domingo, 14 de abril de 2024

A IGREJA EM REFORMA PERMANENTE Frei Bento Domingues, O.P. 14 Abril 2024

 

1. É costume dividir, de forma muito simples (talvez de forma simplória), a história da Igreja em três momentos fundamentais: a Igreja dos primeiros séculos, a Igreja da Idade Média e a Igreja da Idade Moderna. O grande inconveniente desta apresentação é continuar a fazer da Igreja o seu centro, algo que o Papa Francisco, com razão, tem rejeitado.

A Igreja, em todas as suas épocas, não pode ser o centro de si mesma. Ela deve remeter continuamente para a prática de Jesus Cristo, testemunhada no Novo Testamento. É Ele o verdadeiro centro insubstituível da Igreja e da humanidade. E porquê? Porque foi Ele que fez da sua vida uma entrega a Deus e a todos os povos, de todos os tempos e lugares. Na sua actividade, num tempo e num lugar históricos e precisos, pela sua união a Deus, attingit omnia tempora et loca[1].

Na sua célebre Exortação Apostólica programática, Evangelii Gaudium, o Papa Francisco, convoca a Igreja a realizar a sua transformação missionária, isto é, a ser uma Igreja «em saída». Não se trata apenas de uma belíssima declaração, mas de tornar toda a Igreja agente de comunhão, participação e missão.

Encontrou, na redescoberta da dimensão sinodal, um caminho para vencer a tentação da Igreja se julgar o centro de si mesma.

A Igreja «em saída» é a comunidade de discípulos missionários que «primeireiam», que se envolvem, que acompanham, que frutificam e festejam. Primeireiam – desculpai o neologismo –, tomam a iniciativa! A comunidade missionária [a verdadeira Igreja] experimenta que o Senhor tomou a iniciativa, precedeu-a no amor (cf. 1 Jo 4, 10) e, por isso, ela sabe ir à frente, sabe tomar a iniciativa sem medo, ir ao encontro, procurar os afastados e chegar às encruzilhadas dos caminhos para convidar os excluídos. Vive um desejo inexaurível de oferecer misericórdia, fruto de ter experimentado a misericórdia infinita do Pai e a sua força difusiva.

 Ousemos um pouco mais no tomar a iniciativa! Como consequência, a Igreja, em conversão, sabe «envolver-se». Jesus lavou os pés aos seus discípulos. O Senhor envolve-Se e envolve os seus, pondo-Se de joelhos diante dos outros para os lavar; mas, logo a seguir, diz aos discípulos: «Sereis felizes se puserdes isto em prática» (Jo 13, 17). Com obras e gestos, a comunidade missionária entra na vida diária dos outros, encurta as distâncias, abaixa-se – se for necessário – até à humilhação e assume a vida humana, tocando a carne sofredora de Cristo no povo. Os evangelizadores contraem assim o «cheiro das ovelhas», e estas escutam a sua voz.

Em seguida, a comunidade evangelizadora dispõe-se a «acompanhar». Deve acompanhar a humanidade em todos os seus processos, por mais duros e demorados que sejam. Conhece as longas esperas e o seu fundamento apostólico. A evangelização exige muita paciência e evita deter-se a considerar as limitações.

Fiel ao dom do Senhor, sabe também «frutificar». A comunidade evangelizadora mantém-se atenta aos frutos, porque o Senhor a quer fecunda. Cuida do trigo e não perde a paz por causa do joio. O semeador, quando vê surgir o joio no meio do trigo, não tem reacções lastimosas ou alarmistas. Encontra o modo para fazer com que a Palavra se incarne numa situação concreta e dê frutos de vida nova, apesar de serem aparentemente imperfeitos ou defeituosos.

O verdadeiro discípulo sabe oferecer a vida inteira e gastá-la até ao martírio como testemunho de Jesus Cristo, mas o seu sonho não é estar cheio de inimigos, mas antes, que a Palavra seja acolhida e manifeste a sua força libertadora e renovadora.

Por fim, a comunidade evangelizadora jubilosa sabe sempre «festejar»: celebra e festeja cada pequena vitória, cada passo em frente na evangelização. No meio desta exigência diária de fazer avançar o bem, a evangelização jubilosa torna-se beleza na liturgia. A Igreja evangeliza e evangeliza-se com a beleza da liturgia, que é também celebração da actividade evangelizadora e fonte de um renovado impulso para se dar[2].

2. Nada disto é possível se não fizermos da pastoral um processo de conversão contínuo. É o próprio Papa que nos lembra algo que nunca deve ser esquecido. Ele sabe que, hoje, os documentos não suscitam o mesmo interesse que noutras épocas, acabando rapidamente esquecidos.

Apesar disso, sublinha que, aquilo que pretende deixar expresso nesta Exortação, possui um significado programático e tem consequências importantes.

«Espero que todas as comunidades se esforcem por actuar os meios necessários para avançar no caminho duma conversão pastoral e missionária, que não pode deixar as coisas como estão. Neste momento, não nos serve uma «simples administração». Constituamo-nos em «estado permanente de missão», em todas as regiões da terra»[3].

Já o Papa Paulo VI tinha convidado a alargar o apelo à renovação de modo que ressaltasse, com força, que ela não se dirige apenas aos indivíduos, mas à Igreja inteira.

Lembremos, diz Bergoglio, este texto memorável, que não perdeu a sua força interpeladora: «A Igreja deve aprofundar a consciência de si mesma, meditar sobre o seu próprio mistério (...). Desta consciência esclarecida e operante deriva espontaneamente um desejo de comparar a imagem ideal da Igreja, tal como Cristo a viu, quis e amou, ou seja, como sua Esposa santa e imaculada (Ef 5, 27), com o rosto real que a Igreja apresenta hoje. (…) Em consequência disso, surge uma necessidade generosa e quase impaciente de renovação, isto é, de emenda dos defeitos, que aquela consciência denuncia e rejeita, como se fosse um exame interior ao espelho do modelo que Cristo nos deixou de Si mesmo».

3. Tornou-se um lugar comum dizer que a Igreja não é o centro do Cristianismo. Ao repetir esta evidência teológica e pastoral, temos de ter cuidado para não dar a ideia de que a Igreja, não sendo o centro, seria insignificante para a fé cristã. Se isso fosse verdade, também seria inútil a reforma das próprias expressões da Igreja. E, no entanto, é ela o verdadeiro e primordial sacramento – sinal e instrumento – de Jesus Cristo na complexidade deste mundo. De facto, quando se fala de reforma da Igreja, não se pode esquecer a observação do grande teólogo, Yve Congar, O.P., ao sustentar que existem verdadeiras e falsas reformas.

«Hoje, torna-se cada vez mais evidente que é necessária uma verdadeira hermenêutica evangélica para compreender melhor a vida, o mundo, os seres humanos; não de uma síntese, mas de uma atmosfera espiritual de investigação e certeza fundamentada nas verdades da razão e da fé», como diz Bergoglio, na Veritatis Gaudium, nº3 (2017).

 

 

 



[1] III q. 56, a. 1-2

[2] Cf. Evangelii Gaudium, nº 24

[3] Cf. Ibidem, nº 25

Saúde, medicina, salvação Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia 13 abril 2024

 Saúde, medicina, salvação

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

13 abril 2024

Os doentes estiveram entre as preocupações e cuidados maiores de Jesus. A saúde é, de
facto, um bem precioso, mas só damos por isso, quando a perdemos.

A saúde tem um carácter pluridimensional. No sentido autenticamente humano inclui
vários níveis:
a) a saúde somática: o bom estado físico, portanto, um organismo capaz de
desempenhar normalmente as suas funções;

b) a saúde psíquica: autonomia mental para enfrentar as dificuldades do meio e
capacidade para estabelecer relações gratificantes interpessoais e com o ambiente;

c) a saúde social: se não cuida do meio ambiente, da habitação, da alimentação, da
harmonia social, da saúde pública, como salvaguardarão as pessoas a sua saúde?

d) a saúde ecológica: se o homem é solidário da biosfera em geral, a sua saúde
dependerá da saúde ambiental: ar puro e não-contaminado, água limpa, ambiente belo,
sem poluição sonora;

e) a saúde espiritual e religiosa: a dimensão de transcendência do ser humano tem de
ser salvaguardada, num duplo sentido: a interioridade e a transcendência são
elementos constituintes da saúde plenamente humana, mas será necessário prevenir
contra crenças e ideias neuróticas, que prejudicam o ser humano.

Depois da Segunda Guerra Mundial, divulgou-se a definição de saúde da Organização
Mundial de Saúde, que a considera “um estado de completo bem-estar físico, mental e
social”. Mas ela foi acusada de dar uma concepção estática de saúde. Haveria também o
perigo de esquecer a capacidade de integração do sofrimento e da própria morte.
Impõe-se, por outro lado, acentuar a importância da relação com o ambiente material e
humano, em constante transformação. Assim, Francisco J. Alarcos, depois de
considerar todos estes níveis e dimensões, esboçou a seguinte tentativa de definição: “A
saúde é a capacidade de realizar eficazmente as funções requeridas num dado meio, e
como este meio não deixa de evoluir, a saúde é um processo de adaptação contínua a
múltiplos micróbios, contaminações, tensões e problemas que o Homem diariamente
tem de enfrentar. Mas o sujeito humano está também em constante evolução. A saúde é
a capacidade de adaptar-se a um meio ambiente que muda; capacidade de crescer, de
envelhecer, de sarar, por vezes com sofrimentos inevitáveis, e finalmente de esperar a
morte em paz.”

A saúde comporta viver com sentido e, portanto, estar a salvo de tudo o que desumaniza
e impede a realização adequada e plenamente humana. Por exemplo, saudar
(de salutem dare) significa que estar são inclui “dar saúde” a quantos nos rodeiam, viver
em solidariedade com todos, na alegria e na dor. No sentido íntegro da palavra, saúde é
sinónimo de viver humana e harmoniosamente, com inclusão da esperança e da
abertura à transcendência. Há hoje imensos estudos científicos que mostram a relação
positiva entre uma prática sadia da religião e a saúde e até maior longevidade.

Mas acontece que ficamos doentes. Então socorremo-nos dos médicos. Também aqui a
etimologia das palavras é iluminante. Significativamente, o radical med., donde deriva
em latim mederi, com o sentido de ponderar, curar, cuidar de, restabelecer o equilíbrio,
está na base de moderação, medicina e meditação. Aí está, pois, a saúde com o sentido
holístico de harmonia, e o médico e o doente não se encontram como um técnico e uma
máquina (o corpo) desarranjada, mas como dois seres humanos em diálogo,
estabelecendo um pacto: o doente entrega-se à solicitude de outro ser humano, que,
afectado por um pedido, escuta compassivamente e põe a sua arte ao serviço de uma
existência ameaçada.

Isso acontece, em princípio, numa clínica, num hospital. Veja-se, mais uma vez, a
etimologia. Clínica provém do grego klínein, inclinar-se. Hospital relaciona-se com
hóspede. Um hospital deveria ser, portanto, sempre o lugar da hospedagem acolhedora
e amiga. Mas é-o realmente? Veja-se a conexão entre as palavras
latinas hospes e hostis (hóspede e inimigo, respectivamente), como pode ver-se, por
exemplo, hoje na palavra hostel, como se o hóspede, enquanto estranho, fosse ou
pudesse tornar-se alguém hostil. Nos hospitais, hoje, para lá da efectividade, torna-se,
pois, urgente recuperar a afectividade da hospedagem, para que o doente e o moribundo
possam ser reconhecidos na sua dignidade e não como alguém estranho e hostil.

É bom saber do sentido holístico de saúde - sem esquecer Kant dizendo que O Céu, para
aliviar as muitas dificuldades, nos deixou três coisas: “A esperança, dormir bem, rir
com alegria” -, que implica também, no meio da agitação constante, capacidade para
parar e não esquecer o melhor e poder pensar e meditar e ouvir música e contemplar a
beleza de uma simples folha de erva, de um pôr-do-sol e do céu estrelado na sua
quietude exaltante. Outra vez a etimologia: pensar vem do latim pensare, pesar razões,
mas de pensare provém também o penso sanitário: pensar cura. Aí está, pois, a ameaça
hoje das redes sociais e do “dedar” constante e absorto nos ecrãs e as nefastas
consequências desse brutal consumo para o cérebro ao nível da saúde mental e da
capacidade para ler, reflectir, estudar...

A saúde está intrinsecamente vinculada ao cuidado. Viver é cuidar. Cuidar de nós,
cuidar dos outros - a solidão mata -, cuidar da natureza, dos amigos - a vida sem amigos
não presta -, cuidar do Sagrado, da Transcendência, do sentido, Sentido último. Salus,
salutis dá origem a saúde e a salvação.

sábado, 13 de abril de 2024

O Grande Domingo da Santa Alegria -Pe Manuel João, MC

 O Grande Domingo da Santa Alegria 

Ano B - Tempo Pascal - 3º Domingo
Lucas 24,35-48: “Vós sois as testemunhas de todas estas coisas”

A Igreja celebra o mistério da Páscoa durante sete semanas, da Páscoa ao Pentecostes, um período de cinquenta dias, o tempo da “santa alegria”, chamado pelos antigos padres da Igreja como “o grande domingo”. Estes sete domingos convidam-nos a celebrar a Páscoa... sete vezes (a plenitude!). Durante todo este tempo, a oração litúrgica era feita de pé, como sinal da ressurreição: “Consideramos que não nos é permitido jejuar ou rezar de joelhos aos domingos. Praticamos a mesma abstenção com alegria desde o dia de Páscoa até ao Pentecostes” (Tertuliano). 

No domingo passado, ouvimos as aparições do Ressuscitado aos apóstolos, no primeiro e no oitavo dia, narradas por São João. Hoje ouvimos a versão do acontecimento segundo o evangelista São Lucas. Terminam assim os (três) domingos em que o evangelho nos apresenta os relatos da ressurreição.

1. As três aparições segundo São Lucas

No capítulo 24, o capítulo conclusivo do seu evangelho, São Lucas relata-nos três aparições: 1) a primeira, na manhã de Páscoa, a dos anjos às mulheres, junto do túmulo vazio; 2) a segunda, na tarde do mesmo dia, a aparição do Ressuscitado aos dois discípulos a caminho de Emaús; 3) a terceira, à tardinha, a aparição de Jesus aos Onze, em Jerusalém.

A narração termina com a ascensão de Jesus ao céu. Notemos bem que tudo isto se passa no mesmo dia, o dia de Páscoa! É um dia extremamente longo! De que modo se pode conciliar isto com o que os outros evangelistas contam? É preciso lembrar que os evangelhos foram escritos várias décadas mais tarde. Os factos eram então conhecidos nas comunidades cristãs, transmitidos oralmente. Os evangelistas, ao escreverem o seu evangelho, têm em conta não só a história, mas sobretudo a situação das suas comunidades. Ou seja, têm uma intenção teológica e catequética. Aqui Lucas quer apresentar-nos o que é o domingo típico do cristão. Trata-se de um artifício literário. De facto, no início dos Actos dos Apóstolos, apresenta as coisas de forma um pouco diferente: “E a eles se manifestou vivo depois de sua Paixão, com muitas provas, aparecendo-lhes durante quarenta dias e falando das coisas do Reino de Deus” (1,3). 

2. A dificuldade em acreditar na ressurreição

Todos os evangelhos sublinham a dificuldade dos discípulos em acreditar na ressurreição, a ponto de Jesus “os repreender pela sua incredulidade e dureza de coração” (Marcos 16,14; Lucas 24,25). Por outro lado, Jesus faz questão de ser reconhecido, porque disso depende a continuação da missão. “Vede as minhas mãos e os meus pés: sou eu mesmo!”. Como os apóstolos têm dificuldade em acreditar, Jesus pede-lhes qualquer coisa para comer. “Deram-lhe uma posta de peixe assado, que ele tomou e começou a comer diante deles”. Um corpo ressuscitado pode comer? Talvez o evangelista exagere para sublinhar a realidade da ressurreição do corpo de Jesus. Com efeito, também Pedro dirá ao centurião Cornélio: “Comemos e bebemos com ele depois da sua ressurreição de entre os mortos” (Actos 10,41). É um modo para sublinhar que se trata do mesmo corpo de Jesus e que continua a mesma relação de intimidade com os seus.

A fé na ressurreição foi fruto de um caminho árduo, onde não faltaram dúvidas, incertezas e medos. Isto deve-se ao facto que há, contemporaneamente, uma identidade (é o mesmo corpo de Jesus) e uma diversidade (é um corpo ressuscitado, não sujeito às leis fisicas),. Esta dificuldade dos discipulos, por um lado, anima-nos na nossa caminhada de fé; por outro lado, prova-nos que a ressurreição não pode ser uma invenção dos apóstolos.

3. A ressurreição, chave do sentido da vida

A ressurreição é a maior das verdades da nossa fé e o objeto primordial do nosso anúncio: “Vós sois as testemunhas de todas estas coisas”. A ressurreição é o “evangelho”, a boa nova que o cristão é enviado a anunciar. Tudo o resto é uma consequência. E a primeira consequência é que, se Cristo ressuscitou, também nós ressuscitaremos com ele. A sua ressurreição e a nossa são, de certo modo, intercambiáveis, segundo São Paulo: se Jesus ressuscitou, também nós ressuscitaremos com ele (ver Romanos 6) e, por outro lado, “se não há ressurreição dos mortos, também Cristo não ressuscitou” (1 Coríntios 15,13). Com a ressurreição, professamos que a vida tem um “sentido”: não se dirige para o nada, mas para a sua plenitude. Se não acreditamos na ressurreição, professamos o não-sentido da vida: “o homem é uma paixão inútil” (Jean-Paul Sartre), um “ser destinado à morte” (Heidegger).

Para um cristão, acreditar na ressurreição pode parecer uma coisa óbvia mas, infelizmente, não é. Há quinze anos (2009), numa sondagem realizada em França, apenas 13% dos católicos responderam que acreditavam na ressurreição, enquanto 40% disseram acreditar que há “algo” depois da morte e 33% que não há nada! Há três anos (2021), um inquérito realizado em Itália revelou que apenas 20% dos italianos acreditam na ressurreição dos mortos. Neste domingo muitos afirmarão: “Creio na ressurreição da carne e na vida eterna” ou “Espero a ressurreição dos mortos e a vida do mundo que há-de vir”, mas não é de modo algum um dado adquirido que todos acreditem verdadeiramente no que dizem com os lábios. Que é um verdadeiro contrassenso dizer-se cristão sem acreditar na ressurreição, já São Paulo o afirmava perentoriamente: “Se Cristo não ressuscitou, vã é a nossa pregação, vã é também a vossa fé. Somos, pois, falsas testemunhas de Deus! (...) Se esperamos em Cristo apenas para esta vida, somos, de todos os homens, os mais dignos de lástima” (1 Coríntios 15, 14-15.19). Se excluirmos a ressurreição, todo o edifício da mensagem cristã desmorona-se e o cristianismo seria a maior farsa da história.

4. Testemunhas da ressurreição

“Vós sois as testemunhas de todas estas coisas”, diz Jesus aos apóstolos na conclusão do Evangelho. Hoje, ele diz-nos isso a nós. Como é que nós damos testemunho da ressurreição? Cultivando em nós, com a ajuda da graça, a consciência de que já ressuscitámos com Cristo e que vivemos no “terceiro dia”, o Dia final e definitivo, o da ressurreição, mesmo que ainda continuem a sangrar as feridas da nossa cruz. Jesus não quis que as suas sarassem antes das nossas. Ele carrega as nossas feridas e as de todos os crucificados da história. Como é que podemos curar essas feridas? Colocando-nos ao serviço da humanidade sofredora! 

Para uma reflexão pessoal: confrontar a nossa fé na ressurreição com o que diz São Paulo na Primeira Carta aos Coríntios, capítulo 15.

P. Manuel João Pereira Correia mccj
Verona, 11 de abril de 2024

Para a reflexão completa, ver: https://comboni2000.org/2024/04/11/la-mia-riflessione-domenicale-la-grande-domenica-della-santa-allegrezza/

P. Manuel João Pereira Correia mccj
p.mjoao@gmail.com
https://comboni2000.org

 

domingo, 7 de abril de 2024

RELIGIÃO OU MISERICÓRDIA? Frei Bento Domingues, O.P. 07 Abril 2024

 

1. A Suma de Teologia de S. Tomás de Aquino, contra as aparências, é uma vasta obra de iniciação a uma forma de Teologia Medieval. Depois de condenada, pelas suas ousadas inovações, tornou-se um monumento de teologia da Igreja. Assisti, uma vez, a uma sua apresentação com este comentário: é um grande monumento acerca de nada, porque Deus não existe, dizia o apresentador.

Tomás de Aquino também dizia que a existência de Deus não é evidente. É preciso mostrá-la. As suas tentativas de mostrar que Deus existe percorrem várias vias de investigação. Este Santo Pregador não era ateu. Era, pelo contrário, um místico, mas de olhos abertos sobre toda a realidade que lhe era apresentada, fosse ela qual fosse. Tinha, acerca das ciências humanas e das filosofias, uma concepção em que as obras da razão e da fé se robusteciam mutuamente.

O primeiro objectivo da sua Teologia partia do princípio que «o propósito principal da doutrina sagrada está em transmitir o conhecimento de Deus não apenas quanto ao que Ele é em si mesmo, mas também enquanto é o princípio e o fim das coisas, especialmente da criatura racional. Para expor esta doutrina, temos de tratar: 1. de Deus; 2. do movimento da criatura racional para Deus; 3. do Cristo, que, enquanto homem, é para nós o caminho que leva a Deus.

A consideração de Deus será tripartida: 1. O que se refere à própria essência divina; 2. O que se refere à distinção das Pessoas [divinas]; 3. O que se refere às criaturas enquanto procedem de Deus.

Quanto à essência divina, deve-se considerar: 1. Deus existe? 2. Como é Ele ou, antes, como não é? 3. Como age, isto é, a sua ciência, a sua vontade e o seu poder?

Acerca da realidade primeira, são três as perguntas: 1. A existência de Deus é evidente por si mesma? 2. Pode-se demonstrá-la? 3. Será que Deus existe?»[1].

A Teologia negativa ou teologia apofática é a menos inadequada para falar de Deus. Se por um lado a teologia afirmativa faz proposições e descrições acerca de Deus e dos seus atributos, a teologia negativa segue o caminho oposto: ela percebe que toda a descrição que a inteligência humana consegue elaborar sobre Deus está muito aquém daquilo que Deus é. A teologia negativa percebe que todo o esforço de racionalidade, tentado definir Deus e os seus atributos, acaba por limitar Deus, porque Este ultrapassa todo e qualquer esforço racional. De Deus só podemos saber o que Ele não é e não o que é, não se trata tanto de considerar como Ele é quanto não é[2].

2. Hoje, celebramos o Domingo da Misericórdia. Não devia ser uma surpresa. O Papa Francisco dedicou-lhe um ano inteiro, dizendo que a misericórdia é a missão da Igreja. Todos já ouvimos falar das Misericórdias, como instituições dedicadas à realização do amor que Deus nos tem e a partilhar os Seus dons, segundo a pergunta concreta: em que posso eu ajudar-te?

 Tomás de Aquino diz que a Misericórdia é a realidade suprema atribuída a Deus e S. Lucas diz-nos que devemos ser misericordiosos como o nosso Pai é misericordioso[3]. Podemos, então, perguntar: religião ou misericórdia?

Deus não gasta religião. Da religião e dos seus actos de devoção, oração, sacrifício, etc., precisamos nós para nos situarmos correctamente, neste mundo, em relação a Deus, de quem somos, e para que essa referência seja vivida pela pessoa toda, de forma excitante. Mas aquilo que nos faz contactar com o próprio Deus e com o mundo, segundo o coração de Deus, é a fé, a esperança, o amor, a vida teologal[4].

A Misericórdia – plenitude da justiça e da verdade de Deus, nome de combate contra a miséria – é o nome que mais convém Aquele que não cabe em nome nenhum[5]. É a raiz mais funda do mundo, da Incarnação de Deus e do testemunho de Jesus até à morte, à verdade do amor que se encontra, perdendo-se, perdendo-se por todos os perdidos da terra[6].

A Misericórdia brota da fonte trinitária e das suas viagens criadoras e recriadoras, obra de diferenciação e união dos seres humanos entre si e com Deus. Dom do Espírito Santo que é a alma da Igreja, lei daquilo que mais conta no Novo Testamento e torna tudo o resto secundário. Lei do amor libertador, habitação que nos habita[7].

A virtude da Misericórdia não é uma virtude entre outras, mas a alma de toda a energia divina e humana. Fora da Misericórdia não há salvação!

 

 



[1] Tomás de Aquino, Suma Teológica, Prólogo da q. 2

[2] Ibidem, Prólogo da q.3

[3] Lc 6,36-38

[4] Suma Teológica, II-II q. 81, 5-7

[5] Ibidem, I q. 21; q. 13

[6] Ibidem, I q. 20, 2; I q. 45, 7; III q. 1,1-3; III q.46-47

[7] Ibidem, I q. 8; q. 43; I-II q. 106-108; III q. 2, 10; q. 6, 6; q. 7-8

A Páscoa de Tomé - Pe. Manuel João, MC

 A Páscoa de Tomé 

Ano B - Páscoa - 2º Domingo
João 20,19-31: "Meu Senhor e meu Deus!"

Hoje, segundo domingo de Páscoa, celebramos... a "Páscoa de São Tomé", o apóstolo que esteve ausente da comunidade apostólica no domingo passado! 

Os temas que o evangelho nos propõe são muitos: o Domingo ("o primeiro dia da semana"); a Paz do Ressuscitado e a alegria dos apóstolos; o "Pentecostes" e a Missão dos apóstolos (segundo o evangelho de João); o dom e a tarefa confiada aos apóstolos de perdoar os pecados (pelo que, desde há alguns anos, hoje se celebra o "Domingo da Divina Misericórdia"); o tema da comunidade (da qual Tomé esteve ausente!); mas sobretudo o tema da fé! Detenho-me apenas na figura de Tomé.

Tomé, o nosso gémeo

O seu nome significa "duplo" ou "gémeo". Tomé tem um lugar de destaque entre os apóstolos; talvez por isso lhe tenham sido atribuídos os Actos e o Evangelho de Tomé, apócrifos do século IV, "importantes para o estudo das origens cristãs" (Bento XVI, 27.9.2006). 

Gostaríamos de saber quem é o gémeo Tomé. Poderia ser Natanael (Bartolomeu). De facto, esta última profissão de fé, feita por Tomé, corresponde à primeira, feita por Natanael, no início do evangelho de João (1,45-51). Além disso, o seu carácter e comportamento são muito semelhantes. Finalmente, os dois nomes aparecem relativamente próximos na lista dos Doze (ver Mateus 10,3; Actos 1,13; e também João 21,2). 

Este anonimato permite afirmar que Tomé é "gémeo de cada um de nós" (Don Tonino Bello). Tomé conforta-nos nas nossas dúvidas de crentes. Nele nos espelhamos e, através dos seus olhos e das suas mãos, também nós "vemos" e "tocamos" o corpo do Ressuscitado. Uma interpretação que tem o seu encanto!...

Tomé, um "duplo"?

Na Bíblia, o par de gémeos mais famoso é o de Esaú e Jacob (Génesis 25,24-28), eternos antagonistas, expressão da dicotomia e da polaridade da condição humana. Será que Tomé (o "duplo"!) traz em si o antagonismo desta dualidade? Capaz, por vezes, de gestos de grande generosidade e coragem, outras vezes é incrédulo e teimoso. Mas, quando confrontado com o Mestre, emerge de novo a sua identidade profunda de crente que proclama a sua fé com prontidão e convicção. 

Tomé traz dentro de si o seu "gémeo". O Evangelho apócrifo de Tomé sublinha esta duplicidade: "Antes éreis um, mas passastes a ser dois" (n.º 11); "Jesus disse: Quando fizerdes dos dois um só, então sereis os filhos de Adão" (n.º 105). Tomé é a imagem de todos nós.Também nós trazemos dentro de nós um tal "gémeo", inflexível e defensor acérrimo das suas próprias ideias, obstinado e caprichoso nas suas atitudes.

Estas duas realidades, naturezas ou "criaturas" (o velho e o novo Adão) convivem mal, em contraste, por vezes em guerra aberta, no nosso coração. Quem nunca experimentou o sofrimento desta laceração interior? 

Ora, Tomé tem a coragem de enfrentar esta realidade. Deixa que o seu lado obscuro, adverso e incrédulo se manifeste, e leva-o a confrontar-se com Jesus. Aceita o desafio lançado pela sua interioridade "rebelde" que exige ver e tocar... Leva-a até Jesus e, perante a evidência, o "milagre" acontece. Os dois "Tomés" tornam-se um só e proclamam a mesma fé: "Meu Senhor e meu Deus!" 

Infelizmente, não é isso que acontece connosco. As nossas comunidades cristãs são frequentadas quase exclusivamente por "gémeos bons" e submissos, mas também... passivos e amorfos! O facto é que não estão lá na sua "totalidade". A parte enérgica, instintiva, própria do outro gémeo, a parte que precisaria de ser evangelizada, não aparece no "encontro" com Cristo. 

Jesus disse que vinha buscar os pecadores, mas as nossas igrejas são frequentadas pelos "justos" que... não sentem necessidade de se converter! Aquele que se devia converter, o outro gémeo, o "pecador", é deixado em casa. É domingo, ele aproveita para "descansar" e confia o dia ao "gémeo bom". Na segunda-feira, então, o gémeo dos instintos e das paixões estará em plena forma para retomar o controlo. 

Jesus à procura de Tomé

Quem dera que Jesus tivesse muitos Tomés! Na celebração dominical, é sobretudo a eles que o Senhor vem procurar... Serão os seus "gémeos"! Deus procura homens e mulheres "reais", que se relacionem com ele tal como são: pecadores que "sofrem" na sua própria carne a tirania dos instintos. Crentes que não se envergonham de aparecer com este lado incrédulo e resistente à graça. Que não vêm para causar boa impressão na "assembleia dos crentes", mas para se encontrarem com o Médico da Divina Misericórdia e serem curados. É destes que Jesus se faz irmão! 

O mundo tem necessidade do testemunho de crentes honestos, capazes de reconhecer os seus erros, dúvidas e dificuldades e que não escondem a sua "duplicidade" atrás de uma fachada de "respeitabilidade" farisaica. A missão precisa verdadeiramente de discípulos que sejam pessoas autênticas e não "de pescoço torto"!... De missionários que olhem diretamente para a realidade do sofrimento e toquem com as suas mãos as feridas dos crucificados de hoje!... 

Tomé convida-nos a reconciliar a nossa duplicidade para viver a Páscoa!
Palavra de Jesus, segundo o... Evangelho de Tomé (n.º 22.27): "Quando fizerdes com que dois sejam um, e fizerdes com que o interior seja como o exterior, e o exterior como o interior, e a parte de cima como a parte de baixo, e quando fizerdes com que homem e mulher sejam um (...) então entrareis no Reino!"

Para a reflexão semanal, proponho a leitura contínua da Primeira Carta de São João.

P. Manuel João Pereira Correia mccj
Verona, 4 de abril de 2024

Para a reflexão completa, ver:
https://comboni2000.org/2024/04/04/la-mia-riflessione-domenicale-la-pasqua-di-tommaso/

P. Manuel João Pereira Correia mccj
p.mjoao@gmail.com
https://comboni2000.org