1. O
Natal de Jesus de Nazaré inspirou, em todas as épocas, as mais belas obras de
arte – música, literatura, pintura, arquitectura – e é possível encontrar nelas
uma fonte de alegria porque, como diz Emir Kusturica, a felicidade produzida
pela arte é o maior feito dos seres humanos[1].
Inspirou, sobretudo, uma nova arte de viver. Como escreveu Frederico Lourenço,
na Introdução aos Quatro Evangelhos[2],
«Na segunda metade do século I da era cristã, o manancial (já de si tão rico)
de textos em língua grega veio a enriquecer-se ainda mais com o aparecimento de
quatro textos que mudaram para sempre a História da Humanidade. Nesses textos,
o leitor escolarizado da época ter-se-ia confrontado com uma temática muito diferente
da que conhecia de Homero, Sófocles ou Platão. Pois nestes quatro textos não se
falava das façanhas heroicas de reis e de guerreiros, nem se reportavam as
conversas de aristocratas atenienses com o lazer e o dinheiro para se dedicarem
à filosofia. Aqui falava-se de pescadores e de leprosos; falava-se de pessoas
desprezadas pela baixa condição na sociedade, pelas suas deficiências físicas,
pelos seus problemas de saúde mental; falava-se de figuras femininas que não
eram as rainhas e princesas da epopeia e da tragédia gregas, mas sim mulheres
normais da vida real (a queixarem-se da lida da casa ou a exercerem, talvez, a
mais antiga profissão do mundo). Acima de tudo, nestes quatro textos falava-se
de certo homem, filho de um carpinteiro nazareno: um homem carismático, cheio
de compreensão por todo o tipo de sofrimento humano; um homem que, apesar de
não ter praticado qualquer crime, acabou por morrer crucificado como se fosse
um criminoso, no meio de dois ladrões. Esse homem – que muitos foram reconhecendo
como “Ungido” (Khistós: Cristo) de Deus e até como Filho de Deus
– era portador da mais extraordinária das mensagens, transmitida com palavras
simples, por vezes sob a forma de pequenas histórias singelas, compreensíveis
em qualquer aldeia.
«Por terem sido escritos num
grego despretensioso, sem vestígio da sumptuosidade verbal dos grandes autores
helénicos, é provável que estes quatro textos nem merecessem ao leitor culto da
época o alto estatuto de literatura. No entanto, estes textos conquistaram o mundo
antigo, tanto grego como romano. Lendo-os dois mil anos depois, não é difícil
perceber porquê. Sobre um desses textos já se escreveu que se trata do “mais
divino de todos os livros divinos”: na verdade, essa descrição assenta a
qualquer um deles. São textos que – com a sua mensagem sublime veiculada por
palavras cuja beleza desarmante ainda deixa arrepiado quem os leu e releu ao
longo de uma vida inteira – estão simplesmente numa categoria à parte».
Não se podia dizer melhor. Jesus
não deixou nada escrito e os escritos acerca de Jesus não são biografias. Não
são reportagens. Recolhem testemunhos de pessoas e comunidades que foram
transformadas ao seu contacto. Esses escritos mostram que os discípulos tiveram
muita dificuldade em entender o sentido da intervenção de Jesus. Procuravam uma
figura e um caminho que nada tinham a ver com o Nazareno. O Mestre teve de lhes
dizer: não há poder nenhum de dominação para ninguém. Quem procura poder seja o
primeiro a servir, porque o filho do homem não veio para ser servido, mas
para servir e dar a vida por todos. A história das Igrejas cristãs repetiu,
muitas vezes, o equívoco dos discípulos, mas também tem encontrado pessoas e
grupos que nasceram de novo e, quando parece que está tudo perdido,
retomam o caminho de Jesus com o seu Espírito.
2.
Vivemos, neste momento, o mesmo desafio – nascer de novo – para semear
esperança de que a transformação do mundo, na linha da mensagem de Jesus, é
necessária e é possível. Podemos também repetir: a tarefa é imensa e os
operários para esse mundo novo são poucos, muito poucos. O Papa Francisco tem
mais admiradores do que seguidores, mas nem por isso, Francisco desarma.
Estes quatro textos, de há
dois mil anos, não foram escritos para nos atar ao passado, àquele tempo.
Tomás de Aquino estava convencido e teve
a ousadia de dizer: o que aconteceu há dois mil anos atinge todos os tempos e
lugares. Cristo está vivo. São textos para dizerem como é que podemos mudar a
nossa vida e não, apenas, a dos seus discípulos de há dois mil anos. Um credo
fundamental foi encontrado por um autor pagão: em Deus vivemos, nos movemos
e existimos[3].
Da Primeira Carta de S. João, chegou-nos algo de
extraordinário: «O que existia desde o princípio, o que ouvimos, o que vimos
com os nossos olhos, o que contemplámos e as nossas mãos tocaram relativamente
ao Verbo da Vida. (…) Isto vos escrevemos para que a nossa
alegria seja completa»[4]. É um passado que não passa. O cristianismo só
tem sentido se abrir portas e janelas para o mundo da alegria.
Acusam Bergoglio de trair a
autêntica tradição católica. Por isso, não o consideram verdadeiro Papa. Esta
acusação parte de uma confusão entre Tradição e tradições e, muitas delas, estão
em contradição com o Evangelho de Jesus Cristo. O que o Papa procura é,
precisamente, recuperar a Tradição viva, submergida por tradições e costumes que
a ocultam.
O Papa Francisco não
manifesta muito apreço pelo reino das abstacções. Os seus textos referem-se
sempre a situações concretas que procura socorrer o presente e abrir o futuro.
Destaco, apenas, três documentos: o seu manifesto, Evangelii Gaudium,
sobre a alegria do Evangelho, a esperança
dum renascimento dos escombros da história, o início dum futuro luminoso; Laudato
Si’ sobre uma ecologia integral para salvar a Casa Comum, a casa de todos; Fratelli
Tutti que recupera o que há de mais genuíno e profundo: a fraternidade. A
Idade Moderna consagrou a famosa trilogia – liberdade, igualdade e fraternidade
–, mas é, precisamente, a fraternidade que falta fazer, não é só uma bela
palavra.
3. A 8
de Dezembro de 1967, o Papa Paulo VI escreveu uma mensagem propondo a criação
do Dia Mundial da Paz, a ser festejado no dia 1 de Janeiro de cada ano.
Mas o Papa não queria que a comemoração se restringisse apenas aos católicos –
para ele, a verdadeira celebração da paz só estaria completa se envolvesse
todos os seres humanos. De facto, foi João XXIII que escreveu um
verdadeiro manifesto pela Paz, dirigido a todos os seres humanos de boa
vontade, a famosa Pacem in Terris (1963). O fundamento da Paz era a
busca da verdade, na justiça, no amor e na liberdade, num momento em que a comunidade internacional parecia
estar na direcção do terceiro conflito mundial.
Este ano, o
Papa Francisco entrou e reforçou essa dinâmica com a espantosa mensagem: Diálogo
entre gerações, educação e trabalho: instrumentos para construir uma paz
duradoura.
É uma leitura
obrigatória acerca do essencial. Com a paz tudo é possível, com as guerras, só
destruição. Perante as ameaças, temos de fazer um Bom Ano!
26. Dezembro. 2021