referência a "demónios" no Novo Testamento, e quase metade no evangelho de Lucas (23). Para dizer a verdade, o Antigo Testamento é bastante sóbrio em relação à demonologia, mas, no tempo de Jesus, ela estava a florescer. Muitos fenómenos e males estranhos ou doenças psíquicas e mentais eram atribuídos a "demónios". É natural, portanto, que se encontre esta influência cultural também nos Evangelhos. O mal sempre existiu e, seja qual for o nome que lhe atribuamos, permanece sempre um mistério. Seja como for, a palavra de Jesus vence o mal e liberta este homem. 

Mas então, o demónio existe ou não? Hoje em dia, há um certo mal-estar em falar dele. O conhecido biblista Gianfranco Ravasi diz: "Na realidade, ele é uma figura ativa nas páginas do Novo Testamento. A palavra de origem hebraica satanás aparece 36 vezes e a equivalente de origem grega diábolos 37 vezes. Trata-se, portanto, de uma presença significativa que não pode ser facilmente eliminada como se fosse um resquício mítico popular". Parece-me que devemos evitar os dois extremos: ver a presença e a influência do "demónio" em todo o lado ou, pelo contrário, negar a sua existência. Giovanni Papini dizia: "A última astúcia do demónio foi espalhar o rumor da sua morte". Em todo o caso, o cristão não é chamado a falar do demónio e do doente, mas a anunciar que "Jesus, o Nazareno, profeta poderoso em obras e em palavras" é a única esperança para a humanidade de hoje, sedenta de liberdade, mas escravizada por tantos demónios!

 

P. Manuel João Pereira Correia

Castel d'Azzano (Verona) 26 de janeiro de 2024

p.mjoao@gmail.com

domingo, 21 de janeiro de 2024

A DIFÍCIL UNIDADE DOS CRISTÃOS Frei Bento Domingues, O.P.

 

1. Uma história breve: o Papa Leão XIII (1810-1903) tinha pensado promover uma novena pela unidade dos cristãos, aproveitando a semana que vai do dia da Ascensão à festa de Pentecostes. Mais tarde, a ideia foi muito divulgada por Paul Wattson (1863-1940), um anglicano que se tornou católico romano. A proposta de data feita por Wattson era outra: de 18 de Janeiro (festa da cátedra de S. Pedro em Roma) a 25 de Janeiro (festa de S. Paulo). Estariam assim representados, nos dois apóstolos, estilos diferentes de vivência cristã (1908). Mas, de acordo com a mentalidade católica da época, pensava-se em unidade como retorno de todos os cristãos à Igreja com sede em Roma. Como era de esperar, tal proposta não foi bem aceite por ortodoxos e protestantes. Em 1926, o movimento Fé e Constituição, que mais tarde esteve na origem da formação do Conselho Mundial de Igrejas, lançou um apelo para a realização de uma Semana de Oração pela Unidade, a ser feita nos dias que antecedem a festa de Pentecostes.

Um grande impulso veio do padre católico francês Paul Couturier (1881-1953), a partir de 1935. Mas desta vez, a proposta mostrava uma abertura da parte católica: não se tratava de um retorno ao catolicismo, mas da reunião fraterna de Igrejas, cada uma com a sua identidade. O Pe. Couturier dizia: «Que chegue a unidade do Reino de Deus, tal como Cristo a quer e pelos meios que ele quiser!»  Esta atitude ficou mais fácil para os católicos depois do Concílio Vaticano II (1962-1965), que reconheceu valores nos então chamados irmãos separados e nas suas Igrejas, afirmando que a fé comum em Cristo é princípio de comunhão e assumindo a proposta ecuménica que respeita a identidade religiosa do outro.

A partir de 1968, a Semana é preparada conjuntamente pelo Pontifício Conselho para a Unidade dos Cristãos e pelo Conselho Mundial de Igrejas, representado pela sua comissão Fé e Constituição. A data pode variar. Na Europa, em geral, a Semana vai de 18 a 25 de Janeiro, como é o caso em Portugal.

2. O movimento ecuménico assume as características de cada época. Na crónica do Domingo passado, disse que o Papa Francisco, no seu discurso anual ao Corpo Diplomático acreditado na Santa Sé, mostrou-nos, de forma documentadíssima, a nossa tarefa urgente de desenvolver todo o género de iniciativas para encontrar os caminhos da paz, num mundo semeado de guerras. Estas não são inevitáveis, são um desafio à nossa imaginação.

Um dos grandes teólogos do movimento ecuménico, Hans Küng (1928-2021), sustentava que «não haverá paz entre as nações, se não existir paz entre as religiões; não haverá paz entre as religiões, se não existir diálogo entre as religiões; não haverá diálogo entre as religiões, se não existirem padrões éticos globais; o nosso planeta não irá sobreviver se não houver um ethos global, uma ética para o mundo inteiro».

As religiões andaram em guerra e, em muitos sítios, ainda andam. Inclusivamente, as várias Igrejas cristãs viveram em grandes conflitos.

Ao promover a Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos ao serviço de toda a Humanidade, não podemos esquecer que, presentemente, países com grande presença de cristãos vivem em guerra entre si. Este facto nega a condição de cristãos. No entanto, não se pode desistir da proposta de oração porque a condição dos cristãos, neste mundo, é a de viver sempre em processo de conversão.

Qual tem sido o papel do cristianismo na guerra entre a Rússia e a Ucrânia e no interior da Rússia e da Ucrânia? O cristianismo é uma força anti-guerra ou não?

Todos os movimentos tendem a envelhecer com o envelhecimento dos seus membros. Não seria importante incidir a Oração pela Unidade dos Cristãos no movimento da JMJ?

Em Agosto passado, Lisboa acolheu jovens cristãos de todo o mundo que, durante uma semana, viveram em fraterno convívio, oração e reflexão.

Na viagem de regresso a Roma, o Papa declarou que era a sua quarta JMJ, a mais numerosa e a melhor preparada. «Os jovens são uma surpresa. Os jovens são jovens, fazem brincadeiras – a vida é assim! –, mas procuram olhar para a frente... eles são o futuro. A questão é acompanhá-los, o problema é saber acompanhá-los, e fazer com que não se separem das raízes. Por isso insisto tanto no diálogo entre idosos e jovens, avós com netos. (…) Os jovens são religiosos; procuram uma fé não invasiva, uma fé não artificial nem legalista, mas um encontro com Jesus Cristo. E isto não é fácil. É uma experiência...»[1].

Esta proposta de combinar a oração pela unidade dos cristãos e a JMJ pode-se dizer que corre o risco de se anularem mutuamente, em vez de ser um mútuo robustecimento. De qualquer modo, seria uma possível perspectiva de futuro.

Neste mesmo período, realizou-se o Fórum Económico Mundial em Davos (Suíça). O Papa Francisco enviou uma importante mensagem. Começou por dizer que esta reunião anual «tem lugar num clima muito preocupante de instabilidade internacional.

«A paz que os povos do nosso mundo desejam não pode ser senão fruto da justiça (cf. Isaías 32, 17). Por conseguinte, não basta pôr de lado os instrumentos bélicos, mas há que afrontar as injustiças que são a raiz dos conflictos. Entre as mais significativas está a fome, que continua a assolar regiões inteiras do mundo, enquanto outras se caracterizam por um excessivo desperdício de alimentos»[2].

3. Em cada ano, é um país diferente que elabora a Oração pela Unidade dos Cristãos. Este ano foi Burkina Faso. Sentiram a necessidade de centrar a oração no que há de mais decisivo no Cristianismo: o amor de Deus no amor do próximo

 É um país localizado na África Ocidental que inclui os países vizinhos do Mali e Nigéria. Tem 21 milhões de habitantes pertencentes a sessenta etnias. Em termos religiosos, aproximadamente, 64% da população é muçulmana, 9% é adepto das religiões tradicionais africanas e 26% professa a fé cristã (20% católicos, 6% protestantes).

O país tem sofrido com a proliferação de ataques terroristas, a ilegalidade e o tráfico de pessoas. Esta situação já causou mais de três mil mortos e cerca de dois milhões de pessoas foram deslocadas no interior do país.

O convite para trabalhar em conjunto, nos textos da Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos de 2024, desafia as diferentes Igrejas de Burkina Faso a caminhar, orar e trabalhar juntas em amor mútuo durante este período difícil para o seu país. O amor de Cristo, que une todos os cristãos, é mais forte do que as suas divisões e os cristãos de Burkina Faso comprometem-se a trilhar o caminho do amor de Deus no amor ao próximo. Estão confiantes de que o amor de Deus vencerá a violência que atualmente aflige o seu país.

A insistência na Oração pela Unidade dos Cristãos lembra-nos que, sem espírito de abertura permanente ao mistério de Deus e do ser humano, não conseguimos viver a fé cristã.

 

 

21 Janeiro 2024

Uma questão de tempos! - Pe. Manuel João, MC

 Uma questão de tempos!

 

Marcos 1,14-20O tempo está cumprido e o Reino de Deus está próximo; convertei-vos e acreditai no Evangelho!

 

Com o terceiro domingo do Tempo Comum, retomamos o nosso caminho de fé, revivendo a aventura de Jesus tal como nos é apresentada no evangelho de São Marcos, o primeiro dos evangelhos, no qual podemos respirar a frescura dos inícios. Que o Espírito Santo nos conceda "a graça dos começos" para retomarmos o caminho com o entusiasmo da primeira hora! 

Estamos conscientes de que a tarefa está longe de ser fácil. A experiência dos nossos fracassos pessoais, o sentimento de cansaço a nível eclesial e o ambiente de indiferença e ateísmo que nos rodeia contribuem para nos desmotivar. Em todo o caso, a perspetiva de escolher entre duas alternativas antagónicas (não há terceira via!) pode estimular-nos: por um lado, o sério risco de sermos sugados pelo vórtice da falta de sentido da vida; por outro, a crença na perene novidade do Evangelho. 

No fundo, trata-se da escolha dramática que a palavra de Deus nos apresenta desde sempre: "Eis que hoje te proponho a vida e o bem, a morte e o mal". (Deuteronómio 30,15). Sabemos bem que, para percorrer o caminho da vida, precisamos da graça, pois: "até os jovens trabalham e se cansam, os adultos tropeçam e caem; mas os que esperam no Senhor recuperam as forças, ganham asas como águias, correm sem se cansar, caminham sem se fatigar". (Isaías 40:30-31).

 

1. Uma questão de "tempos"!

Gostaria de abordar a Palavra de Deus de hoje na perspetiva do "tempo". A categoria do tempo une as três leituras. 

Na primeira leitura, fala-se de uma questão de dias: Jonas é enviado a Nínive, "uma cidade muito grande, de três dias de caminho", e o profeta começa a percorrê-la "durante um dia de viagem", anunciando um prazo: "Mais quarenta dias e Nínive será destruída!"

Na segunda leitura, o apóstolo Paulo diz à comunidade de Corinto que "o tempo escasseia".

No Evangelho, Jesus proclama que "o tempo está cumprido!". Encontramos ainda no evangelho o advérbio temporal "agora", que é um forte apelo à urgência destes "tempos". 

Há tempos e tempos, tempos de "chronos" e tempos de "kairos", tempos neutros e tempos "oportunos". O nosso problema é não saber discerni-los (Lucas 12,54-56). "Tudo tem o seu tempo, e cada acontecimento tem o seu tempo debaixo do céu", diz o Qohèlet (3,1). Creio que se praticássemos o discernimento dos tempos, a nossa vida mudaria radicalmente. 

 

2. Há um tempo para cada coisa!

Penso, em primeiro lugar, que a anotação do Evangelho: "Depois de João ter sido preso, Jesus partiu para a Galileia, anunciando o Evangelho de Deus", é muito significativa. Há um tempo para começar e um tempo para terminar. João termina o "seu tempo" e Jesus percebe que chegou o "seu tempo": deixa Nazaré e vai para Cafarnaum, junto ao lago. Jesus sente que chegou o momento da passagem de testemunho e de assumir o lugar de João. Isto exige, de ambos, uma grande coragem: para Jesus, é o momento de assumir abertamente e arriscar a sua própria vida; para João, é o momento de se retirar! 

Este discernimento falta-nos muitas vezes, numa sociedade em que os adultos se iludem de que permanecem eternamente jovens, de que podem começar uma nova vida em qualquer idade, ou de que se agarram a um estilo de vida que já deviam ter a coragem de "largar". Por outro lado, muitos jovens continuam a adiar o momento da tomada das grandes decisões. 

 

3. O tempo está cumprido, mas... tornou-se breve!

Num simples versículo, Marcos apresenta a síntese da pregação de Jesus em quatro pontos: "O tempo está cumprido e o Reino de Deus está próximo; arrependei-vos e acreditai no Evangelho!"Dois anúncios, seguidos de dois convites (imperativos)!

 

O tempo está cumprido e o Reino de Deus está próximo: o tempo amadureceu e Deus tornou-se próximo. É um tempo favorável, uma oportunidade a aproveitar sem duvidar. "Aquele tempo" de Jesus é o início de um tempo que dura ainda hoje, para o anúncio do Evangelho. Mas isto não significa que eu possa esperar por "amanhã", porque é "hoje": "Eis agora o tempo favorável, eis agora o dia da salvação!" (2 Coríntios 6,2). É por isso que São Paulo sublinha que "o tempo escasseia". Não há tempo a perder! E o autor da Carta aos Hebreus diz-nos: "Exortai-vos, antes, uns aos outros todos os dias, enquanto dura este dia!" (3,13). É hoje que Jesus passa e nos convida a segui-lo. Santo Agostinho dirá: "Teme a Deus que passa uma vez e não volta mais!

 

Convertei-vos e acreditai no Evangelho! O apelo à conversão assusta-nos, digamo-lo! Ouvimo-lo muitas vezes e talvez, com um esforço de boa vontade, tenhamos até tentado mudar, mas com poucos resultados e desanimámos. E arriscamo-nos a deixar de levar a sério este convite. Porquê este nosso fracasso? Talvez porque tenha havido pouco evangelho na nossa "conversão". Passámos ao lado da segunda parte do convite do Senhor: "Acreditai no Evangelho". O Evangelho é a alavanca para a "mudança de mentalidade" (é isto que significa "conversão"). E não se muda de um dia para o outro. É preciso um trabalho paciente e quotidiano de escuta da Palavra de Deus e de abertura à ação do Espírito Santo. A primeira conversão é à Palavra e à oração!

 

4. Um tempo de urgência!

É uma conversão permanente, mas isso não nos retira a urgência de responder ao apelo de Jesus: "Segue-me!". Um dos traços mais marcantes de Jesus no evangelho de Marcos é o sentido de movimento, de pressa e de urgência. Encontramos o advérbio "imediatamente" (euthys) inúmeras vezes: onze vezes no primeiro capítulo. Simão e André, Tiago e João captam este sentido de urgência e "deixaram imediatamente as redes e seguiram-no", sem saberem ainda como ou porquê. Os ninivitas de Jonas também se apercebem da gravidade do momento e convertem-se imediatamente. Esta urgência do tempo que "se faz breve" leva Paulo a dizer aos Coríntios que relativizem tudo o resto. E nós, temos este sentido de urgência em seguir Jesus?

 

Exercício para a semana

No início do dia, lembre-se do girassol e vire a corola do seu coração para o Sol de Cristo. E cada um dos seus dias será um dia de "conversão"!

 

P. Manuel João Pereira Correia 

Castel d'Azzano (Verona) 20 de janeiro de 2024 

p.mjoao@gmail.com

domingo, 14 de janeiro de 2024

CAMINHOS DA PAZ Frei Bento Domingues, O.P.

 

 

1. Pode parecer uma banalidade dizer que o conhecimento do mapa mundial das guerras só interessa para descobrir os caminhos possíveis da paz. O Papa Francisco, no seu discurso anual ao Corpo Diplomático acreditado na Santa Sé, mostrou-nos, de forma documentadíssima, a nossa tarefa urgente de desenvolver todo o género de iniciativas para encontrar os caminhos da paz, num mundo semeado de guerras. Estas não são inevitáveis, são um desafio à nossa imaginação. Quando temos pela frente um mapa tão pormenorizado, embora não seja exaustivo, é avassalador. Pode gerar um sentimento de impotência absoluta.

O Papa mostra, pelo contrário, que a paz é possível. Exige uma mobilização geral, a partir de esforços locais e globais. Por isso, não estamos dispensados de conhecer os interesses de quem faz e promove as monstruosidades da guerra[1]. Não é um conhecimento inútil, pois é preciso tornar evidente, para todos, essas monstruosidades.

O Papa Francisco não se cansa de repetir: quem faz a guerra esquece a humanidade. Não parte do povo, não olha para a vida concreta das pessoas, mas coloca acima de tudo interesses egoístas, de parte e de poder. A guerra baseia-se na lógica diabólica e perversa das armas, que é contraditória com a vontade de Deus. E, assim, vai contra as pessoas comuns que desejam a paz; e que, em cada conflito, são as verdadeiras vítimas que pagam as loucuras da guerra com a própria pele.

Estas loucuras já foram descritas pelo Padre António Vieira (1608-1697): «É a guerra aquele monstro que se sustenta das fazendas, do sangue, das vidas e, quanto mais come e consome, tanto menos se farta. É a guerra aquela tempestade terrestre que leva os campos, as casas, as vilas, os castelos, as cidades e, talvez num momento, sorve os reinos e monarquias inteiras. É a guerra aquela calamidade composta de todas as calamidades em que não há mal algum que se não padeça ou se não tema, nem bem que seja próprio e seguro – o pai não tem seguro o filho; o rico não tem segura a fazenda; o pobre não tem seguro o seu suor; o nobre não tem segura a honra; o eclesiástico não tem segura a imunidade; os religiosos não têm segura a sua cela; e até Deus, nos templos e nos sacrários, não está seguro»[2].

Como dizia Martin Luther King (1929-1968), o que me preocupa não é nem o grito dos corruptos, dos violentos, dos desonestos, dos sem carácter, dos sem ética... O que me preocupa é o silêncio dos bons.

2. É atribuída a António Guterres esta síntese: Não pode haver paz duradoura sem solidariedade. Não há coesão social sem direitos humanos. Não há justiça sem igualdade.

Como se diz na Encíclica Fratelli Tutti (2020), durante décadas, pareceu que o mundo tinha aprendido com tantas guerras e fracassos e, lentamente, ia caminhando para várias formas de integração. Por exemplo, avançou o sonho duma Europa unida, capaz de reconhecer raízes comuns e regozijar-se com a diversidade que a habita. Lembremos «a firme convicção dos Pais fundadores da União Europeia, que desejavam um futuro assente na capacidade de trabalhar juntos para superar as divisões e promover a paz e a comunhão entre todos os povos do continente». E ganhou força também o desejo duma integração latino-americana, e alguns passos começaram a ser dados. Noutros países e regiões, houve tentativas de pacificação e reaproximações que foram bem-sucedidas e outras que pareciam promissoras.

Mas a história dá sinais de regressão. Reacendem-se conflitos anacrónicos que se consideravam superados, ressurgem nacionalismos fechados, exacerbados, ressentidos e agressivos. Em vários países, uma certa noção de unidade do povo e da nação, penetrada por diferentes ideologias, cria novas formas de egoísmo e de perda do sentido social mascaradas por uma suposta defesa dos interesses nacionais. Isto lembra-nos que «cada geração deve fazer suas as lutas e as conquistas das gerações anteriores e levá-las a metas ainda mais altas. É o caminho.

O bem, como aliás o amor, a justiça e a solidariedade não se alcançam duma vez para sempre; hão de ser conquistados cada dia. Não é possível contentar-se com o que já se obteve no passado nem instalar-se a gozá-lo, como se esta situação nos levasse a ignorar que muitos dos nossos irmãos ainda sofrem situações de exploração que nos interpelam a todos.

«Abrir-se ao mundo» é uma expressão de que, hoje, se apropriaram a economia e as finanças. Refere-se exclusivamente à abertura aos interesses estrangeiros ou à liberdade dos poderes económicos para investir, sem entraves nem complicações, em todos os países. Os conflitos locais e o desinteresse pelo bem comum são instrumentalizados pela economia global para impor um modelo cultural único. Esta cultura unifica o mundo, mas divide as pessoas e as nações, porque «a sociedade cada vez mais globalizada torna-nos vizinhos, mas não nos faz irmãos». Encontramo-nos mais sozinhos do que nunca neste mundo massificado, que privilegia os interesses individuais e debilita a dimensão comunitária da existência.

Em contrapartida, aumentam os mercados, onde as pessoas desempenham funções de consumidores ou de espectadores. O avanço deste globalismo favorece normalmente a identidade dos mais fortes que se protegem a si mesmos, mas procura dissolver as identidades das regiões mais frágeis e pobres, tornando-as mais vulneráveis e dependentes. Desta forma, a política torna-se cada vez mais frágil perante os poderes económicos transnacionais que aplicam o lema «divide e reinarás».

Pelo mesmo motivo, favorece também uma perda do sentido da história que desagrega ainda mais. Nota-se a penetração cultural duma espécie de «desconstrucionismo», em que a liberdade humana pretende construir tudo a partir do zero. De pé, deixa apenas a necessidade de consumir sem limites e a acentuação de muitas formas de individualismo sem conteúdo[3].

3. Antes de terminar esta crónica, é importante referir que o Papa Francisco, no passado dia 10, recebeu os representantes do DIALOP (Projecto de Diálogo Transversal). Trata-se de uma iniciativa nascida, em 2014, entre socialistas e cristãos para uma ética social comum e uma ecologia integral.

O Papa salientou que é na imaginação que a inteligência, a experiência e a memória histórica se encontram para criar, aventurar-se e arriscar novos caminhos de paz. Recordou ainda que, ao longo dos séculos, foram os grandes sonhos de liberdade e igualdade, de dignidade e fraternidade – reflexo do sonho de Deus – que produziram avanços e progressos.

O DIALOP exige coragem para romper moldes pré-fabricados e atenção aos mais débeis, os que mais precisam de leis que os respeitem.

 

 

 

14 Janeiro 2024



[1] Cf. Discurso do Papa francisco aos Membros do Corpo Diplomático acreditado junto da Santa Sé para as felicitações de Ano Novo, 08.01.2024, www.vatican.va

[2] Sermão histórico nos anos da Rainha D. Maria Francisca de Saboia, 1668

[3] Fratelli Tutti, nº 10-13

Retomar a vida como chamado! - Pe. João ,MC

 Retomar a vida como chamado!

Ano B - Tempo Comum - 2º Domingo: João 1,35-42: Vinde e vede!

 

Estamos no segundo domingo do Tempo Comum, o tempo litúrgico do "quotidiano" da vida. Durante este ano (ciclo B), leremos o Evangelho de São Marcos. Começámos no domingo passado com a narração do batismo de Jesus. A liturgia, porém, quis deter-se na cena pós-batismal. Contemplámos a Palavra de Deus e assistimos à sua Epifania. Fomos chamados por João Batista ao Jordão e mergulhados com Jesus nas águas do batismo. E agora, o que é que fazemos? Cada um regressa à sua casa, à sua vida anterior? A Palavra de Deus quer responder a esta pergunta. 

As leituras de hoje têm uma clara orientação vocacional. O que é que esta Palavra sugere? Convida-nos a regressar à vida quotidiana com a consciência clara de que a nossa vida cristã é uma vocação, um chamamento a seguir Jesus, a ser seus discípulos. O que é que significa ser discípulo de Jesus? O Evangelho mostra-nos. 

 

"No dia seguinte [ao batismo de Jesus], João estava com dois dos seus discípulos" e, fixando o olhar em Jesus que passava, disse: "Eis o Cordeiro de Deus!"

Jesus passa e João fixa o seu olhar nele e aponta para ele. Esta é a vocação do cristão: ser um dedo que aponta para Jesus! "Penso que o Senhor não mudou o seu estilo: passa, pelas ruas. Mas há alguém que o aponte nas ruas? Ou estaremos todos ocupados a apontar para ele nas igrejas?” (Ermes Ronchi).

 

O olhar de João é um olhar penetrante, que vê para dentro, em profundidade, como aquele que Jesus dirige a Pedro, logo a seguir. "Fixar o olhar" (emblepein) é um verbo grego que só encontramos aqui, duas vezes, em todo o Evangelho de João. Um olhar que questiona a nossa maneira de olhar as pessoas e as situações, muitas vezes de uma forma superficial que se detém nas aparências.

 

"Eis o Cordeiro de Deus!" João repete o que tinha dito no dia anterior: "Eis o cordeiro de Deus, aquele que tira o pecado do mundo!" Verdadeiramente agudo e profundo é este olhar que perscruta o coração de Jesus, a sua missão e o seu futuro. Em que cordeiro está João a pensar? Ao cordeiro pascal? No servo de Javé de que fala Isaías 53,4-7: "como um cordeiro levado ao matadouro"? A ambos, certamente! Neste primeiro capítulo do Quarto Evangelho, encontramos inúmeros títulos atribuídos a Jesus: Rabi, Messias, Cristo, Rei de Israel, Filho de Deus..., mas João utiliza este título muito particular que, diria eu, ninguém imaginaria. Deus não vem para reclamar um reino, mas para dar a sua vida e, assim, libertar a nossa. Este olhar de João questiona profundamente o nosso, que luta para se libertar de tantas imagens idólatras de Deus, que o apresentam como alguém que faz exigências e limita a nossa liberdade.

 

"Os seus dois discípulos, ouvindo-o falar assim, seguiram Jesus. Jesus voltou-se e, percebendo que eles o seguiam, perguntou-lhes: "Que procurais?" Eles responderam-lhe: "Rabi... onde moras?" Ele disse-lhes: "Vinde e vede". 

 

"O que procurais?" São as primeiras palavras de Jesus no Evangelho de João, sob a forma de uma pergunta. Jesus não começa com respostas, antes das perguntas. Fá-lo-á também, como Ressuscitado, com Maria Madalena: "Mulher, quem procuras?" (20,15). Ele coloca-nos também esta questão. O que é que queremos realmente? Que desejos profundos temos no nosso coração? O que é que procuramos realmente na nossa relação com Deus? É a primeira pergunta, mas talvez nunca a tenhamos feito, pensando que é óbvio o que queremos, quando na realidade ignoramos as necessidades profundas e verdadeiras que trazemos no coração.

 

"Rabi, onde moras?" Os dois respondem a Jesus com um pedido. É a pergunta de todos os homens: onde é que encontramos Deus? Esta pergunta interroga-nos também a nós, porque talvez nunca a façamos, pensando que já sabemos a resposta. E assim arriscamo-nos a não ouvir o convite para entrar na sua intimidade! 

 

"Vem e vê!" Jesus convida-nos a ver com os nossos próprios olhos. Muitas vezes limitamo-nos a viver uma fé do "Antigo Testamento", feita apenas de "escuta", esquecendo que Deus agora se tornou visível. Não é por acaso que o verbo "ver" aparece aqui várias vezes. Jesus dirá a Natanael: "Verás coisas maiores do que estas!" (v. 1,50). Pergunto a mim mesmo se espero realmente ver algo de novo ou se penso que já vi tudo! 

 

"Foram ver onde ele morava e ficaram com ele nesse dia; eram cerca de quatro horas da tarde".

Habitar e permanecer são dois verbos com uma carga simbólica e espiritual muito profunda. Sem "habitar" e "permanecer" com o Senhor, a nossa vida será plana e não terá "horas" especiais de experiências que recordaremos para sempre.

"Um dos dois que tinham ouvido as palavras de João e o seguiam era André, irmão de Simão Pedro. Ele encontrou primeiro o seu irmão Simão e disse-lhe: "Encontrámos o Messias" - que se traduz por Cristo - e conduziu-o a Jesus."

Um dos dois era André, e o outro? O outro permanecerá sempre anónimo ao longo do Evangelho, porque representa todos e cada um de nós. E como saberemos que experimentámos a presença do Senhor na nossa vida? Quando dissermos espontaneamente àqueles que encontramos: "Encontrámos o Messias!", conduzindo-os a Jesus! 

 

"Fixando nele o olhar, Jesus disse: "Tu és Simão, filho de João; serás chamado Cefas", que significa Pedro.

Esse olhar está também fixo em cada um de nós. O Senhor conhece-nos profundamente e olha-nos com amor. Recordar este olhar é fundamental para sermos "curados" de tantos olhares que nos encolhem e despersonalizam. Só o olhar de Cristo restitui a nossa dignidade e revela a nossa verdadeira identidade e missão. 

 

Exercício espiritual para a semana

1) Começar o dia reiterando a nossa disponibilidade para escutar o Senhor, repetindo como Samuel: "Fala, Senhor, porque o teu servo te escuta"; ou como o salmista: "Eis-me aqui, Senhor, para fazer a tua vontade".

2) Cultivar o olhar de Jesus sobre mim e sobre aqueles com quem me cruzo durante o dia.

P. Manuel João Pereira Correia
Castel d'Azzano (Verona) 13 de janeiro 2024

domingo, 7 de janeiro de 2024

A ORAGINALIDADE CRISTÃ DE DEUS Frei Bento Domingues, O.P.

 

1. Hoje, celebramos a Epifania de Jesus Cristo, isto é, a celebração do universalismo cristão. É costume dizer que toda a problemática em torno do Natal tem a marca do Ocidente litúrgico. A Epifania é marcada pelo Oriente.

Há muitos anos descobri os Três Reis do Oriente – Gaspar, Melchior e Baltazar – de Sophia de M.B. Andresen. Trata-se de uma multifacetada teologia narrativa muito original. É um grande poema em prosa e um poema não suporta nem dá explicações. Apresento apenas uma pequena passagem, só como convite a uma nova leitura, perante as dimensões da crise actual, na Igreja e na sociedade.

Os três reis têm inquietações muito diferentes, mas aqui, vou fixar-me na figura de Baltazar.

Este, depois de ter observado tudo, decepcionado com as consultas aos homens das ciências e da política, virou-se para a religião.

(…) Na manhã seguinte, dirigiu-se ao templo de todos os deuses. E leu estas palavras gravadas na pedra do primeiro altar: «Eu sou o deus dos poderosos e àqueles que me imploram concedo a força do domínio, eles nunca serão vencidos e serão temidos como deuses».

Seguiu o rei para o segundo altar e leu: «Eu sou a deusa da terra fértil e àqueles que me veneram concedo o vigor, a abundância e a fecundidade e eles serão belos e felizes como deuses».

Encaminhou-se o rei para o terceiro altar e leu: «Eu sou o deus da sabedoria e àqueles que me veneram concedo um espírito ágil e subtil, a inteligência clara e a ciência dos números. Eles dominarão os ofícios e as artes, eles se orgulharão como deuses das obras que criaram».

E tendo passado pelos três altares, Baltazar interrogou os sacerdotes: – Dizei-me onde está o altar do deus que proteja os humilhados e os oprimidos, para que eu o implore e adore?

Ao cabo de um longo silêncio, os sacerdotes responderam: – Desse deus nada sabemos.

Naquela noite, o rei Baltazar, depois de a Lua ter desaparecido atrás das montanhas, subiu ao cimo dos seus terraços e disse: – Senhor, eu vi. Vi a carne do sofrimento, o rosto da humilhação, o olhar da paciência. E como pode aquele que viu estas coisas não te ver? E como poderei suportar o que vi se não te vir?

A estrela ergueu-se muito devagar sobre o Céu, a Oriente. O seu movimento era quase imperceptível. Parecia estar muito perto da terra. Deslizava em silêncio, sem que nem uma folha se agitasse. Vinha desde sempre. Mostrava a alegria, a alegria una, sem falha, o vestido sem costura da alegria, a substância imortal da alegria.

E Baltasar reconheceu-a logo, porque ela não podia ser de outra maneira[1].

2. Quando se diz que o cristianismo aspira a ser universal, deve acrescentar-se que tem de respeitar e promover a originalidade de cada povo, de cada cultura. Sem esse cuidado, seria um falso universalismo, uma abstracção. Por isso, o cristianismo só vive bem num permanente esforço de inculturação sem fraccionismo eclesial: todos diferentes, mas em comunhão. A pergunta que os cristãos nunca podem evitar, em todos os tempos e lugares, é a do rei Baltazar: onde está o altar do deus que proteja os humilhados e os oprimidos, para que eu o implore e adore? Esta pergunta deveria percorrer as instituições católicas.

Diz-se que se corre o risco, neste momento, de novas divisões na Igreja. Esses movimentos reconhecem as grandes e originais dimensões do espírito reformista do Papa Francisco. O grande empreendimento deste Papa é a promoção de uma Igreja sinodal que implica caminhar juntos na comunhão, na participação e na missão.

Isto, ao nível de toda a cristandade, é um longo acontecimento que nunca pode estar resolvido. É uma Igreja em processo de mudança e quem não perceber isto não entende nada da originalidade da intervenção do Papa Francisco.

É ele próprio que acaba de nos incitar a «não ter medo da diversidade de carismas na Igreja». Pelo contrário, devemos alegrar-nos por vivenciar esta diversidade. Os cristãos precisam de compreender e viver o dom da diversidade. Se formos guiados pelo Espírito Santo, a riqueza, a variedade, a diversidade, nunca provocam conflito.

No mês que é marcado, no hemisfério norte, pela Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos – que este ano se celebra com o lema Amarás o Senhor teu Deus… e ao teu próximo como a ti mesmo (Lucas 10, 27) – o Papa deixa no vídeo (04.01.2024) um apelo para que, na diversidade, «a comunidade cristã cresça como um só corpo, o corpo de Cristo».

E conclui: «O Espírito recorda-nos que, acima de tudo, somos filhos amados de Deus. Todos iguais no amor de Deus e todos diferentes».

É um construir contínuo da Igreja de muitas igrejas por fidelidade aos seus começos.

3. Nunca se deve esquecer que o grande trabalho de Jesus, com os seus discípulos, foi fazê-los compreender que tinham de renunciar ao poder de dominação e converter-se ao poder de serviço.

São muitas as passagens dos Evangelhos sinópticos que realçam o contraste entre o poder mundano e o poder de servir: Sabeis que aqueles que vemos governar as nações as dominam e os seus grandes as tiranizam. Entre vós não deverá ser assim. Pelo contrário, quem, entre vós, quiser ser grande, seja o vosso servidor, e quem quiser ser o primeiro, entre vós, seja o servo de todos. Pois o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por todos[2].

Sem procurar a resposta à pergunta do rei Baltazar – onde está o altar do deus que proteja os humilhados e os oprimidos – perdemo-nos da originalidade cristã de Deus, fonte de alegria, e andaremos sempre à deriva.

07 Janeiro 2024



[1] Contos Exemplares, Figueirinhas, 200435, 143-165. 1ª Edição, 1962 da Livraria Morais

[2] Mc 20, 41-45; Mt 20, 24-28; Lc 22, 24-27

Muitos baptismos! - Pe. Manuel João, MC

 Muitos baptismos!

 

Marcos 1,7-11: "Tu és o meu Filho, o Amado".

 

A Festa do Batismo do Senhor é como que uma ponte entre as festividades do Natal e o Tempo Comum do ano litúrgico. Por um lado, conclui o tempo do Natal e as suas "epifanias", isto é, as manifestações aos pastores (os pobres), ao velho Simeão e à profetisa Ana (representando o povo de Israel fiel que esperava o Messias) e aos Magos (representando os povos pagãos); por outro lado, entramos no Tempo Comum, do qual esta festa é o primeiro domingo. De facto, a festa do Batismo celebra uma das três manifestações do Senhor que, nos primeiros séculos, estavam incluídas na festa da Epifania: a vinda dos Magos, o batismo de Jesus e as bodas de Caná. Passamos de um Jesus bebé de menos de dois anos para um Jesus adulto de trinta anos.

 

1. O significado profundo do batismo do Senhor

Hoje, habituados a ouvi-lo, não nos damos conta do escândalo que foi para os primeiros cristãos o facto de Jesus, aquele que não tinha pecado, ter começado a sua missão como discípulo de João Batista, sendo batizado por ele nas águas do Jordão.

Porque é que Jesus se deixou batizar? Três razões podem ser apontadas. A primeira: Jesus está "lá" onde percebe que Deus está a agir. É por isso que, ouvindo os ecos da voz do Batista, deixa Nazaré e vai para "Betânia, além do Jordão, onde João baptizava" (João 1,28). 

Porque é que Jesus foi batizado? Três razões podem ser apontadas. A primeira: Jesus está "lá" onde percebe que Deus está a agir. É por isso que, ouvindo os ecos da voz do Batista, deixa Nazaré e vai para "Betânia, além do Jordão, onde João baptizava" (João 1,28). Segundo: Jesus chega não como um privilegiado, mas em solidariedade com os seus irmãos. Terceiro: Jesus, desde o início da sua missão, manifesta a sua opção de estar entre os pecadores, até ao ponto de ser considerado um deles e morrer entre dois malfeitores.

O episódio do batismo de Jesus é de uma importância singular, um ponto de viragem na vida do Senhor, tanto que no evangelho de Marcos, o primeiro dos evangelhos, constitui o início da sua missão: "Início do evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus" (1,1). (É como se) o que aconteceu antes não tenha importância. É "hoje" que o Messias se apresenta na cena mundial. "Hoje" ele é ungido como o "Cristo" ("o ungido") do Senhor. "Hoje" Jesus toma consciência - humanamente falando - da sua missão. "Hoje", poderíamos dizer, "nasceu para nós o Salvador, que é Cristo Senhor" (cf. Lc 2,11), segundo o que diz o salmista: "Tu és meu filho, eu hoje te gerei" (Sal 2,7).

O relato de Marcos, na sua essencialidade e aparente simplicidade, é de grande significado, porque nos apresenta Jesus numa "epifania" trinitária. Hoje, de certa forma, é a epifania da Santíssima Trindade. Os céus estão a abrir-se, depois de séculos sem profetas, durante os quais os céus pareciam estar fechados, e Deus responde finalmente à súplica do seu povo: "Ah, se rasgasses os céus e descesses! (Isaías 63,16-17).

Hoje, festa do Batismo do Senhor, festa do seu "nascimento" pela investidura messiânica, é também a festa do nosso batismo. Hoje, os céus rasgam-se para nós, o Espírito vem habitar os nossos corações, e o Pai faz ouvir a sua voz, dizendo a cada um de nós: "Tu és o meu Filho, o Amado!"; "Tu és a minha Filha, a Amada!

2. Três testemunhas, três baptismos

"Três são os que dão testemunho: o Espírito, a água e o sangue, e estes três concordam" (segunda leitura, 1 João 5,1-9). Três testemunhas concordantes que dão testemunho do amor de Deus por nós! Três testemunhos que provêm de três "baptismos": o da água ("Eu baptizei-vos com água..."), o do Espírito ("Ele batizar-vos-á no Espírito Santo") e o do sangue ("Tenho um batismo no qual serei batizado, e como estou angustiado até que ele se realize!", Lucas 12,50). Mas é o Espírito Santo que une e torna uno e verdadeiro este "tríplice batismo": "E é o Espírito que dá testemunho, porque o Espírito é a verdade. Sem o Espírito, o batismo na água não passa de um batismo de João, uma mera expressão do nosso desejo de renascimento. Sem o Espírito, o "batismo de sangue", o do martírio, do testemunho, não é possível. Sem o Espírito, não nasceríamos de novo e estaríamos ainda sob o domínio da Lei.

 

3. Os muitos "baptismos

Há algumas décadas falava-se de "cristãos anónimos", expressão criada pelo grande teólogo Karl Rahner (+1984) para designar aqueles que são salvos pela graça de Cristo, mesmo estando fora da comunidade cristã (cf. LG 16 e GS 22). Hoje, infelizmente, poderíamos falar de cristãos que se tornaram "anónimos", porque perderam o seu nome de "cristãos" e já não se lembram do "Nome" em que foram baptizados. Isto deve-se a uma fé adormecida e não vivida, à indiferença ou mesmo à apostasia. Deus queira que o Nome do Cordeiro que levamos na nossa testa (ver Apocalipse 14:1) nunca seja substituído pelo número massificador da "besta"! (ver Apocalipse 13,12-18).

Na realidade, a humanidade não está dividida entre crentes e não crentes, mas entre crentes e idólatras. Tal como Paulo questionou em Éfeso doze seguidores do Baptista, também nós poderíamos ser questionados: "Que batismo recebestes?" (Actos dos Apóstolos 19:3). Sim, porque todos nós somos "baptizados", isto é, "mergulhados" (etimologicamente, baptismo significa imersão!) na realidade onde acreditamos encontrar a vida, a felicidade, o sentido da existência. Alguns são baptizados/imersos no Oceano infinito do Amor de Deus, onde correm os mil rios de amor, nas suas diferentes expressões de solidariedade, compaixão, justiça, doação.... Outros, pelo contrário, arriscam-se a viver baptizados/imersos no mar poluído dos negócios, do dinheiro, da injustiça do egoísmo... Que batismo recebeste?

 

4. A que fonte sacias a tua sede?

A água-viva em que fomos regenerados torna-se também a fonte à qual voltamos para saciar a nossa sede: "Ó povo sedento, vinde à água!" (primeira leitura, Isaías 55,1-11). O nosso batismo é uma fonte de frescura, de juventude, de alegria. "Tiraremos com alegria das fontes da salvação!", proclama o refrão do hino escolhido como salmo responsorial (Isaías 12,1-6). Infelizmente, porém, muitas vezes saciamos a nossa sede em fontes envenenadas. 

Apresento-vos uma história, lida não me lembro onde.

Numa certa aldeia, aconteceu que a fonte onde as pessoas iam buscar água, por qualquer razão, ficou contaminada e, sem que as pessoas se apercebessem, todos começaram a ficar loucos. Então, Deus disse a um santo eremita que fosse à aldeia avisar toda a gente que a fonte no meio da praça estava envenenada e os estava a enlouquecer a todos. Mas os seus companheiros de aldeia não lhe deram qualquer crédito e começaram a troçar dele: "Então, segundo o senhor, todos nós somos loucos e o senhor é o único sensato! E quanto mais ele os alertava, mais eles zombavam dele. A certa altura, as autoridades da aldeia consideraram que o eremita era um perigo para todos e decidiram condená-lo à morte. Na iminência de ser morto, o eremita exprime um último desejo: beber água da fonte! Como um último desejo nunca é recusado, trouxeram-lhe a água. O eremita bebeu e - oh prodígio! - começou a raciocinar como eles. Considerando-o "curado", pouparam-lhe a vida!

Quem tem ouvidos para ouvir, que ouça!

 

Exercício espiritual da semana

 

1) Começa o teu dia mergulhando, de cada vez, nas águas regeneradoras do teu batismo, através do sinal da cruz.

2) Abrir a Bíblia e meditar o texto da primeira leitura: Isaías 55,1-11.

 

P. Manuel João Pereira Correia

Castel d'Azzano (Verona)

p.mjoao@gmail.com

terça-feira, 2 de janeiro de 2024

OS GRITOS DO PAPA FRANCISCO Frei Bento Domingues, O.P.

 

1. No Público do dia 26 deste mês, Alexandra Lucas Coelho fez uma impressionante reportagem, de quatro páginas, sobre o Natal em Belém. O Público e a autora estão de parabéns.

Conta-nos que uma artista pôs uma incubadora com um Jesus morto pelas bombas e colocou-a no pátio da Basílica da Natividade, bem no caminho de quem passa. Cristo nasceu aqui há 2023 anos, crêem os cristãos. Este ano, em Belém, não há festa, mas houve missa de Natal. Na homilia, o patriarca destacou que guerra e ocupação têm de acabar. Foi o Natal mais triste de sempre. «A Europa vem rezar na nossa igreja e não faz nada contra este genocídio». Mais de 100 mortos num ataque de Israel em Gaza na noite de Natal!

Quem não se cala e grita a sua indignação é o Papa Francisco e insiste que também nós não nos devemos calar. Na sua Mensagem Urbi et Orbi, deste Natal, disse que, na Bíblia, ao Príncipe da paz opõe-se o «príncipe deste mundo» que, semeando a morte, actua contra o Senhor, «amante da vida». Vemo-lo actuar em Belém, quando, depois do nascimento do Salvador, se verifica a matança dos inocentes. Quantas matanças de inocentes no mundo! No ventre materno, nas rotas dos desesperados à procura de esperança, nas vidas de muitas crianças cuja infância é devastada pela guerra. São os pequeninos Jesus de hoje, estas crianças cuja infância é devastada pela guerra, pelas guerras.

Deste modo, dizer «sim» ao Príncipe da paz significa dizer «não» à guerra, a toda a guerra, à própria lógica da guerra, que é viagem sem destino, derrota sem vencedores, loucura indesculpável. Mas, para dizer «não» à guerra, é preciso dizer «não» às armas. Com efeito, se o ser humano, cujo coração é instável e está ferido, encontrar instrumentos de morte nas mãos, mais cedo ou mais tarde, usá-los-á. E como se pode falar de paz, se cresce a produção, a venda e o comércio das armas? Hoje, como no tempo de Herodes, as conspirações do mal, que se opõem à luz divina, movem-se à sombra da hipocrisia e do escondimento. Quantos massacres armados acontecem num silêncio ensurdecedor, ignorados de tantos! O povo, que não quer armas, mas pão, que tem dificuldade em acudir às despesas quotidianas, ignora quanto dinheiro público é destinado a armamentos. E, contudo, devia sabê-lo! Fale-se disto, escreva-se sobre isto, para que se conheçam os interesses e os lucros que movem os cordelinhos das guerras.

O profeta Isaías deixou escrito que virá um dia em que «uma nação não levantará a espada contra outra»; um dia em que os homens «não se adestrarão mais para a guerra», mas «transformarão as suas espadas em relhas de arado e as suas lanças em foices». Com a ajuda de Deus, esforcemo-nos para que se aproxime esse dia! Isto foi proclamado para toda a gente, crentes e não crentes.

2. Nas felicitações de Natal aos cardeais, Bergoglio lembrou que, à distância de sessenta anos do Concílio, ainda se debate sobre a divisão entre «progressistas» e «conservadores», mas esta não é a diferença. A verdadeira diferença é entre «apaixonados» e «rotineiros». Esta é a diferença. Só quem ama, pode caminhar.

Termina, dizendo que o Senhor Jesus, Verbo Incarnado, nos dê a graça da alegria no serviço humilde e generoso. E, por favor (vo-lo recomendo!), não percamos o humor, que é saúde! E pede para rezarem por ele diante do presépio.

Bergoglio escolheu o nome de Francisco para que a orientação de todo o seu pontificado nunca se desviasse da espiritualidade de S. Francisco de Assis. Para ele, o Presépio é como um Evangelho vivo que transvaza das páginas da Sagrada Escritura. Ao mesmo tempo que contemplamos a representação do Natal, somos convidados a colocar-nos espiritualmente a caminho, atraídos pela humildade d’Aquele que Se fez homem a fim de Se encontrar com toda a humanidade e a descobrir que nos ama tanto, que Se uniu a nós para podermos, também nós, unir-nos a Ele e ao seu caminho[1].

Devemos agradecer ao Papa o ter alargado o tempo de preparação da última fase do Sínodo para que tenhamos, cada vez mais, lideranças apaixonadas, nas comunidades cristãs, para superar as rotineiras que não andam nem deixam andar.

3. Por iniciativa de Paulo VI, o primeiro dia de Janeiro de cada ano é dedicado à reflexão, aos protestos, aos movimentos que procuram despertar os cristãos para as formas de dizer não à guerra e descobrir caminhos de paz. O impacto dessas Mensagens depende muito do que elas provocam, a nível mundial, segundo os problemas de cada país e as movimentações e acções que suscita. Não podemos esquecer, por exemplo, a importância clandestina e pública que tiveram na denúncia das nossas guerras coloniais.

Para não se cair na rotina destes Dias Mundiais, é importante estar atento aos problemas da guerra e da paz, segundo as situações mais problemáticas de cada época. Não basta pensar nas circunstâncias de cada país porque, mais uma vez, a Fratelli Tutti obriga a tomar, como próprios, os problemas de toda a humanidade. Esta dimensão universal está bem destacada na Mensagem para 2024, que intitula Inteligência Artificial e Paz. Poderá parecer que se trata de um assunto limitado e abstracto. Pelo contrário, está a afectar a vida de todos de várias maneiras:

«No início do novo ano, tempo de graça concedido pelo Senhor a cada um de nós, quero dirigir-me ao Povo de Deus, às nações, aos Chefes de Estado e de Governo, aos Representantes das diversas religiões e da sociedade civil, a todos os homens e mulheres do nosso tempo para lhes expressar os meus votos de paz».

O progresso da ciência e da tecnologia deve servir a paz e não a guerra que é devastadora. Como diz o Papa, a imensa expansão da tecnologia deve ser acompanhada por uma adequada formação da responsabilidade pelo seu desenvolvimento. A liberdade e a convivência pacífica ficam ameaçadas, quando os seres humanos cedem à tentação do egoísmo, do interesse próprio, da ânsia de lucro e da sede de poder. Por isso, temos o dever de alargar o olhar e orientar a pesquisa técnico-científica para a prossecução da paz e do bem comum, ao serviço do desenvolvimento integral do ser humano e da comunidade.

O Papa insiste que «a dignidade intrínseca de cada pessoa e a fraternidade, que nos une como membros da única família humana, devem estar na base do desenvolvimento de novas tecnologias e servir como critérios indiscutíveis para as avaliar antes da sua utilização, para que o progresso digital possa verificar-se no respeito pela justiça e contribuir para a causa da paz. Os avanços tecnológicos que não conduzem a uma melhoria da qualidade de vida da humanidade inteira, antes pelo contrário agravam as desigualdades e os conflitos, nunca poderão ser considerados um verdadeiro progresso».

Entramos no novo Ano com velhas e novas incertezas políticas, sociais e eclesiais. As autênticas formas de escutar e acolher os gritos do Papa serão novas iniciativas para vencer, em 2024, as expressões que se tornaram rotineiras e perderam a capacidade de nos fazer acreditar que podemos mudar.

Façamos um ano mais feliz!

 

31 Dezembro 2023



[1] Para Francisco, Carta Apostólica Admirabile Signum sobre o Presépio, 2019