segunda-feira, 12 de outubro de 2020

NADA DE NOVO. TUDO NOVO Frei Bento Domingues, O.P.

1. Pode parecer estranho, mas a questão política tornou-se inseparável da fidelidade à memória cristã mais antiga.

Creio que foi de um de poeta brasileiro que li, há muito anos, uma brevíssima narrativa sobre a insuportável visão de um crucificado. Manuel Bandeira nunca podia entrar em casa sem dar com os olhos nesse horror. Teve, várias vezes, a tentação de descrucificar aquela imagem. No momento em que ia executar esse gesto libertador, recuou: enquanto houver vidas humanas crucificadas, não posso arrancar da cruz a vítima inocente, condenada por uma coligação dos poderes de dominação das nações gentias e dos povos de Israel, executada com declarado apoio popular. É assim que se lê nos livros mais santos da humanidade[i].

     Por outro lado, segundo S. Paulo, foi também, desde o começo do movimento cristão, que se tentou eliminar essa memória vergonhosa. Era, com efeito, uma estupidez e uma loucura, tanto para a cultura grega como para a cultura judaica, no seio do império romano, apresentar como salvador um crucificado, um derrotado, um anti-herói, um condenado à pena de morte mais horrorosa. Não podia ser essa a imagem de um caminho novo para o sentido da vida verdadeira.

      Foi, no entanto, o próprio Paulo que recusou, da forma mais radical, a eliminação dessa imagem desprestigiosa e insólita, na proposta de identidade do caminho cristão: «Não quis saber outra coisa entre vós a não ser Jesus Cristo e Jesus Cristo crucificado»[ii].

    Aqui, importa afastar alguns equívocos: a cruz está inscrita no coração da fé, não como apologia perversa do sofrimento, mas como protesto contra o sofrimento dos inocentes, das vítimas dos poderes económicos, religiosos, sociais, políticos, militares e, sobretudo, do vasto mundo da indiferença, mesmo no coração das famílias. O amor do sofrimento é doença; sofrer por causa da libertação dos oprimidos e excluídos e na luta contra a solidão e pobreza impostas é o mais belo fruto da gratuidade do amor. É fonte de alegria.

As imagens do crucificado banalizaram-se de tal maneira que, hoje, servem para adornar o esquecimento das vítimas. Quando a sua função autêntica deve ser a de não apagar a memória do sofrimento da história humana. Essas imagens só são autênticas como símbolo operante de todos os muros a abater, fazendo de todos os povos, na sua irrenunciável diferença, um só povo resgatado do ódio, da inimizade[iii].

Por essa razão, a mística cristã não pode ser uma mística de olhos fechados. É uma mística de olhos muito abertos para todas as manifestações de beleza e de amor, sem nunca poder esquecer aqueles a quem foi roubada toda a esperança. É uma mística militante.

2. Para lá do ruído dos noticiários nacionais e internacionais, o acontecimento mais marcante da semana passada foi a assinatura da Encíclica Fratelli Tutti. Marcelo Rebelo de Sousa escreveu um texto exclusivo para o 7Margens, uma brevíssima síntese desse documento. Qualifica-o como um grito brutal e, ao mesmo tempo, a expressão de um poder mobilizador como nenhum dos sucessivos documentos do Papa Francisco.

Não há dúvida de que é um grito brutal. Quanto ao seu poder mobilizador, é o que ainda não sabemos. Entre o desejo e o que vai acontecer, só o tempo o poderá testemunhar. Perante o mundo em que vivemos, é mesmo de uma coragem ilimitada.

Apresenta-se como uma denúncia das misérias, das injustiças, das prepotências, dos egoísmos, dos isolacionismos, das explorações, dos individualismos desumanizadores, dos populismos fechados e redutores, das barreiras intoleráveis aos direitos das pessoas e dos povos, às migrações, da incompreensão do mundo do trabalho e dos trabalhadores.

É um apelo à esperança e à luta pela paz contra a guerra, pelo diálogo contra o monólogo, pela globalização com alma contra a globalização dos interesses e dos poderosos, pela convergência entre religiões contra o choque entre culturas e civilizações[iv].

No título desta crónica – Nada de novo. Tudo novo – segui a própria declaração do Papa Francisco: «As questões

relacionadas com a fraternidade e a amizade social sempre estiveram entre as minhas preocupações. A elas me referi repetidamente nos últimos anos e em vários lugares. Nesta encíclica, quis reunir muitas dessas intervenções, situando-as num contexto mais amplo de reflexão. Além disso, se na redacção da Laudato si’ tive uma fonte de inspiração no meu irmão Bartolomeu, o Patriarca ortodoxo que propunha com grande vigor o cuidado da criação, agora senti-me especialmente estimulado pelo Grande Imã Ahmad Al-Tayyeb, com quem me encontrei, em Abu Dhabi, para lembrar que Deus “criou todos os seres humanos iguais nos direitos, nos deveres e na dignidade, e os chamou a conviver entre si como irmãos”. Não se tratou de mero acto diplomático, mas duma reflexão feita em diálogo e dum compromisso conjunto. Esta encíclica reúne e desenvolve grandes temas expostos naquele documento que assinamos juntos. E aqui, na minha linguagem própria, acolhi também numerosas cartas e documentos com reflexões que recebi de tantas pessoas e grupos de todo o mundo»[1].

3. Para quem segue, com cuidado, o itinerário do Papa Francisco, pode dizer que não há nada de novo nesta encíclica. Seria, no entanto, uma visão superficial, apressada. Também não posso imaginar as surpresas que a sua actuação futura nos vai trazer. Não considero que seja este o último testamento deste pontificado.

A sensação, ao meditar este documento, foi a de uma narrativa em que tudo me parecia novo. Não era a primeira vez que me surpreendia a sua capacidade de construir uma teologia de correlações surpreendentes entre os textos bíblicos e as realidades actuais, que mutuamente se iluminam.

Este longo texto é o exercício continuado dessa luminosa correlação. Deve tornar-se o modelo inspirador para os padres que, por preguiça, repetem os textos bíblicos, que publicamente acabaram de ser proclamados, sem que dessa pregação brote a voz nova do espírito de Cristo para iluminar a vida concreta dos cristãos e não cristãos. Sem esse acontecimento, as homilias são uma seca.

Por essa razão, a desgraça que pode acontecer a esta encíclica é que se torne moda repetir: «como diz o Papa Francisco…» Ora, o que interessa é que este texto provoque novos textos, novas intervenções, novas análises, novos estudos, novas investigações e, sobretudo, novas práticas sociais, culturais, económicas e políticas.

Muitas vezes escrevi que era preciso um novo concílio ecuménico. Ao observar o panorama eclesial, desisti. Agora, bem desejava que esta encíclica se tornasse o instrumento de trabalho para esse desejado Acontecimento.

 

 

11. Outubro. 2020



[1] Fratelli Tutti, nº 5



[i] Act 4, 2-29

[ii] 1Cor 2, 2

[iii] Cf. Ef 2

[iv] Cf. 7Margens, 2020.10.05

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