domingo, 13 de junho de 2021

FALAR EM PARÁBOLAS Frei Bento Domingues, O.P.

 

1. Desde há muitos anos que escuto a repetição da mesma pergunta: porque é que os católicos vão à Missa? Antes desta pergunta, não havia pergunta: vão à Missa porque é um mandamento da Santa Madre Igreja. Como as Missas eram em latim e, como acontecimento divino, tinham todas o mesmo valor. Os que não rezassem o terço só esperavam que ela fosse rápida. Entretanto, veio o Concílio Vaticano II e foram rapidamente aprovadas as grandes linhas da reforma litúrgica, pois era a realização dos estudos e anseios do movimento litúrgico[1]. Mais demorada, atribulada e polémica foi a sua execução.

As novas gerações não podem, sequer, imaginar esse passado. Existem, porém, grupos saudosos da Missa em latim para continuarem uma época quase extinta. As razões da diminuição da prática dominical, em vários países, não se confundem com essa reforma e a pergunta regressa e apresenta-se de uma outra maneira: o que é que os católicos vão fazer à Missa?

A resposta mais simples e directa: vão celebrar a sua fé. Num tempo e lugar determinados, fazem a festa da universal família de Cristo. Os celebrantes estão sempre marcados pela cultura e pelos problemas locais abertos ao mundo todo. Seria normal que os rituais da festa espelhassem essa dupla condição.

O mundo está sempre em evolução. Os celebrantes – todos os participantes – não podem situar-se fora do que acontece à sua volta e das transformações que, lentamente, vão acontecendo na Igreja.

Na crónica do dia 30 de Maio, já referi o novo contexto em que se deve desenvolver toda a vida da Igreja: a 7 do passado mês de Março, foi anunciado um Sínodo dos bispos para dizer que não será só de bispos, mas de toda a Igreja, de homens e mulheres. É a pirâmide invertida.

Já a 17 de Outubro de 2015, o Papa tinha essa preocupação sinodal: «Aquilo que o Senhor nos pede, de certo modo está já tudo contido na palavra Sínodo. Caminhar juntos – leigos, pastores, Bispo de Roma – é um conceito fácil de exprimir em palavras, mas não é assim fácil pô-lo em prática. O caminho sinodal é precisamente o caminho que Deus espera da Igreja do terceiro milénio».

No próximo mês de Outubro, começa essa prática: o Papa dará início a um caminho sinodal de três anos e articulado em três fases (diocesana, continental, universal), feito de consultas e discernimento, que culminará com a assembleia de Outubro de 2023 em Roma. O que diz respeito a todos deve ser tratado por todos. A lei é esta: «um à escuta dos outros; e todos à escuta do Espírito Santo».

Não vamos suspender a vida da Igreja até às conclusões do sínodo. Não vamos fechar a Igreja para obras. Cada um de nós tem um tempo limitado de vida para se tornar melhor e tornar melhor o mundo. Nunca existiu um paraíso, um mundo perfeito, mas que pode ser diferente, pode ser melhor para todos. Não deixar para mais tarde o que já pode ser feito agora.

2. Que fazer desde já? Para que são convocados os católicos que frequentam as celebrações da fé cristã? As assembleias celebrantes são compostas de pessoas com talentos, profissões e carismas muito diversos. Nas celebrações, sentem-se convocadas para quê? Será apenas para passar uns momentos de oração e ouvir homilias, boas, medíocres ou insignificantes?

Uma celebração não é um comício nem uma conferência, mas não deve estar desligada do que está a acontecer na sociedade e na Igreja. Deve ser a interpretação e a transfiguração musical, poética, mística e ética de toda a semana. É mais do que uma revisão de vida, não menos. O importante é saber relançar a esperança no meio das incertezas. Ninguém deveria regressar a casa satisfeito com o que já conseguiu. É fundamental entender que o bom caminho é o das perguntas pertinentes. A arte de se interrogar e de acolher interrogações é a melhor companhia de quem está vivo e não é indiferente ao que acontece[2].

O tempo dos protestos contra o que está mal nunca pode ser encerrado, mas é estéril se não conduzir a intervenções transformadoras. Antes do Papa Francisco, não faltaram pessoas e movimentos de protesto. Em muitos aspectos, o Papa já foi mais longe do que muitos poderiam esperar. As suas intervenções directas e através de documentos já cobriram as grandes dimensões de uma vida humana responsável pela ecologia integral, propostas de trabalho para uma nova economia, acolhimento dos gritos da terra, dos pobres e explorados.

Quanto às reformas internas do Vaticano, nada parece esquecido, não só pelas recentes auditorias à Congregação para o Culto Divino e Disciplina dos Sacramentos e à Congregação para o Clero, como o documento, esperado para breve, da reestruturação da Cúria.

Porque será que as homilias das celebrações da Missa são sempre feitas pelos padres e bispos? Nas assembleias litúrgicas existem mulheres e homens, de profissões muito diferentes, que poderiam ser chamados a preparar e a fazer as homilias. Fala-se muito contra o clericalismo, mas depois, reserva-se ao clero o que podia ser realizado pelo conjunto dos cristãos. É evidente que as celebrações da fé não esgotam outras iniciativas que testemunhem que os cristãos devem ser sal da terra e luz do mundo. Pelo contrário, exigem-nas e devem provocá-las com diversas formas de organização. António Marujo e Ricardo Perna (Família Cristã) apresentaram, no 7Margens (08.06.2021), algumas das iniciativas já postas em prática, em várias instituições católicas portuguesas, tentando corresponder aos apelos e sugestões do Papa Francisco na encíclica Laudato Si’.

3. O texto do Evangelho escolhido, para este Domingo, pertence ao capítulo 4 de S. Marcos, um capítulo fabricado com parábolas e com um grande enigma que roça o absudo: para que vendo, vejam e não percebam; e ouvindo, ouçam e não entendam; para que não se convertam e não sejam perdoados. Se o efeito procurado é este, mas valia estar calado e ser surdo. Esta citação é também uma parábola que diz, de forma paradoxal, o fundo de todas elas: para entender é preciso querer entender; para se converter é preciso desejar mudar de vida.

As parábolas são uma forma de linguagem para obrigar a pensar, para querer entender as suas múltiplas significações e incendiar a imaginação. Não pertencem à linguagem da publicidade ou do marketing, de levar o auditório, através de habilidades, a um objectivo pré-estabelecido sem que o auditório se perceba que está a ser manipulado. A parábola, pelo contrário, exige um percurso intelectual e afectivo para descobrir significações que não estão à vista. Não é uma linguagem unívoca, mas simbólica, de muitas significações, como é a realidade do mundo e do Reino de Deus.

Tanto a parábola da semente que germina por si só, como a do grão de mostarda, não são lições para agricultores. Os semeadores do Evangelho de Cristo não dispõem de um manual de instruções para obter um bom resultado das suas intervenções. São semeadores de perguntas, de enigmas, de provocações a pensar, imaginar e agir, sem garantias de sucesso.

 

 

 

13. Junho. 2021

 



[1] Constituição conciliar, Sacrosanctum concilium, sobre a sagrada liturgia, 1963

[2] Cf. Gianfranco Ravasi, Adán, donde estás? Preguntas antropológicas contemporâneas, BAC Popular, 2020

segunda-feira, 7 de junho de 2021

COMO SE DEUS NÃO EXISTISSE Frei Bento Domingues, O.P.

 

1. O autor do título desta crónica é um mártir cristão, o pastor luterano, Dietrich Bonhoeffer (1904-1945). Deixo, aqui, um breve apontamento para situar essa expressão paradoxal que nada tem a ver com agnosticismo ou ateísmo.

No início de 1933, a ascensão de Hitler ao poder provocou uma disputa no seio da Igreja Evangélica Alemã, à qual Bonhoeffer pertencia. Muitos luteranos acolheram favoravelmente o advento do nazismo e, no verão de 1933, alguns até propuseram uma resolução que impedia os “não arianos” de se tornarem ministros de culto ou professores de religião. Bonhoeffer opôs-se a essa tese, afirmando que a sua ratificação submeteria os ensinamentos cristãos à ideologia política: se os “não arianos” fossem impedidos de aceder ao ministério, então, os pastores teriam de renunciar, em sinal de solidariedade, e de fundar uma nova Igreja livre da influência do regime.

Em Maio de 1934, nasceu a Igreja Confessante, liderada pelo próprio Bonhoeffer em oposição aberta ao nazismo e ao silêncio da Igreja oficial. Em Agosto de 1937, foi publicada uma ordem de Himmler que declarava ilegal a actividade da formação de candidatos a pastores para a Igreja Confessante e, em Setembro, o Seminário de Finkenwalde foi fechado pela Gestapo.

Bonhoeffer não estava parado nas suas actividades e continuava professor na clandestinidade. Em Janeiro de 1938, a Gestapo expulsou-o de Berlim e, em Agosto de 1940, foi proibido de falar em público. Em Março de 1941 foi proibida a publicação dos seus escritos.

Entretanto, estava ligado a um grupo de resistência e conspiração contra Hitler. Foi preso no dia 5 de Abril de 1943, acusado de conspirar contra Hitler. Condenado por um tribunal, juntamente com o Almirante Canaris, cinco militares de alta patente e um juiz, foi enforcado no dia 9 de Abril de 1945, 10 dias antes da libertação do campo. No dia anterior à execução, despediu-se de um prisioneiro inglês, dizendo: «Este é o fim – para mim, o começo da vida».

Em 1955, o médico do campo de concentração, Hermann Fischer-Hüllstrung, dá o seguinte testemunho: «Eu vi o pastor Bonhoeffer ajoelhado, rezando ferverosamente a Deus. Fiquei profundamente comovido com a maneira como esse homem, extraordinariamente simpático, rezava tão devoto e certo de que Deus ouvia a sua oração, antes de se despir (os executados deviam despir-se completamente e ir nus para a forca). No lugar da execução, rezou novamente uma breve oração e, depois, subiu os poucos degraus da forca, corajoso e calmo. A sua morte ocorreu após alguns segundos. Nos meus quase 50 anos de atividade médica, dificilmente vi um homem morrer tão inteiramente entregue nas mãos de Deus».

O que se passou sob o ponto de vista religioso, na experiência da cadeia, foi o convívio com pessoas sem referência a Deus: «Não podemos ser honestos sem reconhecer que temos de viver no mundo etsi Deus non daretur (como se Deus não existisse). E isso é precisamente o que reconhecemos… perante Deus! É o próprio Deus quem nos obriga a esse reconhecimento. Assim, o nosso acesso à maioridade leva-nos a um verdadeiro reconhecimento da nossa situação perante Deus. Deus faz-nos saber que temos de viver como seres humanos que conseguem viver sem Deus. O Deus que está connosco é o Deus que nos abandona (Mc 15, 34: Meu Deus, meu Deus porque me abandonaste?). O Deus que nos faz viver no mundo sem a hipótese de trabalho “Deus” é o Deus, perante o qual, nos encontramos constantemente. Perante Deus e com Deus, vivemos sem Deus. Deus, cravado na cruz, permite que o expulsem do mundo. Deus é impotente e débil no mundo e, precisamente, só assim está connosco e nos ajuda. Mt 8, 17 indica-nos claramente que Cristo nos ajuda não pela sua omnipotência, mas pela sua debilidade e pelos seus sofrimentos».

A sua experiência está marcada pelo que viu em Cristo, completamente fiel a Deus, sem que Deus se tenha mostrado na sua paixão e na sua morte. Acabou, no entanto, dizendo: nas Tuas mãos entrego o meu espírito[1].

2. Etty Hillesum, uma judia holandesa, morta em Auschwitz, aos 28 anos, deixou-nos um testemunho, não só de um Deus impotente e débil no mundo, mas também um Deus que precisa de ajuda:

«(...) Cada dia já tem a sua conta. Vou ajudar-te, Deus, a não me abandonares, apesar de eu não poder garantir nada com antecedência. Mas torna-se-me cada vez mais claro o seguinte: que tu não nos podes ajudar, que nós é que temos de te ajudar e, ajudando-te, ajudamos a nós próprios. E esta é a única coisa que podemos preservar nestes tempos e também a única que importa: uma parte de ti em nós, Deus. E talvez possamos ajudar a pôr-te a descoberto nos corações atormentados de outros. (...) Como vês trato bem de ti. (...) E se Deus não me ajudar mais, nesse caso hei-de eu ajudar a Deus»[2].

Quer o testemunho de Bonhoeffer quer o de Etty Hillesum levantam a questão da oração. Mostram que a oração, como diz o Papa Francisco, não é para converter a Deus, mas para nos convertermos ao Seu amor que excede tudo o que poderíamos desejar e pedir. Não é um acto de magia ou um negócio, mas uma abertura, cada vez mais radical, ao Seu insondável mistério.

O Evangelho já tinha atribuído a Jesus o conselho de não multiplicarmos as nossas palavras, como se Deus não soubesse o que se passa connosco e com o mundo. Como diz S. Paulo, nós não sabemos rezar. É o Espírito que vem em auxílio da nossa fraqueza, pois não sabemos o que havemos de pedir, para rezarmos como deve ser; mas o próprio Espírito intercede por nós com gemidos inefáveis. E aquele que perscruta os corações conhece os desejos do Espírito, pois é segundo Deus que o Espírito intercede pelos santos[3].

É evidente que nós não podemos abdicar de exprimir o que sentimos, o que desejamos, para nós e para os outros. George Bernanos, um grande romancista católico, insistia na necessidade da oração pessoal e acrescentava: nunca obtive o que pedi, mas saí sempre da oração transformado, mais convertido.

3. A expressão, como se Deus não existisse, pode ter muitas interpretações e não apenas as que referimos nesta crónica. Pode também ser a expressão da indiferença perante o fenómeno religioso. Os meios de comunicação correntes fazem de conta que Deus ou a religião não existem: não são notícia a não ser quando há escândalos.

É importante que a laicidade seja a regra dos regimes políticos e que garanta a liberdade religiosa. A religião não é um fenómeno privado, é também um fenómeno social de muitas faces. Daí, a importância de meios de comunicação, como o 7Margens, a Pastoral da Cultura, a Ecclesia, etc., que sejam abertos ao pluralismo religioso e ao diálogo inter-religioso.

 

 

06. Junho. 2021



[1] Cf. Dietrich Bonhoeffer, Resitência e submissão. Cartas e anotações escritas na prisão, Sinodal, 2003; cf. também Como se Deus não existisse, Eduardo Lourenço e Luís de França, Reflexão Cristã, nº 42, pp. 29-58

[2] Etty Hillesum, Diário 1941-1943, Assírio & Alvim, 20093, pp. 251-252 e 245

[3] Rm 8, 26-27

quinta-feira, 3 de junho de 2021

Pe. António Ino - IN MEMORIAM


 

O P. António Ino marcou a história missionária da evangelização em Portugal e Moçambique

Quarta-feira, 2 de Junho de 2021
Faleceu o Padre António Ino às 8h30 desta manhã de 2 de Junho, na comunidade comboniana de Viseu. No próximo dia 25 de Junho, celebraria os seus belos 91 anos. Nasceu em Lacedonia, província de Avellino, na Itália. Fez os primeiros votos no Instituto comboniano no dia 5 de Agosto de 1955 e os perpétuos a 5 de Agosto de 1958. Foi ordenado sacerdote no dia 29 de Junho de 1959.

O seu nome marca a história missionária da evangelização em Moçambique, onde trabalhou durante 29 anos, de 1973 a 2002. A maioria dos sacerdotes e bispos moçambicanos conheço-o muito bem, porque foi director espiritual no Seminário Maior de Santo Agostinho, na Matola, durante muitos anos. Foi também um missionário ilustre em terras portuguesas, onde despendeu 36 anos da sua vida, sendo particularmente conhecido nas dioceses de Coimbra, Santarém e Viseu. Aqui, nas últimas décadas, exercia o ministério de confessor. Era muito procurado por padres, bispos e leigos que queriam ouvir os seus conselhos e receber a absolvição dos seus pecados.


O seu funeral realizar-se-á na próxima sexta-feira, dia 4 de Junho, na capela do seminário comboniano de Viseu..

“Damos graças a Deus pela longa vida missionária deste nosso irmão e rezamos para que o Senhor o acolha nas moradas eternas”, escreve o P. Fernando Domingues, superior provincial dos combonianos, em Portugal, ao comunicar a notícia do falecimento do P. António Ino.


Pelas informações colhidas esclareço que o funeral se realizará pelas 11H00. A quem tencionar estar presente solicita-se compareça com alguma antecedência.