1. Quem
vai à Missa nunca vai sozinho, vá ou não acompanhado, e sabendo que vai
encontrar muita gente de quem desconhece as motivações mais íntimas, mas na
convicção de que é o mesmo Espírito Santo que a todos convoca. Por outro lado,
não há um Espírito Santo da Missa e outro do quotidiano.
Quando digo que ninguém vai
sozinho, é por um simples pressuposto. Vai com todos os seus problemas que já
não são os de uma sociedade marcada pela religião. Transporta, em si mesmo, o
mundo secularizado, onde descobriu várias maneiras de encarar a vida e o seu
sentido. Por isso, mesmo ouvindo a leitura dos mesmos textos, cada pessoa faz
sempre a sua interpretação que pode não coincidir com a dos outros
participantes. Actualmente, quem faz a homilia presta um serviço de
interpretação dos textos, marcado pelos acontecimentos da semana, pela sua
cultura bíblica e profana, supondo que conhece o que as pessoas procuram e o
que ele tem a oferecer. Melhor seria que, em cada semana ou periodicamente,
houvesse um encontro com representantes das diferentes tendências e
preocupações, para não ceder à manipulação dos que participam na Eucaristia.
Tudo isso faz parte do
encontro e da comunhão eucarística, com o propósito de alimentar um processo
permanente de conversão, sabendo que, na multiplicidade de carismas numa
assembleia, nenhum é tão importante como o amor recíproco.
Todos se vão encontrar com
leituras de uma cultura muito antiga, do Antigo e do Novo Testamento, em
traduções de línguas que geralmente desconhece. Esta distância cultural vai
exigir um trabalho de interpretação actualizante. Foi o próprio S. Paulo que
chamou a atenção para esse árduo trabalho de interpretação[1].
2. A
liturgia deste Domingo reproduz uma passagem da Carta de S. Paulo aos Gálatas, na
continuação da do Domingo passado: «Foi
para a liberdade que Cristo nos libertou. Permanecei, pois, firmes e não vos
sujeiteis outra vez ao jugo da escravidão. Irmãos, de facto,
foi para a liberdade que vós fostes chamados. Só que não deveis deixar que essa
liberdade se torne numa ocasião para os vossos apetites carnais. Pelo
contrário: pelo amor, fazei-vos servos uns dos outros. É
que toda a Lei se cumpre plenamente nesta única palavra: Ama o teu próximo
como a ti mesmo. Mas, se vos mordeis e devorais uns aos
outros, cuidado, não sejais consumidos uns pelos outros. Mas eu
digo-vos: caminhai no Espírito e não realizareis os apetites carnais. Porque a carne deseja o que é contrário ao Espírito e o Espírito, o
que é contrário à carne; são, de facto, realidades que estão em conflito uma
com a outra, de tal modo que aquilo que quereis, não o fazeis. Ora,
se sois conduzidos pelo Espírito, não estais sob o domínio da Lei»[2].
Este texto pode prestar-se, não apenas a várias interpretações,
mas também a confusões que o desvirtuam completamente. Quando estabelece o
contraste entre as obras da carne e as do espírito, somos levados a pensar que as
obras da carne, confundidas com a vida sexual, eram as únicas escravizantes
e só escravizantes, nunca libertadoras. O corpo, onde se manifestam as
solicitações sexuais, era o inimigo da alma. Este angelismo foi fatal na moral pouco
católica. O corpo era, sobretudo, considerado como a sede do pecado. De facto, não
temos um corpo, somos um corpo animado, uma pessoa.
Um grande exegeta de S. Paulo, o português Manuel
Isidro Alves, ex-Reitor da UCP (1940-2002), deixou-nos um texto que tenta
desfazer essa confusão e que me vai guiar.
A Lei moisaica era um meio do ser humano atingir
a Deus numa determinada fase cultural e religiosa da História. A sua função era
a de um pedagogo, que orientava o povo no sentido mais conveniente da procura
de Deus. Porém, a piedade ritualista da Escola Sacerdotal, excessivamente
preocupada pela letra e menos atenta ao espírito, desvirtuou este ideal. O Farisaísmo
é a herança mais legítima desta religiosidade, que se tornou o objecto das
críticas mais acerbas da pregação de Jesus. A Lei deixou de ser um apelo de
Deus feito ao ser humano, no sentido de estabelecer com ele relações
dialógicas, para se transformar em ocasião propícia à manifestação daquele
sentimento de egoísmo que permanecia latente no coração do ser humano. Mesmo
cumprindo honestamente a vontade de Deus expressa na Lei, o fariseu procurava a
sua própria vontade à sombra da mesma Lei. Os Profetas verberaram asperamente
esta observância externa da Lei e anunciaram para os tempos messiânicos um
“espírito novo”, uma “lei escrita no coração” que havia de substituir a velha
Lei escrita em “tábuas de pedra”. A “Lei Nova” tem como objectivo libertar o
ser humano deste egoísmo latente, do apelo secreto que ele endereçava a si mesmo,
servindo-se da lei para, sob a forma de observância, iludir a responsabilidade rigorosa
e obediente nos confrontos de Deus. A dialética religiosa chama “pecado” a este
comportamento e atribui-lhe como efeito normal a “morte” eterna. Aqui surge a
situação paradoxal do regime da lei, onde o ser humano é arrastado por forças opostas[3].
As obras da carne, a que S. Paulo diz que não nos
devemos submeter, são, precisamente, as obras da lei realizadas em espírito
farisaico. Esse foi o combate de Jesus que Paulo assumiu, também de forma
radical. Desfeita esta confusão, podemos perceber que o essencial da Lei Nova é
a graça do Espírito Santo, espírito de liberdade, cujo fruto é o amor de Deus e
do próximo. É, por isso, que S. Paulo diz, na referida Carta aos Gálatas, que toda
a Lei se cumpre plenamente nesta única palavra: Ama o teu próximo como a ti
mesmo. Liberdade para servir e não liberdade para dominar o próximo. Os
nossos apetites desregrados manifestam-se sobretudo no desejo de ser cada vez
mais rico, alimentando todo o tipo de desigualdades. Esta concentração do
egoísmo é a negação mais vistosa do espírito cristão.
3. No mesmo Boletim do ISET, ao texto de Isidro
Alves segue o contributo de Christian Duquoc sobre o conceito teológico de
libertação. Para ele, a libertação cristã não é uma utopia. Se a utopia é, no
seu sentido preciso, um modelo invertido de uma dada sociedade, o cristianismo
não entra nessa categoria. É, em primeiro lugar, um grito de revolta, o grito
dos escravos e dos explorados. Este grito povoa a história. Dá um vigor
estranho à Bíblia. (…) Pense-se nos profetas, denunciando a exploração; em Job,
levantando-se contra a hipocrisia das teses oficiais: «mesmo que Deus me
matasse, eu teria razão contra ele»; lembremo-nos de Jesus, abalando os
poderosos do seu tempo e gritando para o próprio Deus: «Porque me
abandonaste?». O cristianismo é um grito de revolta que Deus fez seu e é, por
isso, que o cristianismo é uma esperança, uma esperança activa. Realiza-se em
libertações concretas, sectoriais, segundo os tempos, os lugares e as situações,
em cada momento histórico. Por isso, o cristianismo é prático[4]. Se fosse apenas um grito, arriscava-se a passar
da revolta à resignação. É no meio dos conflitos e das diversas opiniões que é
preciso fazer nascer e renascer a liberdade.
26 Junho 2022
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