segunda-feira, 27 de junho de 2022

LIBERDADE PARA QUÊ? Frei Bento Domingues, O.P.

 

1. Quem vai à Missa nunca vai sozinho, vá ou não acompanhado, e sabendo que vai encontrar muita gente de quem desconhece as motivações mais íntimas, mas na convicção de que é o mesmo Espírito Santo que a todos convoca. Por outro lado, não há um Espírito Santo da Missa e outro do quotidiano.

Quando digo que ninguém vai sozinho, é por um simples pressuposto. Vai com todos os seus problemas que já não são os de uma sociedade marcada pela religião. Transporta, em si mesmo, o mundo secularizado, onde descobriu várias maneiras de encarar a vida e o seu sentido. Por isso, mesmo ouvindo a leitura dos mesmos textos, cada pessoa faz sempre a sua interpretação que pode não coincidir com a dos outros participantes. Actualmente, quem faz a homilia presta um serviço de interpretação dos textos, marcado pelos acontecimentos da semana, pela sua cultura bíblica e profana, supondo que conhece o que as pessoas procuram e o que ele tem a oferecer. Melhor seria que, em cada semana ou periodicamente, houvesse um encontro com representantes das diferentes tendências e preocupações, para não ceder à manipulação dos que participam na Eucaristia.

Tudo isso faz parte do encontro e da comunhão eucarística, com o propósito de alimentar um processo permanente de conversão, sabendo que, na multiplicidade de carismas numa assembleia, nenhum é tão importante como o amor recíproco.

Todos se vão encontrar com leituras de uma cultura muito antiga, do Antigo e do Novo Testamento, em traduções de línguas que geralmente desconhece. Esta distância cultural vai exigir um trabalho de interpretação actualizante. Foi o próprio S. Paulo que chamou a atenção para esse árduo trabalho de interpretação[1].

2. A liturgia deste Domingo reproduz uma passagem da Carta de S. Paulo aos Gálatas, na continuação da do Domingo passado: «Foi para a liberdade que Cristo nos libertou. Permanecei, pois, firmes e não vos sujeiteis outra vez ao jugo da escravidão. Irmãos, de facto, foi para a liberdade que vós fostes chamados. Só que não deveis deixar que essa liberdade se torne numa ocasião para os vossos apetites carnais. Pelo contrário: pelo amor, fazei-vos servos uns dos outros. É que toda a Lei se cumpre plenamente nesta única palavra: Ama o teu próximo como a ti mesmo. Mas, se vos mordeis e devorais uns aos outros, cuidado, não sejais consumidos uns pelos outros. Mas eu digo-vos: caminhai no Espírito e não realizareis os apetites carnais. Porque a carne deseja o que é contrário ao Espírito e o Espírito, o que é contrário à carne; são, de facto, realidades que estão em conflito uma com a outra, de tal modo que aquilo que quereis, não o fazeis. Ora, se sois conduzidos pelo Espírito, não estais sob o domínio da Lei»[2].

Este texto pode prestar-se, não apenas a várias interpretações, mas também a confusões que o desvirtuam completamente. Quando estabelece o contraste entre as obras da carne e as do espírito, somos levados a pensar que as obras da carne, confundidas com a vida sexual, eram as únicas escravizantes e só escravizantes, nunca libertadoras. O corpo, onde se manifestam as solicitações sexuais, era o inimigo da alma. Este angelismo foi fatal na moral pouco católica. O corpo era, sobretudo, considerado como a sede do pecado. De facto, não temos um corpo, somos um corpo animado, uma pessoa.

   Um grande exegeta de S. Paulo, o português Manuel Isidro Alves, ex-Reitor da UCP (1940-2002), deixou-nos um texto que tenta desfazer essa confusão e que me vai guiar.

A Lei moisaica era um meio do ser humano atingir a Deus numa determinada fase cultural e religiosa da História. A sua função era a de um pedagogo, que orientava o povo no sentido mais conveniente da procura de Deus. Porém, a piedade ritualista da Escola Sacerdotal, excessivamente preocupada pela letra e menos atenta ao espírito, desvirtuou este ideal. O Farisaísmo é a herança mais legítima desta religiosidade, que se tornou o objecto das críticas mais acerbas da pregação de Jesus. A Lei deixou de ser um apelo de Deus feito ao ser humano, no sentido de estabelecer com ele relações dialógicas, para se transformar em ocasião propícia à manifestação daquele sentimento de egoísmo que permanecia latente no coração do ser humano. Mesmo cumprindo honestamente a vontade de Deus expressa na Lei, o fariseu procurava a sua própria vontade à sombra da mesma Lei. Os Profetas verberaram asperamente esta observância externa da Lei e anunciaram para os tempos messiânicos um “espírito novo”, uma “lei escrita no coração” que havia de substituir a velha Lei escrita em “tábuas de pedra”. A “Lei Nova” tem como objectivo libertar o ser humano deste egoísmo latente, do apelo secreto que ele endereçava a si mesmo, servindo-se da lei para, sob a forma de observância, iludir a responsabilidade rigorosa e obediente nos confrontos de Deus. A dialética religiosa chama “pecado” a este comportamento e atribui-lhe como efeito normal a “morte” eterna. Aqui surge a situação paradoxal do regime da lei, onde o ser humano é arrastado por forças opostas[3].

As obras da carne, a que S. Paulo diz que não nos devemos submeter, são, precisamente, as obras da lei realizadas em espírito farisaico. Esse foi o combate de Jesus que Paulo assumiu, também de forma radical. Desfeita esta confusão, podemos perceber que o essencial da Lei Nova é a graça do Espírito Santo, espírito de liberdade, cujo fruto é o amor de Deus e do próximo. É, por isso, que S. Paulo diz, na referida Carta aos Gálatas, que toda a Lei se cumpre plenamente nesta única palavra: Ama o teu próximo como a ti mesmo. Liberdade para servir e não liberdade para dominar o próximo. Os nossos apetites desregrados manifestam-se sobretudo no desejo de ser cada vez mais rico, alimentando todo o tipo de desigualdades. Esta concentração do egoísmo é a negação mais vistosa do espírito cristão.

3. No mesmo Boletim do ISET, ao texto de Isidro Alves segue o contributo de Christian Duquoc sobre o conceito teológico de libertação. Para ele, a libertação cristã não é uma utopia. Se a utopia é, no seu sentido preciso, um modelo invertido de uma dada sociedade, o cristianismo não entra nessa categoria. É, em primeiro lugar, um grito de revolta, o grito dos escravos e dos explorados. Este grito povoa a história. Dá um vigor estranho à Bíblia. (…) Pense-se nos profetas, denunciando a exploração; em Job, levantando-se contra a hipocrisia das teses oficiais: «mesmo que Deus me matasse, eu teria razão contra ele»; lembremo-nos de Jesus, abalando os poderosos do seu tempo e gritando para o próprio Deus: «Porque me abandonaste?». O cristianismo é um grito de revolta que Deus fez seu e é, por isso, que o cristianismo é uma esperança, uma esperança activa. Realiza-se em libertações concretas, sectoriais, segundo os tempos, os lugares e as situações, em cada momento histórico. Por isso, o cristianismo é prático[4]. Se fosse apenas um grito, arriscava-se a passar da revolta à resignação. É no meio dos conflitos e das diversas opiniões que é preciso fazer nascer e renascer a liberdade.

 

 

26 Junho 2022

 



[1] Cf. 1Cor 12 – 14

[2] Gal 5, 1. 13-18

[3] A Liberdade no Novo Testamento, Boletim ISET, Maio-Junho 1974, pp. 13-16

[4] Ibe, p.19

domingo, 19 de junho de 2022

OS MELHORES DO MUNDO Frei Bento Domingues, O.P.

 

1. Junho é um mês muito português. No dia 10, celebramos o Dia de Portugal, de Camões, das Comunidades Portuguesas e a festa litúrgica do Anjo da Guarda de Portugal. Os dias 12 e 13 são dedicados a Santo António, o santo português mais conhecido em todo o mundo. No dia 24, celebramos S. João Baptista, no dia 29, a festa de S. Pedro. Há uma rima que sintetiza este mês: «Primeiro vem Santo António / depois, S. João / por fim, vem S. Pedro / para a reinação».

Este ano, também no dia 10, o Presidente da República homenageou, em Londres, um grande nome da pintura portuguesa conhecida em todo o mundo, Paula Rego, falecida a 8 deste mês (1935-2022) e anunciou que será condecorada a título póstumo em Lisboa.

Foi um outro Presidente da República, Jorge Sampaio, que convidou Paula Rego para contar a história de Nossa Senhora para a capela do Palácio de Belém que aceitou de imediato: «Desde que comecei a pintar que estava à espera desse convite». Pouco tempo depois, nascia o Ciclo da Vida da Virgem Maria.

No Museu da Presidência da República, no Palácio de Belém, está patente ao público uma exposição dedicada a Maria de Lourdes Pintasilgo (1930-2004) sobre o seu percurso de cidadã na esfera pública. Foi sempre uma católica militante.

Desde o dia 6 de Junho, no âmbito das comemorações do centenário de José Saramago (1922-2010), a Biblioteca Nacional apresenta uma mostra bibliográfica e documental que celebra o percurso de escrita do autor, com o título A Oficina de Saramago.

2. O mais popular de todos os santos e de todos os portugueses é, sem dúvida, Santo António. Nasceu em Lisboa (1195?), morreu em Pádua-Itália (1231) e foi canonizado, em 1232, pelo Papa Gregório IX. Em 1946, foi proclamado Doutor da Igreja pelo Papa Pio XII.

A religião popular não suporta a tristeza. Mesmo o cumprimento de promessas difíceis é para vencer a dor e o sofrimento. É o desejo da saúde e da alegria a fonte das promessas. Por isso, dos santos mais austeros, como S. João Baptista e Santo António, fazem os padroeiros das festas em que todos podem participar, cantando, dançando, bebendo e comendo melhor. Um santo triste é um triste santo. A santidade não se dá bem com a tristeza. Esta religião popular está a desaparecer, sofre as consequências da mudança do mundo rural e das migrações.

Este ano, em Lisboa, Santo António já voltou à rua, nos arraiais com muita música e balões coloridos, as sardinhas assadas, o caldo verde, os manjericos, as marchas populares e os casamentos de Santo António, na Câmara e na Sé, no respeito pela liberdade religiosa.

Mas, quem disse da forma mais eloquente a significação de Santo António, como símbolo da apregoada vocação universalista de Portugal, foi o Padre António Vieira, no seu sermão pregado, em Roma, na Igreja de Santo António dos Portugueses[1]. Deixo, aqui, alguns extractos.

«Quando, por parte da Pátria me queria queixar do seu amor, atalhou-me o Evangelho com a sua obrigação: Sois a Luz do Mundo. Não tem logo Portugal de se queixar. Se António não nascera para o sol, tivera a sepultura onde teve o nascimento; mas como Deus o criou para luz do mundo, nascer numa parte e sepultar-se em outra é obrigação do sol. Lisboa foi a aurora do seu oriente; seja Pádua a sepultura do seu ocaso.

«(…) Se António era luz do mundo, como não havia de sair da Pátria? Saiu como luz do mundo e saiu como português. Sem sair ninguém pode ser grande. Saiu para ser grande e, porque era grande, saiu… Assim era obrigado a fazer, porque nasceu português.

«(…) Se [Deus] nos deu o brasão que nos havia de levar da Pátria, também nos deu a terra que nos havia de cobrir fora dela. Nascer pequeno e morrer grande é chegar a ser homem. Por isso nos deu Deus tão pouca terra para o nascimento e tantas para a sepultura. Para nascer, pouca terra; para morrer, toda a terra: para nascer, Portugal; para morrer, o mundo.

«(…) Assim como a luz material primeiro a criou Deus junto num lugar, e depois a repartiu dali por todas as regiões do Céu e sobre todas as terras: umas estrelas ao polo ártico, outras ao antártico, umas ao norte, outras ao sul, umas ao setentrião, outras ao meio-dia; assim para alumiar o Novo Mundo, que tantos séculos havia de estar às escuras, sem ser conhecido dos homens, nem ter conhecimento do verdadeiro Deus. Que fez o Autor da graça? Criou primeiro e conservou separado em Portugal aquele seminário escolhido de fé e de luz, para que dali dividida e repartida, a seu tempo, umas luzes fossem alumiar a África, outras a Ásia, outras a América, umas ao Brasil, outras à Etiópia, outras à Índia, outras ao Mogor, outras ao Japão, outras à China e, desta maneira transplantada de Portugal a fé, se plantasse nas três partes do mundo.

«(…) É verdade que Portugal era um cantinho ou um canteirinho da Europa; mas, nesse cantinho da terra pura e mimosa de Deus, quis o céu depositar a fé, que dali se havia de derivar a todas essas vastíssimas terras, introduzida com tanto valor, cultivada com tanto trabalho, regada com tanto sangue, recolhida com tantos suores e metida, finalmente, nos celeiros da Igreja debaixo das chaves de Pedro, com tanta glória.

«Medindo-se Portugal consigo mesmo e reconhecendo-se tão pequeno à vista de uma empresa tão imensa, poderá dizer o que disse Jeremias, quando Deus o escolheu para profeta das gentes: A. A. A. Deus meu, onde me mandais que sou tão pequeno para tamanha empresa? O mesmo poderá dizer Portugal. Mas tirando-lhe Deus da boca estes três AAA, ao primeiro A, escreveu África; ao segundo A, escreveu Ásia; ao terceiro A, escreveu América, sujeitando todas as três ao seu império como Senhor e à sua doutrina como Luz: Sois a Luz do Mundo».

3. O Padre António Vieira serviu-se deste sermão sobre Santo António, ritmado por uma citação do Evangelho – Vós sois a luz do mundo –, para dizer que, afinal, Deus fez de Portugal, este canteirinho da Europa, a luz do mundo, levando o Evangelho «às três partes do mundo». Na sua perspectiva, este nacionalismo religioso, algo delirante, não era para a dominação, mas para a iluminação.

O nosso Presidente, Marcelo Rebelo de Sousa, não já do ponto de vista do providencialismo religioso, mas da nossa competência em todas as áreas, insistiu: «Hoje somos os melhores do mundo. E sabem como eu digo incessantemente, porque há sempre uma falta de autoestima e de amor-próprio nalguns dos nossos compatriotas, que me criticam por dizer que, quando somos muito bons, somos os melhores do mundo. É isso mesmo: quando somos muito bons, somos os melhores do mundo».

O retrato que nos é dado por vários meios de comunicação não é exaltante. E compreende-se. Pertence-lhes insistir no que nos falta e não é pouco, mas esse estilo leva a esquecer o que já foi conquistado, que também não é pouco. Por isso, há quem diga que só sabemos viver entre a depressão e a exaltação. Compensamos a falta da realidade com sonhos de grandeza.

O realismo tem pouca graça!

 

 

 

 

19 Junho 2022



[1] Obras completas do Padre António Vieira, Sermões, Volume VII, Porto, 1908, pp.55-65. A bibliografia sobre Santo António não é muita. Acaba de ser traduzido e publicado o romance histórico de Nicola Vegro, António Secreto. A força de um Santo, Paulinas, 2022.

segunda-feira, 13 de junho de 2022

UM DEUS HUMANÍSSIMO Frei Bento Domingues, O.P.

 

 

1. Hoje, no calendário litúrgico da Igreja Católica, celebra-se a Santíssima Trindade. Há quem diga que é uma festa desnecessária, pois, é com essa expressão da fé cristã que começam todas as celebrações da Eucaristia: «Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo». Os fiéis respondem – Ámen, isto é, estamos de acordo, acreditamos. Este é um credo tão breve que nem dá tempo de pensar no que se diz e, pior ainda, passou a ser usado para dizer: estes dizem ámen a tudo.

A seguir, quem preside a assembleia explicita em estilo narrativo: «A graça de Nosso Senhor Jesus Cristo, o amor do Pai e a comunhão do Espírito Santo estejam convosco».

Sendo assim, até parece que têm razão os que dizem que é uma festa redundante. O perigo é passar por estes enunciados sem pensar e, quando se começa a pensar, pode acontecer como a I. Kant: «tomada em sentido literal, a doutrina da Trindade, mesmo se se julgasse compreendê-la, é totalmente inútil em termos práticos e, menos ainda, ao reconhecer que ultrapassa totalmente os nossos conceitos. A Trindade ter três pessoas ou dez seria a mesma coisa». K. Rahner dizia que, se o dogma trinitário fosse eliminado como falso, a maior parte da literatura religiosa poderia permanecer quase inalterável e Goethe não encontrava, na fé trinitária, a mais pequena ajuda.

Quem não ficou satisfeito com essa inutilidade foi Leonardo Boff. Durante o ano de silêncio imposto pelo Vaticano, escreveu uma obra que tentava mostrar a Trindade como a melhor comunidade. Por outro lado, Paul Blanquart via, na expressão trinitária da fé cristã, o que as nossas democracias não deviam ignorar, pois nessa expressão, as pessoas são todas iguais e diferentes, todas activas sem subordinação, todas autónomas e todas em mútua relação.

Como já escrevi em crónicas passadas, considero fundamental esta simbólica para escutar, acolher e pensar a realidade misteriosa de Deus e do mundo, questionando os modelos actuais que regem a vida familiar, cultural, política, do lazer e da vida das igrejas.

Não é por acaso que a grande questão das nossas sociedades, a todos os níveis, é sempre a da coexistência pacífica da unidade e da pluralidade. Será possível viver juntos, respeitando e promovendo, ao mesmo tempo, a comunhão entre todos e a originalidade de cada um?

Se acentuamos a pluralidade, corremos o risco da fragmentação. Se sublinhamos muito a urgência da unidade, espreita-nos a uniformidade. No entanto, a coincidência entre unidade e pluralismo parece um milagre sempre diferido.

S. Paulo gastou muita energia para encontrar metáforas e razões que tornassem criativa a coabitação eclesial da unidade e da diversidade dos carismas. Eram dons e frutos do mesmo Espírito, num só corpo com muitos órgãos e membros[1].

2. Na expressão, cunhada por Paul Ricoeur, os chamados «mestres da suspeita» – Marx, Freud e Nietzsche – negavam Deus em nome da liberdade, da criatividade e da felicidade humanas. Para eles, Deus era o inimigo da nossa alegria. Santo Ireneu sustentava o contrário: a glória de Deus é que o ser humano viva e desabroche na fruição da divindade[2]. Não via nenhuma oposição entre as duas afirmações. Gozavam da mesma festa.

Ludwig Wittgenstein não pertencia aos «mestres da suspeita». Levantou a questão fundamental: «Que sei eu sobre Deus e o sentido da vida? Sei que este mundo existe. Que estou nele como o meu olho no seu campo visual. Que algo nele é problemático, a que chamamos o seu sentido. Que este sentido não reside nele, mas fora dele. (…) Ao sentido da vida, i. é, ao sentido do mundo, podemos chamar Deus e associar-lhe a metáfora de Deus como um pai. A oração é o pensamento do sentido da vida. (…) Crer em Deus significa compreender a pergunta pelo sentido da vida. (…) Crer em Deus significa ver que a vida tem um sentido»[3].

Os cristãos não dizem apenas que acreditar em Deus é ver que a vida humana tem sentido.  Acreditam que Ele é humaníssimo e fonte do verdadeiro humanismo, como escreveu E. Schillebeeckx[4].

O ser humano é a narrativa humana de Deus, a máxima unidade na máxima diversidade. Como já ficou dito, a unidade não absorve nem destrói a diversidade. As pessoas são todas diferentes, todas iguais, todas activas, todas livres, sem subordinação de umas às outras e em perfeita comunhão.

Nessas afirmações não há dominadores e dominados. O Pai e o Filho partilham um mesmo Espírito que nos é dado: «todos os que se deixam guiar pelo Espírito são filhos de Deus. Não recebestes um Espírito que vos escravize e volte a encher-vos de medo, mas recebestes um Espírito que faz de vós filhos adoptivos. É por Ele que clamamos: Abbá, ó Pai! Esse mesmo Espírito dá testemunho ao nosso espírito de que somos filhos de Deus[5].

A palavra trindade não consta nas narrativas do Novo Testamento. Surgiu, na Igreja, para sintetizar e inculturar essas narrativas na filosofia greco-romana.

A incarnação trinitária de Deus é a grande originalidade da fé cristã. Se há algo singular no cristianismo é a fé de que a transcendência de Deus se faz acessível na imanência de um ser humano. Por mais escandalosa que pareça esta afirmação da fé, tem múltiplas consequências.

3. Estai prontos a dar razão da vossa esperança, sem arrogância, é a recomendação de S. Pedro. A modéstia deve ser o espírito do trabalho teológico. O cristão deve procurar uma incansável e amante inteligência da fé. Tem de a servir com a ousadia de todas as forças da sua mente e do seu afecto. A fé cristã não é um calmante, é um excitante[6]. No entanto, nunca pode esquecer a recomendação de Tomás de Aquino que herdou da chamada teologia negativa, da teologia mística: de Deus não podemos saber o que Ele é, mas o que não é[7]. De Deus, tanto mais saberemos quanto mais nos apercebermos que excede tudo o que Dele compreendermos[8].

Não há só a mística de olhos fechados. São Macário, o Grande, testemunha que, aqueles que nasceram do Espírito Santo, acontece-lhes chorar e afligir-se por todo o género humano, implorando a Deus por toda a descendência de Adão. Se eles sofrem e choram, é porque estão abrasados de amor espiritual por toda a Humanidade. Depois, de novo, o Espírito suscita neles uma total alegria e um tal impulso de caridade que eles quereriam, se fosse possível, encerrar em seus corações todos os seres humanos, sem distinguir os maus dos bons[9].

Na Eucaristia em que hoje participo, é cantado o hino de Santa Catarina de Sena: Ó Deus, Trindade Santa,/ ó luz mais radiosa que toda a luz,/ fogo mais ardente que todo o fogo,/ Tu és um oceano, a paz,/ Tu és um mar sem fundo,/ mais eu mergulho, mais eu me afundo,/ mais eu Te encontro, mais eu Te procuro ainda./ Sede que Tu saciaste no deserto um dia,/ para sempre ficar com sede de Ti.

 

 

12 Junho 2022



[1] 1Cor 12

[2] Adversus haereses, IV, 20, 5-7

[3] L. Wittgenstein, Tagebücher 1914-1916, Werkausgabe, Vol. I, Suhrkampf: Francoforte, 1984, 167-8

[4] Não vou entrar, aqui, no debate sobre o humanismo, o transhumanismo e o pós-humanismo.

[5] Rm 8, 14-17; Gal 3, 26-28

[6] C.G. III, c.40

[7] I Pars, q.3, prólogo

[8] II-II, q.8, 7

[9] Cf. José Mattoso, Levantar o Céu, Temas e Debates, 2012, pp.192-193

terça-feira, 7 de junho de 2022

DE QUE ESPÍRITO SOMOS? Frei Bento Domingues, O.P.

 

1. Continuamos a viver, em muitas partes do mundo, tempos de confusão política e religiosa. A guerra voltou a esta Europa cansada de paz e sem memória das vítimas de um passado não muito longínquo.

 A invasão da Ucrânia, por mandato de Vladimir Putin, actual presidente da Rússia, recebeu o apoio do Patriarca de Moscovo, Cirilo I. Do ponto de vista cristão é inevitável a pergunta: qual é o espírito que move este Patriarca? O Espírito de Cristo – Espírito do Pentecostes – é um apelo universal à paz e à partilha dos bens da natureza destinados a todos os seres humanos. Não me pertence julgar as suas convicções e intenções, mas também não posso fechar os olhos e os ouvidos, embora não tenha de acreditar só no que é apresentado pelos meios de comunicação e das redes sociais.

Pode haver muitas formas de reagir às posições do Patriarca de Moscovo. A do Papa Francisco parece-me, do ponto de vista cristão, exemplar. Mandou-lhe uma mensagem nestes termos: «A festa de São Cirilo, o grande apóstolo dos eslavos, oferece-me a oportunidade de lhe enviar as minhas saudações e assegurar a minha oração por Sua Santidade e pela Igreja confiada ao seu cuidado pastoral. Nestes dias, rezo ao Pai celestial para que o Espírito Santo nos renove e nos fortaleça no ministério do Evangelho, especialmente nos nossos esforços para proteger o valor e a dignidade de cada vida humana». Termina a sua saudação, pedindo a Deus «o dom da sabedoria, para que sejamos sempre humildes trabalhadores na vinha do Senhor».

Tenho, por outro lado, de testemunhar, como muitas pessoas do mundo inteiro, que a eleição de Mario Jorge Bergoglio para bispo de Roma e Papa da Igreja Católica, em processo de abertura a todos os mundos, foi um autêntico Pentecostes, dom do Espírito de Cristo. Toda a gente pode saber de que espírito é o Papa Francisco.

A pergunta do título desta crónica – e talvez esteja a repetir-me – é essencial. Foi título de um famoso livro do Padre Joaquim Alves Correia (1886-1951) [1], que morreu no exílio por não aceitar a ditadura e o espírito da ditadura do católico António Oliveira Salazar (1889-1970), nem a estreiteza do catolicismo português. O seu primeiro livro chamava-se, precisamente, A Largueza do Reino de Deus. Quem não gostava dele dizia, em tom de troça: esse é o padre das larguezas!

O final do Evangelho de Mateus, que é um grande começo, põe na boca de Jesus a verdadeira missão da Igreja: Ide e fazei discípulos e discípulas de todos os povos, baptizando em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, ensinando a cumprir tudo quanto vos tenho mandado. Eu estarei sempre convosco até ao fim dos tempos[2]. Não se pode desligar a Igreja deste mandato, fonte permanente do seu caminho: fazer discípulas e discípulos da paz universal.

O Pentecostes é, precisamente, o dom universal do Espírito do Ressuscitado, Espírito de permanente insurreição não-violenta dos oprimidos. Por isso, S. Paulo tenta mostrar, de forma muito engenhosa, que, se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa fé, é vã a nossa esperança[3].

É interessante observar que, segundo os quatro Evangelhos, as narrativas da Ressurreição de Cristo têm por base o testemunho de várias mulheres. Os Actos dos Apóstolos fazem uma inflexão: contam que estes, depois da Ascensão, eram todos unânimes assíduos à oração, com algumas mulheres, entre as quais Maria, a mãe de Jesus, e os irmãos dele. Aí, ao contrário das narrativas da Ressurreição, são nomeados primeiro os apóstolos e, só a seguir, as mulheres. Não vou discutir estas divergências de perspectiva, mas não posso esconder a alegria de ter encontrado um ícone copta do Pentecostes que coloca as mulheres antes dos apóstolos. Não faz mais do que seguir a ordem das narrativas evangélicas.

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Caixa de texto: Ícone copta do Pentecostes

2. Hoje, Domingo de Pentecostes, de que já falei na crónica anterior, desejo reproduzir uma bela declaração que uns atribuem ao Patriarca Atenágoras (1886-1972) e outros, ao Patriarca Inácio Hazim, IV de Antioquia (1920-2012), observador no Concílio Vaticano II. É esta a declaração: Sem o Espírito Santo, Deus está longe; Cristo permanece no passado; o Evangelho é letra morta; a Igreja, uma simples organização; a autoridade, despotismo; a missão, propaganda; o culto uma evocação; e a vida cristã, uma moral de escravos. Mas no Espírito Santo o cosmos fica elevado e geme na gestação do Reino; o ser humano luta contra a carne; Cristo ressuscitado está presente, o Evangelho é poder de vida, a Igreja é ícone da comunhão trinitária; a autoridade, um serviço libertador; a missão, um novo Pentecostes; a liturgia é memorial e antecipação; e toda a vida cristã fica deificada.

Yves Congar, O.P. (1904-1995), no último volume da sua trilogia sobre o Espírito Santo[4], resumiu, assim, o seu tema: não há cristologia sem pneumatologia nem pneumatologia sem cristologia. De facto, uma Igreja sem o Espírito de Cristo é uma simples organização, exposta a todas as apetências e lutas pelo poder de mandar. Seria uma igreja mundana que não entende nem o ser humano nem o mundo nem Deus.

A pergunta, de que espírito somos, já vem dos Actos dos Apóstolos: Paulo, depois de atravessar as regiões do interior, chegou a Éfeso. Encontrou alguns discípulos e perguntou-lhes: recebestes o Espírito Santo, quando abraçastes a fé? Responderam: mas nós nem sequer ouvimos dizer que existe o Espírito Santo. Então, Paulo perguntou: que baptismo recebestes? Responderam: o baptismo de João. João – disse Paulo – ministrou apenas um baptismo de penitência e dizia ao povo que acreditasse naquele que ia chegar depois dele, isto é, Jesus. Tendo ouvido isto, receberam o baptismo em nome do Senhor JesusQuando Paulo, lhes impôs as mãos, o Espírito Santo desceu sobre eles e começaram a falar línguas e a profetizar.

3. Receio que, ao ler estas e outras narrativas do Novo Testamento, se fique com a impressão de automatismos rituais, quando de facto, implicam um caminho de conversão permanente. As celebrações dos sacramentos, a começar pelo Baptismo, exigem a construção de uma comunidade que vai apoiando o seu desenvolvimento ao longo de toda a vida. Perguntar a uma pessoa se foi ou não baptizada pouco adianta. A grande pergunta é se a apropriação do sacramento alterou e continua a alterar a nossa vida.

Quando ao longo da Eucaristia – não existe sem a acção do Espírito Santo – confessamos várias vezes que somos pecadores, não é masoquismo, não é autoflagelação, é uma declaração pública de que somos frágeis, falhamos muitas vezes, estamos a caminho e precisamos da ajuda de todos. Não nos damos por vencidos, porque podemos sempre abrirmo-nos à graça do Espírito de Cristo e à ajuda dos irmãos.

Se, no calendário litúrgico, existe o Dia de Pentecostes, não significa que estamos a comemorar um acontecimento de há dois mil anos. Só tem sentido se for para não esquecermos de que espírito somos: Espírito de Cristo, princípio vital de quem O acolhe e O testemunha no dia a dia e não, apenas, nos actos religiosos.

 

06 Junho 2022



[1] Padre J. Alves Correia, De que Espírito Somos, 1933

[2] Mt 28, 16-20

[3] 1Cor 15

[4] Yves Congar, La Parole et le Souffle, Desclée, 1984