A paixão e a política19 DE MARÇO DE 2016 00:02
Por Anselmo Borges
“Pascal observou agudamente nos Pensamentos: "Jesus estará em agonia até ao fim do mundo; é preciso não dormir durante este tempo." Todos sabemos do "calvário" do mundo, e as personagens são as mesmas.
1. Jesus sabia que, a continuar nas suas palavras, atitudes e comportamentos, o que o esperava era a morte, condenado pelos poderes religiosos e políticos. Assim, realizou uma ceia, a Última Ceia: "Isto é o meu corpo", "este é o cálice do meu sangue". Aquele pão e aquele vinho são a sua pessoa entregue, para dar testemunho da Verdade e do Amor.
2. Judas era discípulo, mas sentiu-se enganado, porque Jesus não tomava o poder. Assim, entregou-o, tendo recebido trinta moedas de prata. Depois, perdido, enforcou-se. De que valera aquilo? Mas o dinheiro, em conluio com o poder político, continua a ser o móbil da entrega de milhões de inocentes à ignomínia e à morte.
3. Fora Caifás, o sumo sacerdote, que dera este conselho: "Interessa que morra um só homem pelo povo." Tinha medo do poder dos romanos. Quantos inocentes não foram e são vítimas da razão de Estado ao longo dos tempos!
4. No Getsémani, Jesus entrou em pavor e angústia, pôs-se a rezar instantemente e suou sangue. Deus aparentemente não o ouviu, até os discípulos mais íntimos adormeceram. Todos, de um modo ou outro, fomos, seremos, confrontados com horas do horror da solidão mortal.
5. Jesus é condenado em primeiro lugar pela religião oficial, cujos sacerdotes viram os seus poderes e privilégios ameaçados. Do pior que há: viver à custa da religião e condenar à humilhação, à submissão e indignidade, à violência, à morte, utilizando o santo nome de Deus.
6. Pedro era um homem espontâneo, amigo e generoso. Tinha prometido que acompanharia Jesus para todo o lado. Seguiu-o de longe até à casa do sumo sacerdote. Aí, uma criada atirou-lhe: "Esse também estava com ele." Pedro acobardou-se e negou o Mestre. Depois, recordou-se da palavra de Jesus: "Antes de o galo cantar, negar-me-ás três vezes." "E, vindo para fora, chorou amargamente." Ainda hoje aparece por vezes um galo nas torres das igrejas lembrando o facto. Pedro foi o primeiro papa. A Igreja está assente na fé de Pedro, uma fé vacilante e sempre ameaçada. "Senhor, aumentai a minha fé."
7. O conselho dos anciãos do povo, sumos sacerdotes e escribas levaram Jesus ao seu tribunal. Não tendo poder para o executar, entregaram-no a Pilatos, o governador romano, representando o império. Pilatos ter-se-á apercebido da inocência de Jesus. Mas, ao ver que os judeus se não calavam e que podiam acusá-lo ao imperador, lavou as mãos e mandou crucificá-lo. Pilatos é talvez o nome mais repetido ao longo dos séculos, porque está no Credo. Lavou as mãos, proclamando inocência. Mas elas estão manchadas pelo sangue de um poder cobarde. Ainda hoje se diz de alguém que se encontra num lugar indevido: "Está ali como Pilatos no Credo."
8. A multidão gritava: "Crucifica-o, crucifica-o." No Domingo de Ramos, tinha aclamado Jesus: "Hossana, hossana ao filho de David!" Não se pode confiar nas multidões: são volúveis, interesseiras, manipuláveis. No fim, preferiram Barrabás.
9. Ao saber que Jesus era galileu, Pilatos remeteu-o a Herodes, que se encontrava naqueles dias em Jerusalém e que tratou Jesus com desprezo. Herodes e Pilatos ficaram amigos, pois antes viviam em mútua inimizade. Interesses comuns, políticos, económicos e outros, podem levar ao corte de relações ou à amizade. Mas será amizade mesmo?
10. Simão de Cirene foi obrigado a carregar com a cruz. Na via dolorosa da vida, também há cireneus, gente que apoia, por vezes até forçada. Mas apoia.
11. Os soldados riram-se, fizeram chacota e imensa troça de Jesus. Afinal, a sua própria vida não era feliz.
12. As mulheres, talvez porque são mais cuidadoras da vida e amem mais, foram as únicas que não fugiram e estiveram sem medo junto à cruz.
13. Mesmo no final e na suprema dor, os seres humanos comportam-se de modo diferente. Também foram crucificados dois malfeitores: um continuou a blasfemar, o outro reflectiu e pediu a Jesus que se lembrasse dele no seu Reino. O centurião deu glória a Deus: "Realmente este Jesus era justo."
14. No total abandono, Jesus perdoou a quem o matava, e rezou, a gritar, perguntando, aquela oração que atravessa os séculos: "Meu Deus, meu Deus, porque é que me abandonaste?" Deus não disse nada, mas Jesus continuou a confiar: "Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito."
15. Depois, os discípulos fizeram a experiência avassaladora de fé de que este Jesus crucificado está vivo em Deus, e acreditaram, porque Deus é Amor. Nasceu assim a esperança para todas as vítimas da história. Mas é em Sábado que vivemos: entre o horror da Sexta-Feira e a esperança do Domingo da Páscoa." Anselmo Borges, em Crónica publicada no DN de 16.03.2016