segunda-feira, 26 de outubro de 2020

NINGUÉM PODE SALVAR-SE SOZINHO Frei Bento Domingues, O.P.

1. Estes não são tempos de euforia. As festas que a pretendem imitar acabam sempre em redobrada tristeza. Às loucuras das guerras e novas ameaças de guerras veio juntar-se a devastação mundial provocada pela Covid-19 que, além das pessoas que mata e dos recursos que consome, vai deixar muita gente abandonada à miséria. Por isso, não é nada enganosa a publicidade que repete: cuidar de si é cuidar de todos!

É verdade que o incómodo da máscara, da etiqueta respiratória, da limpeza das mãos, da distância física, etc., é muito irritante. Recorrer a sofismas, para dizer que não está cientificamente demonstrada a eficácia desses cuidados, não passa de um exercício de banal e oca retórica.

     Ver em todas as medidas governamentais, que tentam impedir o alastramento da pandemia, um atentado à liberdade e aos direitos humanos é uma reacção que roça a paranóia. O coronavírus não costuma respeitar as nossas reais ou fictícias arrelias.

O bom senso, que não precisa de receita médica, aconselha a boa distância entre o pânico imobilizador e o desleixo fatal. O sentido da responsabilidade, pessoal e social, fica mais barato do que o confinamento ou o internamento hospitalar.

Resta um desafio para a nossa imaginação: como reinventar e multiplicar as manifestações de afecto e de bom humor que anulem o mau distanciamento e a indiferença, sobretudo em datas de reunião familiar, como as do Natal religioso ou agnóstico?

Não está bem atribuir sempre à Covid-19 o mau costume de substituir razões e argumentos pela agressividade assassina nos meios de comunicação social e na própria Assembleia da República, considerada a pátria da democracia.

O diálogo vigoroso não precisa nem de ser açucarado nem azedo. A amizade política favorece a verdade da informação e o rigor da argumentação, nos debates que visam o bem comum entre os proponentes de projectos diferentes de sociedade. O dissenso entre esses projectos não deveria impedir os consensos, sobretudo, quando calamidades impostas geram graves crises sociais que afectam os mais pobres e débeis.

Como diz M. Correia Fernandes, director da Voz Portucalense, «a nossa imprensa, quer a mais vista lida quer a mais lida (o que não é bem a mesma coisa) tem vindo a assumir um vocabulário que pretende ser apelativo ou pretensamente expressivo, mas que apenas esconde uma mentalidade eivada de violência escondida ou disfarçada. (…) Com palavras construímos e com elas aniquilamos. Com elas apaziguamos e com elas criamos conflitos e guerras. Com o seu mau uso, podemos destruir tanto trabalho feito, tanta proximidade aniquilada, tantas relações construtivas. Quanto relacionamento humano se perdeu por palavras mal ditas!»[i].

Francisco Louçã mostra que, nos dias de hoje, a necropolítica condiciona e transforma a razão democrática de várias formas: «porventura a mais poderosa e que tenho vindo a sublinhar, é a que levanta uma cultura de ódio para se sobrepor à experiência da vida das pessoas. É a necropolítica no sentido puro: o racismo (…) Esta cultura de ódio é social quando é racial, e é sempre social mesmo quando não é racial. O racismo pode ser o seu enunciado mais poderoso, porque mobiliza o recalcado e fornece uma autodesculpabilização dos cúmplices, mas todo o discurso odioso tem por objectivo criar medo e instalar o impensável»[ii].

2. A liturgia deste Domingo começa com um eloquente texto do Antigo Testamento, cheio de lições para o nosso tempo de xenofobia: «Não usarás de violência contra o estrangeiro residente nem o oprimirás, porque foste estrangeiro residente na terra do Egipto. Não maltratarás nenhuma viúva nem nenhum órfão. Se tu o maltratares, e se ele clamar por mim, hei-de ouvir o seu clamor (…). Se emprestares dinheiro a alguém do meu povo, ao indigente que está contigo, não serás para ele como um usurário: não lhe imporás juros. Se penhorares o manto do teu próximo, devolver-lho-ás até ao pôr-do-sol, porque a capa é tudo o que ele tem para cobrir a pele. Com que dormiria? E se vier a clamar por mim, ouvi-lo-ei, porque Eu sou misericordioso»[i].

Através de gerações e gerações, esquecemos algo elementar: o mundo todo foi e é feito de migrantes. Não fomos os primeiros a ocupar o território em que hoje vivemos. O desprezo ou o ódio pelo estrangeiro, em nome de um nacionalismo cego, tem tanto de antigo como de errado.

Ao pôr limites às fronteiras que o mundo ergueu, o Papa Francisco repete que os nossos esforços, a favor das pessoas migrantes que chegam, podem resumir-se em quatro verbos: acolher, proteger, promover e integrar. Devemos oferecer aos migrantes a  

possibilidade dum novo desenvolvimento pois, se forem ajudados a integrar-se, eles são uma bênção, uma riqueza e um novo dom que convida a sociedade a crescer.

A paz social é muito trabalhosa, artesanal. Integrar realidades diferentes é muito difícil e lento, embora seja a garantia de uma paz real e sólida. O que conta é gerar processos de encontro, processos que possam construir um povo capaz de recolher as diferenças. Armemos os nossos filhos com as armas do diálogo. Ensinemos-lhes a boa batalha do encontro[i]!

3. Da Segunda Guerra Mundial, Franz Kafka deixou-nos o seu testemunho: «A guerra, a revolução russa e a miséria do mundo inteiro, afiguram-se-me uma espécie de dilúvio do Mal. É uma inundação. A guerra abriu as comportas do Mal. As escoras, que sustentavam a existência humana, partiram-se. O porvir histórico já não repousa no indivíduo e sim nas massas. Atropelam-nos, empurram-nos, varrem-nos. Sofremos a história… Perdemos o conhecimento sem perdermos a vida. O marquês de Sade é o verdadeiro patrono da nossa época, pois não pode alcançar a alegria de viver a não ser através do sofrimento alheio, do mesmo modo que o luxo dos ricos tem de ser pago pela miséria dos pobres»[ii].

No Encontro internacional em prol da paz no espírito de Assis, realizado na Praça do Capitólio (Roma), no dia 20 deste mês, foi lido um grande Apelo de Paz:

Nesta Praça do Capitólio, pouco tempo depois do maior conflito bélico de que há memória na história, as nações que se guerrearam estabeleceram um Pacto, fundado sobre um sonho de unidade que em seguida se realizou: uma Europa unida. Hoje, neste tempo de desorientação, açoitados pelas consequências da pandemia Covid-19, que ameaça a paz ao aumentar as desigualdades e os medos, digamos com força: Ninguém pode salvar-se sozinho, nenhum povo, ninguém!

Os que pensam que se podem salvar sozinhos perderam a memória desse Pacto histórico.

 

25. Outubro. 2020




[i] Cf. Fratelli Tutti, nº 129-135 e 217

[ii] Cf. Charles Mœller, Literatura do século XX e cristianismo, Vol. III, Esperança dos Homens, Flamboyant, São Paulo, 1959, pp. 346-347.



[i] Ex 22, 20-26




[i] Voz Portucalense de 07.10.2020

[ii] Cf. Francisco Louça, Choque e pavor serão o futuro da política? Revista Expresso de 17.10.2020


domingo, 18 de outubro de 2020

UMA ESTRANHA CAIXA DE CORREIO Frei Bento Domingues, O.P.

1. O livro de António Marujo, A Caixa de Correio de Nossa Senhora[i], é, para mim, o grande livro do ano sobre o fenómeno religioso, ao desvendar, por uma investigação inédita e rigorosa, um arquivo até agora desconhecido e indispensável para conhecer o Coração que move os peregrinos da maior peregrinação do Ocidente.

O autor é bem conhecido. Integrou o núcleo fundador do Público, onde esteve até Janeiro de 2013, sendo responsável pela informação religiosa. É autor premiado de várias obras no âmbito dessa vasta temática e director de 7Margens, Jornal digital dedicado a dar a conhecer o que acontece no mundo das religiões e as formas complexas como marcaram e marcam a história vivida dos crentes.

O seu profundo conhecimento da problemática de Fátima já tinha sido bem demostrado[ii]. Entretanto, ao procurar um tema novo sobre a questão religiosa durante a Primeira Guerra Mundial, no que a Portugal dizia respeito, reencontrou-se com o segredo dos segredos de Fátima, de um modo surpreendente, narrado por ele próprio.

Em 2016, num encontro com jornalistas, responsáveis do Santuário de Fátima aludiram aos milhões de mensagens que se encontravam depositadas no Arquivo e que tinham começado a ser tratadas dois anos antes. Era uma mina inexplorada das expressões mais individualizadas, genuínas e vividas da profunda confiança em Nossa Senhora de Fátima. Como diz António Marujo, «nessas mensagens entram todos os temas: fé e descrença, amores e desamores, saúde e dinheiro, afectos e sexualidade, escola e juventude, pais e filhos, Igreja e política. E também, claro, as preocupações com a guerra e a paz, com a justiça»[i]

Antes de continuar, cumpre-me ressaltar a sensibilidade histórica e o extremo cuidado, manifestados pelo Santuário de Fátima, ao arquivar todo esse imenso correio. É algo raro e espantoso. É verdade que existia a tradição dos santuários conservarem os ex-votos, manifestações de agradecimento pelas graças recebidas, em expressivas pinturas de arte popular. Isto, antes da moda comercial dos miseráveis bonecos de cera que lhes sucederam.

 Ainda há pouco tempo, era frequente encontrar, em muitos santuários, mensagens comoventes de pedidos urgentes de socorro e de agradecimento, escondidas debaixo de

algumas imagens de santas e santos de mais confiança. Por incompetência de alguns irresponsáveis iam parar ao caixote do lixo, interpretadas como meros signos da ignorância supersticiosa. Um mínimo de antropologia religiosa teria salvado documentação importante para a história das mentalidades de diversas épocas da nossa história colectiva.

2. Feito este parêntesis, que podemos encontrar no Correio de Nossa Senhora, em Fátima?

Como diz, de forma sintética, A. Marujo «nele, encontramos muitos mistérios e declarações, pedidos de saúde ou de emprego para o próprio ou outras pessoas, amores proibidos e confessados, crimes escondidos, desilusões amorosas, angústias existenciais, orações pela paz no mundo e pela “conversão dos pecadores” ou da Rússia, pelo fim da guerra colonial, na sua dimensão política (a derrota dos “terroristas” ou do “comunismo”) ou mais pessoal (o regresso de um filho, um namorado, um neto mobilizados )…

«Se em cada mensagem há um mistério, todas juntas elas revelam muito do que era o país, há poucas décadas, marcado ainda pelo analfabetismo, pobreza e falta de protecção social. E revelam, também, muito do que foi e é importante na vida de milhões

de portugueses e estrangeiros: os pedidos para que filhos, netos, noivos ou namorados regressem da guerra, sãos e salvos; que o pai deixe de bater na mãe; que o marido deixe a vida dissoluta; que a mulher deixe de ser ofensiva e aceite a família do cônjuge; que os pais se dêem bem; que se consiga o emprego necessário; que se encontre um noivo ou um namorado desejado; que se resolvam problemas de saúde ou se obtenha a passagem nos exames para os quais (pouco ou nada) se estudou…»[i].

Uma apresentação deste tipo, embora conste do livro, seria um atentado contra o seu conteúdo, extremamente rico e concreto, se fosse para substituir a sua indispensável e íntegra leitura. Sem esta, não se consegue sentir o que é a verdadeira emoção religiosa dos apaixonados de Fátima. Este correio exprime e testemunha a individuação afectiva da experiência espiritual e que pode passar despercebida na movimentação das grandes peregrinações.

3. Eu enjoei muito cedo das pregações que escutava em Fátima pela repetição obsessiva de algumas narrativas assustadoras dos pastorinhos.

Havia um gosto perverso em insistir numa original visão do Inferno, quando o mundo do século XX se tinha transformado em guerras infernais, atiçadas por diabos bem conhecidos com farda militar ou sem farda.

Insistia-se em que Fátima era puro Evangelho, mas o que se pregava não se parecia nada com o da alegria do Novo Testamento.

Perguntei-me muitas vezes se era possível, aos responsáveis pela orientação pastoral de Fátima, abandonar esse reino da repetição para se interrogarem sobre as potencialidades, ambiguidades e implicações de uma religião de multidões de peregrinos, em regime de precária autogestão. Não seria possível tornar esse vasto mundo num foco de autêntica evangelização plural e culturalmente criativa?

É verdade que cada peregrino sabe de si, das razões que o movem, o que vai agradecer e pedir para semear esperança nos incertos caminhos da vida. Vivemos, no entanto, num mundo sem horizontes de paz, perdido em novas guerras, ódios, violências, pobreza e abandono, à mistura com populismos insensatos e redobradas lutas entre as grandes potências pela dominação mundial.   

Henri Desroche sustentava que a utopia e a esperança são irmãs gémeas: na utopia, vive a esperança de uma outra sociedade; na esperança, vive a utopia de um outro mundo.

A religião de Fátima é alimentada por uma extraordinária voz subversiva, genuinamente feminina, no seio da Igreja, que une a utopia e a grande esperança[i]: apesar de todas as incertezas, de guerras e suas destruições, o Coração vencerá.

A luta do Papa Francisco, para criar uma nova sensibilidade que reconheça o lugar fundamental das mulheres na Igreja, encontrou agora, em Fátima, um eco poderoso na pregação do novo Presidente da Conferência Episcopal, D. José Ornelas: «Acentuar o feminino e o materno não é apenas buscar um equilíbrio de poderes ou de influências na organização funcional da Igreja. Trata-se é de mudar de paradigma, de mudar o modo de pensar: o mundo não é de quem mais manda, é de quem mais constrói a vida. A liderança eclesial não está fundada sobre a ideia de poder, mas na vida, no cuidado e no serviço».

O confinamento, no Santuário de Fátima, não confinou a audácia da palavra.

18. Outubro. 2020

 




[i] Magnificat: Lc 1, 46-56



[i] Contra capa



[i] António Marujo, A Caixa de Correio de Nossa Senhora, p. 9



[i] António Marujo, A Caixa de Correio de Nossa Senhora, Temas & Debates, Círculo de Leitores, 2020.

[ii] António Marujo e Rui Paulo da Cruz, A Senhora de Maio, Temas & Debates, 2017

segunda-feira, 12 de outubro de 2020

NADA DE NOVO. TUDO NOVO Frei Bento Domingues, O.P.

1. Pode parecer estranho, mas a questão política tornou-se inseparável da fidelidade à memória cristã mais antiga.

Creio que foi de um de poeta brasileiro que li, há muito anos, uma brevíssima narrativa sobre a insuportável visão de um crucificado. Manuel Bandeira nunca podia entrar em casa sem dar com os olhos nesse horror. Teve, várias vezes, a tentação de descrucificar aquela imagem. No momento em que ia executar esse gesto libertador, recuou: enquanto houver vidas humanas crucificadas, não posso arrancar da cruz a vítima inocente, condenada por uma coligação dos poderes de dominação das nações gentias e dos povos de Israel, executada com declarado apoio popular. É assim que se lê nos livros mais santos da humanidade[i].

     Por outro lado, segundo S. Paulo, foi também, desde o começo do movimento cristão, que se tentou eliminar essa memória vergonhosa. Era, com efeito, uma estupidez e uma loucura, tanto para a cultura grega como para a cultura judaica, no seio do império romano, apresentar como salvador um crucificado, um derrotado, um anti-herói, um condenado à pena de morte mais horrorosa. Não podia ser essa a imagem de um caminho novo para o sentido da vida verdadeira.

      Foi, no entanto, o próprio Paulo que recusou, da forma mais radical, a eliminação dessa imagem desprestigiosa e insólita, na proposta de identidade do caminho cristão: «Não quis saber outra coisa entre vós a não ser Jesus Cristo e Jesus Cristo crucificado»[ii].

    Aqui, importa afastar alguns equívocos: a cruz está inscrita no coração da fé, não como apologia perversa do sofrimento, mas como protesto contra o sofrimento dos inocentes, das vítimas dos poderes económicos, religiosos, sociais, políticos, militares e, sobretudo, do vasto mundo da indiferença, mesmo no coração das famílias. O amor do sofrimento é doença; sofrer por causa da libertação dos oprimidos e excluídos e na luta contra a solidão e pobreza impostas é o mais belo fruto da gratuidade do amor. É fonte de alegria.

As imagens do crucificado banalizaram-se de tal maneira que, hoje, servem para adornar o esquecimento das vítimas. Quando a sua função autêntica deve ser a de não apagar a memória do sofrimento da história humana. Essas imagens só são autênticas como símbolo operante de todos os muros a abater, fazendo de todos os povos, na sua irrenunciável diferença, um só povo resgatado do ódio, da inimizade[iii].

Por essa razão, a mística cristã não pode ser uma mística de olhos fechados. É uma mística de olhos muito abertos para todas as manifestações de beleza e de amor, sem nunca poder esquecer aqueles a quem foi roubada toda a esperança. É uma mística militante.

2. Para lá do ruído dos noticiários nacionais e internacionais, o acontecimento mais marcante da semana passada foi a assinatura da Encíclica Fratelli Tutti. Marcelo Rebelo de Sousa escreveu um texto exclusivo para o 7Margens, uma brevíssima síntese desse documento. Qualifica-o como um grito brutal e, ao mesmo tempo, a expressão de um poder mobilizador como nenhum dos sucessivos documentos do Papa Francisco.

Não há dúvida de que é um grito brutal. Quanto ao seu poder mobilizador, é o que ainda não sabemos. Entre o desejo e o que vai acontecer, só o tempo o poderá testemunhar. Perante o mundo em que vivemos, é mesmo de uma coragem ilimitada.

Apresenta-se como uma denúncia das misérias, das injustiças, das prepotências, dos egoísmos, dos isolacionismos, das explorações, dos individualismos desumanizadores, dos populismos fechados e redutores, das barreiras intoleráveis aos direitos das pessoas e dos povos, às migrações, da incompreensão do mundo do trabalho e dos trabalhadores.

É um apelo à esperança e à luta pela paz contra a guerra, pelo diálogo contra o monólogo, pela globalização com alma contra a globalização dos interesses e dos poderosos, pela convergência entre religiões contra o choque entre culturas e civilizações[iv].

No título desta crónica – Nada de novo. Tudo novo – segui a própria declaração do Papa Francisco: «As questões

relacionadas com a fraternidade e a amizade social sempre estiveram entre as minhas preocupações. A elas me referi repetidamente nos últimos anos e em vários lugares. Nesta encíclica, quis reunir muitas dessas intervenções, situando-as num contexto mais amplo de reflexão. Além disso, se na redacção da Laudato si’ tive uma fonte de inspiração no meu irmão Bartolomeu, o Patriarca ortodoxo que propunha com grande vigor o cuidado da criação, agora senti-me especialmente estimulado pelo Grande Imã Ahmad Al-Tayyeb, com quem me encontrei, em Abu Dhabi, para lembrar que Deus “criou todos os seres humanos iguais nos direitos, nos deveres e na dignidade, e os chamou a conviver entre si como irmãos”. Não se tratou de mero acto diplomático, mas duma reflexão feita em diálogo e dum compromisso conjunto. Esta encíclica reúne e desenvolve grandes temas expostos naquele documento que assinamos juntos. E aqui, na minha linguagem própria, acolhi também numerosas cartas e documentos com reflexões que recebi de tantas pessoas e grupos de todo o mundo»[1].

3. Para quem segue, com cuidado, o itinerário do Papa Francisco, pode dizer que não há nada de novo nesta encíclica. Seria, no entanto, uma visão superficial, apressada. Também não posso imaginar as surpresas que a sua actuação futura nos vai trazer. Não considero que seja este o último testamento deste pontificado.

A sensação, ao meditar este documento, foi a de uma narrativa em que tudo me parecia novo. Não era a primeira vez que me surpreendia a sua capacidade de construir uma teologia de correlações surpreendentes entre os textos bíblicos e as realidades actuais, que mutuamente se iluminam.

Este longo texto é o exercício continuado dessa luminosa correlação. Deve tornar-se o modelo inspirador para os padres que, por preguiça, repetem os textos bíblicos, que publicamente acabaram de ser proclamados, sem que dessa pregação brote a voz nova do espírito de Cristo para iluminar a vida concreta dos cristãos e não cristãos. Sem esse acontecimento, as homilias são uma seca.

Por essa razão, a desgraça que pode acontecer a esta encíclica é que se torne moda repetir: «como diz o Papa Francisco…» Ora, o que interessa é que este texto provoque novos textos, novas intervenções, novas análises, novos estudos, novas investigações e, sobretudo, novas práticas sociais, culturais, económicas e políticas.

Muitas vezes escrevi que era preciso um novo concílio ecuménico. Ao observar o panorama eclesial, desisti. Agora, bem desejava que esta encíclica se tornasse o instrumento de trabalho para esse desejado Acontecimento.

 

 

11. Outubro. 2020



[1] Fratelli Tutti, nº 5



[i] Act 4, 2-29

[ii] 1Cor 2, 2

[iii] Cf. Ef 2

[iv] Cf. 7Margens, 2020.10.05

domingo, 4 de outubro de 2020

AO LADO DOS POBRES Frei Bento Domingues, O.P.

1. Fui várias vezes interpelado por alguns leitores sobre a falta, nas minhas crónicas mais recentes, de alusões à Teologia da Libertação (TL) sobre a qual, no passado, neste Jornal e noutras publicações, me tinha ocupado com alguma insistência. A leitura de uma curiosa obra, com o título desta crónica, ajudou-me a perceber as deslocações da minha reflexão por fidelidade ao método de me deixar interrogar sempre por novos sinais do tempo.

 Depois de ter dirigido os Cadernos de Estudos Africanos – expressão do meu ciclo africano durante a guerra civil em Moçambique e Angola – passei a trabalhar na América Latina, a começar pelo Peru, aterrorizado, então, pela guerrilha do Sendero Luminoso. As primeiras crónicas da minha colaboração no Público, há 28 anos, testemunham esse multifacetado ciclo ameríndio[i]. Perguntam-me também se considero a TL ultrapassada e sem significação para o mundo actual. Será que os pobres, como sujeitos sociais, marca dessa teologia, perderam o protagonismo que então lhes foi atribuído?

De facto, preocupei-me mais com a libertação da Teologia do que com a Teologia da Libertação que não precisava de ser justificada. Triste era a teologia da opressão ou, mais precisamente, a conivente com os autoritarismos eclesiásticos, políticos e militares.

Quando, por obra e graça de João XXIII e do Vaticano II, por ele desencadeado, a liberdade parecia tornar-se o regime definitivo na Igreja, veio alguns anos depois um longo inverno, como lhe chamou K. Rahner. Aconteceu sobretudo durante o tempo em que o Cardeal Ratzinger foi Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. A censura exerceu-se sobre todas as formas relevantes de prática teológica, fossem elas da Europa, da América Latina, da África ou da Ásia. Foi uma época perdida por miopia, pela suspeita difundida nos meios eclesiásticos sobre as inovações mais prometedoras.

Entretanto, os grandes teólogos também envelhecem e morrem. Nem todos dispuseram de condições e clima para que o seu espírito criador provocasse discípulos audazes para novos tempos e novos mundos. Alguns consolam-se pensando que o império da presente mediocridade pode provocar a urgência da mudança.

2. Não considero o desânimo e o baixar dos braços bons conselheiros para as épocas difíceis. Os “milagres” existem, mas é preciso ajudá-los. Como já tenho alguma idade, tive a graça de ser testemunha de dois acontecimentos espantosos. O primeiro – a seguir a um regime autoritário – foi a eleição do velho cardeal Roncalli. Dele surgiu a atrevida e lúcida juventude de João XXIII. 50 anos passados, depois de muitos escândalos encobertos, foi pela eleição do cardeal argentino, Jorge Mario Bergoglio, que recebemos o prodigioso Papa Francisco e a coragem de  não desistir, sejam quais forem  os obstáculos e as armadilhas que continuamente lhe preparam.

Foram muitos os que anunciaram o seu fim para breve. Uns porque não suportam que ele continue a arruinar privilégios de sempre e para sempre; outros porque receiam que ele não vá ter saúde e tempo para as reformas que empreendeu e para as iniciativas, projectos e movimentos com que continuamente nos surpreende.

As relações conflituosas entre o Vaticano e a TL, nas suas diversas expressões, são conhecidas, estão documentadas e publicitadas. Agora, essa teologia tem em Roma o seu foco mais vivo e provocador: o próprio Papa Francisco, libertário e libertador a muitos títulos e de muitos modos. Ele ampliou as suas causas, os seus temas, aprofundou o seu método. Tem poderosos adversários, mas também muito seguidores entre crentes, agnósticos e ateus. Com ele, a periferia imensa de pobres, explorados, oprimidos, vítimas das guerras, da economia que mata, passou para o centro de um desejado mundo novo em dolorosa gestação.

3. Para não desesperar, vale a pena reflectir no seguinte contraste:

Em 1983, o Cardeal Ratzinger enviou dez observações, sobre a teologia de Gustavo Gutiérrez, ao Episcopado peruano. Não eram para o reconhecer, mas para o tornar irreconhecível.

 Em Setembro de 2013, o Papa Francisco recebeu este dominicano, considerado o “pai” da TL, na Casa de Santa Marta, e abraçou-o fraternalmente. Voltou a reunir-se com ele, em Lima, no início de 2018, durante a sua visita ao Peru. Ainda no ano passado, quando o teólogo peruano completou 90 anos, o Papa enviou-lhe uma carta muito afectuosa: «Uno-me à tua acção de graças a Deus e agradeço-te pela tua contribuição à Igreja e à humanidade, através do teu serviço teológico e do teu amor preferencial pelos pobres e descartados da sociedade». Nessa missiva, Francisco agradeceu também a Gutiérrez os seus esforços e a sua «forma de interpelar a consciência de cada um, para que ninguém fique indiferente perante o drama da pobreza e da exclusão».

O convite a Frei Gustavo Gutiérrez, para falar em Roma, pôs fim a décadas de suspeita acerca do seu pensamento teológico e salvaguarda o aspecto mais relevante da TL: a opção preferencial pelos pobres, um conceito para o qual o Vaticano II abriu caminho e que as Conferências Gerais do Episcopado Latino-Americano consolidaram.

Este frade dominicano não gosta de falar de si mesmo. No entanto, acedeu, em 2012, a ser entrevistado, durante quase 3 horas, sobre o seu itinerário que pode ser lido no Jornal La Croix (24.03.2012).

Destaco apenas um ponto – o da pobreza – que continua a ser uma grande fonte de confusões e que ele esclareceu de forma luminosa, distinguindo pela primeira vez três dimensões da pobreza: a pobreza real de todos os dias «não é uma fatalidade, mas uma injustiça»; a pobreza espiritual «consiste em colocar a própria vida nas mãos de Deus»; a pobreza como compromisso «leva a viver em solidariedade com os pobres, a lutar com eles contra a pobreza, a anunciar o Evangelho a partir da situação injusta em que se encontram».

Sobre o significado da TL, as Edições Paulinas publicaram um livro curioso[1]. Reune textos convergentes de dois mundos muito diferentes: do próprio Gustavo Gutiérrez e do Cardeal Gerhard Ludwig Müller, que foi Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, um teólogo alemão convertido à prática teológica do indígena peruano.

Este Cardeal atreve-se a dizer que «é possível que a Teologia da Libertação, na conjuntura da opinião pública, tenha perdido interesse. Em relação aos insolúveis problemas de fundo, ela presta um auxílio indispensável ao serviço transformador, reflexivo e pastoral da Igreja de Cristo à humanidade».

 

04. Outubro. 2020

 



[1] Gustavo Gutiérrez e Gerhard Ludwig Müller, Ao Lado dos Pobres. A Teologia da Libertação é uma Teologia da Igreja, 2014



[i] Cf. Frei Bento Domingues, O.P., A Humanidade de Deus, M. Figueirinhas, Porto, 1995