domingo, 21 de julho de 2024

DO CONFLITO À RECONCILIAÇÃO Frei Bento Domingues, O.P. 21 Julho 2024

 

DO CONFLITO À RECONCILIAÇÃO

Frei Bento Domingues, O.P.

21 Julho 2024

 

1. O famoso Padre Felicidade Alves (1925-1998), na apresentação do seu livro, Católicos e Política – de Humberto Delgado a Marcelo Caetano, de 1969, não se deu por satisfeito com a obra que acabava de apresentar. Verificava que existia um grande vazio de estudos e de informação para enfrentar o regime político e bélico em que o país estava mergulhado. Mais dia menos dia, terá de se fazer a história crítica destes últimos anos da vida política portuguesa. Não deixará de ter lugar de relevo a presença ou ausência dos católicos na vida política, assim como a posição negativa ou positiva dos hierarcas e das estruturas clericais no funcionamento do sistema.

Surgiram, entretanto, os Cadernos GEDOC[1]. Começava, assim, a recolher-se alguns textos e qualquer destes documentos marcam uma viragem.

O P. Felicidade Alves destaca que, num regime em que a opinião pública está destruída pela castração dos meios normais de informação, documentos deste género sofrem as condições precárias da clandestinidade. Passam de mão em mão, muitos perdem-se irremediavelmente.

Foi encerrado um período e um estilo de «participação» dos católicos na vida política, que consistia em aparecerem em grupo a tomar posição como católicos, sobretudo através de documentos e abaixo-assinados.

Desta vez, e espera-se que não se volte atrás, os católicos entraram na liça, ombro a ombro com os demais cidadãos, sem preocupação do rótulo de católicos. Não entraram em bloco monolítico. Dispersaram-se e fragmentaram-se por todos os meridianos políticos, desde a extrema-direita fascista até à extrema-esquerda revolucionária.

Facto significativo: salientaram-se as posições de radicalismo socialista com inspiração profética haurida nos fermentos revolucionários do Antigo e do Novo Testamento[2].

2. A começar pelo grande livro de João Miguel Almeida, A Oposição Católica ao Estado Novo (2008), contamos, hoje, com várias obras sobre o catolicismo e a oposição à ditadura e às três frentes da guerra colonial. Este ano (2024), a Tinta da China publicou um livro de Ana R. Gomes, precisamente com o título, Padre Felicidade. O oposicionista praticante, pároco de Santa Maria de Belém entre 1956 e 1968.

1968 representa uma viragem radical no itinerário desta figura central: apresentou ao seu Conselho Paroquial um documento intitulado Perspectivas actuais de transformação nas estruturas da Igreja. Sentido da responsabilidade na vida política do país (19.04.68) – páginas que encerram duras críticas à Igreja Católica portuguesa e ao Estado Novo.

Esta corajosa tomada de posição não levou o Cardeal Cerejeira a fazer um exame do que tinha sido, e era, a situação da Igreja e não reviu as ambíguas relações entre a Igreja e o Estado Novo, de que era o grande responsável. Nem a carta de D. António Ferreira Gomes, Pró-Memória (Carta a Salazar), a 13 de Julho de 1958, nem a realização do Vaticano II (1962-1965), foram capazes de convencer o Cardeal Cerejeira que tinha de mudar. Acerca do Vaticano II, o Patriarca justificou o seu imobilismo com a declaração delirante de que «nós já estamos muito à frente do Vaticano II». Não admira, portanto, que a única resposta às posições do Padre Felicidade Alves foi a suspensão a divinis para o exercício das funções sacerdotais, a 2 de Novembro de 1968.

Entre 1969 e 1970, Felicidade Alves integra e coordena o movimento GEDOC (Grupo de Estudos e Intercâmbio de Documentos, Informação e Experiências), cuja face visível era o projecto editorial designado Cadernos GEDOC. A publicação assumia como missão ser espaço de partilha de informação e de debate sobre a Igreja no pós-Vaticano II, produzida por um grupo informal de crentes que se autointitulava de vanguarda cristã[3].

O que julgo importante sublinhar foi a incapacidade do Cardeal-Patriarca Cerejeira de entender que as suas posições, tanto em relação à Igreja como ao Estado Novo, tinham, mais dia menos dia, de chegar ao fim. Não percebeu os sinais do novo tempo.

3. Apesar das várias tentativas de reconciliação, não seria ainda, durante o mandato de D. António Ribeiro, que se assistiria a um desfecho do «caso de Belém». Morre a 24 de Março de 1998, dia que é também o da nomeação de José Policarpo como Patriarca de Lisboa.  Este, passado pouco tempo, a 4 de Abril, escreve uma carta a José da Felicidade Alves, propondo um encontro para resolver o debate em curso, disponibilizando-se mesmo a deslocar-se à casa do antigo sacerdote para o efeito[4].

A 10 de Junho, D. José Policarpo apresentou oficialmente um pedido de perdão e presidiu ao casamento canónico de Felicidade Alves, poucos meses antes da sua morte, que ocorreu a 14 de Dezembro desse mesmo ano.

Na homilia, frente a uma assembleia de cerca de três centenas de pessoas, o Cardeal-Patriarca interpela directamente o nubente, dizendo-lhe: «Deu-lhe Deus a graça de perdoar as mágoas que sentia. A Igreja também lhe perdoa as que sentiu a seu respeito. E naquilo que, em algum momento deste processo, ela possa ter ferido a justiça, também lhe pede perdão». Dias depois, Felicidade Alves escreve a José Policarpo, agradecendo os especiais cuidados e empenho pessoal do Patriarca em colocar um ponto final no «caso de Belém» e classifica a homilia, então proferida, como «sensacional»[5].

Verifiquei, ao longo da vida, que fora do diálogo não há salvação[6], seja em que domínio for. Notei que o livro de Ana R. Gomes, de outro modo, confirmava esta convicção. Começa com o grave conflito e a ruptura entre Felicidade Alves e o Cardeal Cerejeira. Faltou o diálogo para superar, de forma criativa, esse doloroso conflito.

Ana Gomes termina o seu livro com a reconciliação entre o Cardeal Patriarca de Lisboa, José Policarpo – que fora seu aluno no Seminário dos Olivais – e José da Felicidade Alves. Este vê terminado um processo de revisão do seu processo na Santa Sé e de redução ao estado laical junto do Vaticano. Rectificação que permitiria a realização do seu casamento pela Igreja.

Decorridos que eram quase trinta anos sobre o decreto de suspensão das funções sacerdotais, o decano processo canónico seria revisto e modificado em poucos meses[7].

De facto, fora do diálogo não há salvação.

 

 

 

 



[1] Cadernos GEDOC (Grupos de Estudos e Intercâmbio de Documentação).

[2] Cf. PEREIRA, Nuno Teotónio, A voz de um profeta: José da Felicidade Alves, in Viragem: revista do Movimento Metanoia, nº 30, jan.-mar. 1999, pp. 3-5.

[3] Cf. Ana R. Gomes, Padre Felicidade, o oposicionista praticante, Tinta da China, 2024, pp.7-8

[4] Ibidem, pp. 195-196

[5] Ibidem, p. 196

[6] Frei Bento Domingues, O.P., Fora do Diálogo não há Salvação, Temas e Debates, 2024

[7] Cf. Ana R. Gomes, Padre Felicidade, o oposicionista praticante, Tinta da China, 2024, p.194

sábado, 20 de julho de 2024

Jesus, os discípulos e a multidão - Pe. Manuel João, MC

 Jesus, os discípulos e a multidão

Ano B – Tempo Comum - 16o domingo
Marcos 6,30-34: “Eles nem tinham tempo de comer”

A temática principal das leituras deste domingo poder-se-ia resumir em dois conceitos ou figuras: o pastor e o descanso.

- Primeira leitura: “Eu mesmo reunirei o resto das minhas ovelhas de todas as terras onde se dispersaram e as farei voltar às suas pastagens, para que cresçam e se multipliquem.” (Jeremias 23,1-6);
- Salmo: “O Senhor é meu pastor: nada me falta. Leva-me a descansar em verdes prados” (Salmo 22);
- Segunda leitura: “Cristo é, de facto, a nossa paz. Foi Ele que fez de judeus e gregos um só povo” (Efésios 2,13-18);
- Evangelho: “Ao desembarcar, Jesus viu uma grande multidão e compadeceu-se de toda aquela gente, porque eram como ovelhas sem pastor”.

Desde o início, pedimos a graça de reconhecer em Cristo o nosso Pastor, o único que nos faz antever a alegria do “Descanso”, meta da existência do cristão e da humanidade. Com efeito, peregrinamos todos no deserto da vida em direção ao descanso da “Terra Prometida”.

Uma fuga fracassada!

O trecho do evangelho narra o regresso dos Doze que Jesus havia enviado em missão no domingo passado. Ouvimos o relato, mas tentemos revivê-lo imaginando a cena. O evangelista nos diz que “os Apóstolos [é a única vez que Marcos os chama de apóstolos] voltaram para junto de Jesus e contaram-lhe tudo o que tinham feito e ensinado”. Assim, na data que Jesus lhes havia marcado, eles se apresentaram, talvez aos poucos, para prestar contas do que tinham “feito” e “ensinado”. O apóstolo sempre retorna ao mandante, à fonte da missão. Jesus ouve-os satisfeito e, notando o cansaço, convida-os a fazer uma pausa: “Vinde comigo para um lugar isolado e descansai um pouco”. Havia, na verdade, muita agitação, com “sempre tanta gente a chegar e a partir”. O Mestre era a atração. Talvez outras pessoas das aldeias que os apóstolos tinham evangelizado quisessem acompanhá-los para conhecer Jesus. O facto era que “eles nem tinham tempo de comer”!

O grupo precisava não apenas de descanso físico, mas também de tranquilidade, reflexão, confronto com Jesus e com os companheiros para avaliar aquela primeira experiência de missão. Ali, corriam o risco de serem dominados pela frenesia do activismo ou de caírem até na armadilha do protagonismo. “Partiram, então, de barco para um lugar isolado, sem mais ninguém”. Diversas outras vezes o Mestre retirou-se da multidão para ficar sozinho com os seus discípulos”. Desta vez, porém, muitos perceberam para onde iam e, a pé, “chegaram lá primeiro que eles. Uma fuga fracassada! Como reagiu Jesus? “Ao desembarcar, Jesus viu uma grande multidão e compadeceu-se de toda aquela gente, porque eram como ovelhas sem pastor. E começou a ensinar-lhes muitas coisas”.

Tentemos agora colocar-nos no lugar dos três protagonistas desta passagem do evangelho: Jesus, os apóstolos e a multidão.

1. JESUS “compadeceu-se de toda aquela gente”. Ele comove-se diante da multidão e muda os seus planos. A sua atitude é para nós um duplo desafio. Primeiro de tudo, o seu olhar de compaixão. Tudo nasce do olhar. A nossa visão da realidade depende do nosso tipo de olhar. Cultivar um olhar compassivo é hoje uma prioridade absoluta. Através dos meios de comunicação, vemos todos os dias as multidões que sofrem e corremos o risco de nos acostumar com o sofrimento alheio e de cair na indiferença. O olhar de compaixão deve ser cultivado: como? Prestando atenção aos raciocínios, julgamentos e preconceitos que surgem em nós, anestesiando os nossos sentimentos. E, depois, traduzir a compaixão em gestos de solidariedade, mesmo que nos pareçam uma gota no oceano do sofrimento humano. Diz São Paulo: “Tende em vós os mesmos sentimentos de Cristo Jesus.” (Filipenses 2,5).

Também nos desafia a prontidão com a qual Jesus reage a essa situação. Ao ver aquela multidão, os apóstolos devem ter experimentado irritação, como acontece connosco tantas vezes, quando alguém nos obriga a mudar os nossos planos. Talvez voltemos do trabalho, cansados, desejosos de descansar e, em vez disso, os filhos esperam-nos para brincar, ou o cônjuge espera de nós atenção ou ajuda. Talvez, outras vezes, tenhamos um trabalho a terminar, com o tempo contado, e alguém vem interromper-nos ... Deixar-se interromper para acolher uma pessoa, estar disponível para mudar os nossos planos, dar prioridade ao outro e saber “perder tempo”, tudo isso faz parte da ascese do serviço!

2. OS APÓSTOLOS “nem tinham tempo de comer”. Muitas vezes, a situação deles é também a nossa. Muito ocupados com os nossos afazeres, arrastados pela frenesia dos nossos dias, corremos o risco de nos tornar espiritualmente desnutridos e, sem percebermos, de sermos sugados pela voragem de uma visão materialista da vida. É essencial cultivar momentos de pausa, de silêncio e de tranquilidade para ler as Escrituras ou um bom livro, para refletir e orar. Além disso, todos devemos ter “um lugar deserto, à parte” onde nos refugiar em certos momentos: uma igreja, um santuário, um parque... E, finalmente, seria oportuno verificar como passamos o domingo, se é realmente um dia de descanso, físico, mental e espiritual.

3. A MULTIDÃO: “eram como ovelhas sem pastor”. Era a multidão de que falava o profeta Jeremias na primeira leitura (veja também Ezequiel 34), uma multidão sem rumo, uma multidão negligenciada pelos pastores. E quando os pastores não cumprem o seu dever, surgem os ladrões, os bandidos e os lobos que seduzem e exploram o povo, oferecendo ilusões e vendendo vento, e conduzindo as multidões para caminhos de morte.

Nós podemos ser também essa multidão. Em momentos de mal-estar e vazio interior, de cansaço e busca de sentido, de desorientação e confusão, se não estivermos atentos, todos podemos ser encantados pelos flautistas que proliferam em nossa sociedade. Que o Senhor nos momentos de crise faça ressoar em nossos corações o seu convite: “Vinde a mim, todos os que estais cansados e oprimidos, e eu vos darei descanso.” (Mateus 11,28).

Proposta de exercício semanal: elaborar um plano de descanso (físico, psíquico e espiritual) para este período de “férias”.

P. Manuel João Pereira Correia mccj
Verona, 18 de julho de 2024

P. Manuel João Pereira Correia mccj
p.mjoao@gmail.com
https://comboni2000.org

 

domingo, 14 de julho de 2024

VENCER O CEPTICISMO DEMOCRÁTICO Frei Bento Domingues, O.P. 14 Julho 2024

 

VENCER O CEPTICISMO DEMOCRÁTICO

Frei Bento Domingues, O.P.

14 Julho 2024

 

1. Realizou-se a 50ª Semana Social dos Católicos de Itália, em Trieste, com o tema No coração da democracia. Participar entre história e futuro. O Papa esteve presente no encerramento dessa Semana, dia 7, de forma muito activa, a começar por uma antologia dos seus discursos e mensagens com o mesmo tema. Além da apresentação do livro, temos de ter em conta o discurso que proferiu e a importante homilia da Missa.

A presença de Francisco, no nosso mundo, não é de conformismo, de cedência ao que está a acontecer, mas de mudança. Ao procurar redescobrir o que é a democracia, aponta os perigos que, hoje, está a correr e o contributo original que o Cristianismo pode e deve oferecer ao mundo contemporâneo. Ao dar sentido à nossa história, alimenta a esperança sem a qual não há futuro.

O Papa lembrou que democracia é um termo que se originou na Grécia antiga para indicar o poder exercido pelo povo por meio dos seus representantes. Uma forma de governo que, embora se tenha difundido globalmente, nas últimas décadas, parece estar a sofrer as consequências de uma doença perigosa, o cepticismo democrático.

A dificuldade das democracias em assumir a complexidade do tempo presente cede, muitas vezes, ao fascínio do populismo. A democracia tem em si um grande e indubitável valor: o de trabalhar e viver juntos em liberdade. O facto de o exercício do governo se realizar no contexto de uma comunidade que se confronta, livre e secularmente na arte da procura do bem comum, é um nome diferente para o que chamamos política.

No discurso, aos 1 200 participantes da Semana, afirmou: A própria palavra democracia não coincide simplesmente com o voto do povo, mas exige que se criem as condições para que todos se possam expressar e participar. E a participação não se pode improvisar: aprende-se desde criança, adolescente e deve ser treinada, também no sentido crítico, perante as tentações ideológicas e populistas. Nesta perspectiva, o Cristianismo pode contribuir, promovendo um diálogo fecundo com a comunidade civil e com as instituições políticas. Só assim será possível libertar-se das escórias da ideologia, reflectindo de modo comunitário, especialmente sobre os temas relacionados com a vida humana e com a dignidade da pessoa.

O caminho democrático exige debater juntos e saber que, só juntos, esses problemas podem encontrar solução.

2. Em última análise, é na palavra participar que encontramos o sentido autêntico da democracia e entramos no coração de um sistema democrático. Num regime de ditadura ou dirigista ninguém pode participar, todos assistem ou sofrem passivamente.

Uma verdadeira democracia não exclui ninguém nem nenhum país. Nós sabemos o que foram e são os regimes de ditadura. Sem democracia não há paz.

É esta forma de governo que ajuda as pessoas a serem cada vez mais livres, fraternas e criativas. Os totalitarismos são formas de dominação. Na vida social, o importante é perguntar em que posso eu ajudar, vencendo a tentação de dominar.

O Papa deu como exemplos de actuação democrática Giuseppe Toniolo (1845-1918), inspirador e fundador das próprias Semanas Sociais, e o famoso político católico italiano, Giorgio La Pira (1904-1977) – um grande amigo – que defendia para o laicado a capacidade de organizar a esperança porque, sem ela, pode administrar-se o presente, mas não se constrói o futuro.

Já evoquei, nesta coluna, os leigos e padres portugueses que muito sofreram e lutaram pelo derrube da ditadura que nos oprimiu até ao 25 de Abril[1]. E agora, entre nós, também existem organizações políticas cansadas da democracia.

Os que lutaram e lutam contra as ditaduras têm de vencer a indiferença – cancro da democracia – e a passividade de muitos perante os rumos dos movimentos sociais.

Em Trieste, o Papa lembrou que são muitas as questões sobre as quais, democraticamente, somos chamados a interagir. Pensemos num acolhimento inteligente e criativo, que coopera e integra as pessoas migrantes; pensemos no inverno demográfico que afeta, agora, de forma generalizada, toda a Itália e não só; pensemos na escolha de políticas autênticas para a paz, que coloquem em primeiro lugar a arte da negociação e não o recurso ao rearmamento. Em resumo, aquele cuidado pelos outros, que Jesus nos indica continuamente no Evangelho, como a atitude autêntica de ser pessoa, de sermos humanos.

3. Poderíamos dizer que, tanto no livro que apresentou, no discurso que fez e na Eucaristia que celebrou, foi o tema da esperança que esteve sempre presente. Foi mesmo para a despertar que Deus suscitou e suscita profetas entre o povo.

Na celebração da Eucaristia, questionou muitas das nossas representações da fé cristã e lembrou que são os profetas que não deixam adormecer a esperança. São a voz de Deus, muitas vezes rejeitados. O próprio Jesus teve a mesma dolorosa experiência dos profetas, tornando-se escândalo para os seus conterrâneos.

A palavra escândalo não se refere a algo obsceno ou indecente como a usamos hoje. Na homilia do Papa, escândalo significa a própria humanidade de Deus manifestada em Jesus de Nazaré.

Os seus conterrâneos não conseguiam entender como do filho de José, o carpinteiro – uma pessoa comum –, poderia surgir tanta sabedoria e até mesmo a capacidade de realizar prodígios. Sob o ponto de vista teológico, o escândalo é a própria humanidade de Jesus, Deus humanado. O obstáculo que impede de reconhecer a presença de Deus em Jesus é o facto de Ele ser humano. Este escândalo é uma fé fundada num Deus que faz parte da humanidade, que cuida dela, que se comove com as nossas feridas, que toma sobre si o nosso cansaço, que se parte como pão para nós.

Hoje, precisamos exatamente desse escândalo da fé. Não de uma religiosidade fechada em si mesma, que ergue o olhar para o céu, sem se preocupar com o que acontece na terra, e celebra liturgias no templo, esquecendo-se da poeira que corre pelas nossas estradas.

Precisamos do escândalo da fé, de uma fé enraizada no Deus que se fez humano e, portanto, de uma fé humana, de uma fé de carne, que entra na história, que acaricia a vida das pessoas, que cura os corações partidos, que se torna fermento de esperança e germe de um mundo novo.

Deus esconde-se nos cantos escuros da vida e das nossas cidades. A Sua presença revela-se, precisamente, nos rostos escavados pelo sofrimento e onde a degradação parece triunfar.

O infinito de Deus está escondido na miséria humana, o Senhor agita-se e torna-se presença amiga, precisamente, na carne ferida dos últimos, dos esquecidos e dos descartados. Ali, Deus se manifesta[2].

Precisamos de uma teologia, de uma espiritualidade, de uma forma de viver que liguem o céu e a terra.

 

 



[1] Novos e velhos rostos da Igreja, in Público 29.04.2024; Memória e presos políticos no 25 de Abril, ibidem 05.05.2024

[2] Cf. www.vatican.va 07.07.2024

sábado, 13 de julho de 2024

A missão com as sandálias nos pés e o bastão na mão - Pe. Manuel João, MC

 A missão com as sandálias nos pés e o bastão na mão

Ano B - Tempo Comum – 15o Domingo
Marcos 6,7-13: “Jesus chamou os doze Apóstolos e começou a enviá-los dois a dois.”

O tema central das leituras deste XV domingo é a vocação e a missão:
- a vocação/missão do profeta:
 “Foi o Senhor que me tirou da guarda do rebanho e me disse: ‘Vai profetizar ao meu povo de Israel’” (primeira leitura, Amós 7,12-15);
- a vocação/missão do cristão: “Nele nos escolheu, antes da criação do mundo, para sermos santos e irrepreensíveis, em caridade, na sua presença.” (segunda leitura, Efésios 1,3-14);
- a vocação/missão do apóstolo: “Jesus chamou os doze Apóstolos e começou a enviá-los dois a dois.” (evangelho).

Algumas reflexões sobre a Vocação

Antes de passar ao trecho do evangelho, reflitamos um momento sobre este binómio vocação/missão, ou seja, chamada e envio, eleição e incumbência, seguimento e apostolado... as duas dimensões inseparáveis do ser e do fazer!

Primeiramente, removamos da mente a velha ideia de que a vocação diz respeito apenas a padres e freiras, religiosos e missionários ou, no máximo, a alguns leigos chamados a desempenhar uma tarefa particular na comunidade cristã. Na realidade, a vida cristã é vocação, seja ela vivida numa consagração especial ou na vida leiga e matrimonial. Aliás, poderíamos dizer, num sentido amplo, que a “vocação” caracteriza toda vida humana, como busca de sentido.

Em segundo lugar, seria enganoso pensar que a questão da vocação diz respeito apenas aos jovens em busca de um projeto de vida ou do plano de Deus para eles. Ela abrange todo o arco de nossa existência. A “busca vocacional” não cessa, uma vez que descobrimos o que Deus quer de nós, mas continua por toda a vida. “Cada manhã ele abre o meu ouvido para que eu escute como um discípulo” (Isaías 50,4). Viver a nossa vida em tensão vocacional dá a cada momento um sabor de novidade. Caso contrário, facilmente caímos no cansaço do cotidiano cinzento. Para sermos fiéis à vocação, não basta seguir adiante por inércia. É preciso reavivar continuamente o ardor vocacional, como Paulo recomendava a Timóteo: “Lembro-te de reavivar o dom de Deus que há em ti mediante a imposição das minhas mãos.” (2Timóteo 1,6). O nosso “Sim” deve ser renovado diariamente, caso contrário, desgasta-se e desbota.

Finalmente, ouso dizer que o nosso “Sim” não diz respeito apenas ao presente e ao futuro, mas até mesmo ao passado porque, por mais estranho que isso nos possa parecer, a fidelidade passada nunca está segura até ao “Sim” final. Hoje eu posso arrepender-me de uma escolha que, na época, fiz com alegria e generosidade. Aliás, o grande “Sim” renovado ao passado pode ser ainda mais desafiador do que o “Sim” de hoje, dado, quem sabe, por força ou inércia. Isso explica como tantas vocações, consagradas ou matrimoniais, terminam na amargura ou no fracasso. E aqui reside a suprema bem-aventurança – a da salvação – que Jesus proclama justamente neste contexto do envio dos Doze em missão: “Quem perseverar até o fim será salvo” (Mateus 10,22).

Após estas considerações, talvez não totalmente pertinentes, passemos a destacar alguns aspectos do evangelho de hoje.

As três etapas da vocação

O trecho do evangelho começa por dizer que “Jesus chamou os doze Apóstolos”. Há três chamadas especiais na nossa vida. Há, antes de tudo, a chamada pessoal: “Passando, Jesus viu Simão e André... Tiago e João... e chamou-os” e eles tornaram-se discípulos (Marcos 1,16-20). Essa chamada também se deu com cada um de nós!
Num segundo momento, dá-se a vocação comunitária: “Subiu depois ao monte, chamou os que quis, e eles foram até ele. Designou doze – a quem chamou apóstolos –, para que estivessem com ele e para enviá-los a pregar.” (Marcos 3,13-14). Assim, os discípulos tornaram-se uma comunidade. Todos somos “convocados”, ‘chamados juntos’. Não há vocações 'privadas'!
Finalmente, há a chamada apostólica, o envio em missão. É o momento apresentado no evangelho de hoje: “Jesus chamou os doze Apóstolos e começou a enviá-los dois a dois” e eles tornaram-se apóstolos. Toda a vocação desemboca na missão. Uma missão comunitária (dois a dois), eclesial, não de franco-atiradores!

Aqui se trata do primeiro envio dos Doze, um estágio em vista do envio final, após a ressurreição, que os caracterizará definitivamente como “apóstolos”, enviados, missionários: “Ide por todo o mundo e pregai o Evangelho a toda criatura.” (Marcos 16,15). Vejamos, então, mais de perto esta terceira etapa.

A nossa missão prolonga a de Jesus

Os apóstolos prolongam a missão de Jesus (Marcos 3,14-15): anunciar o Reino de Deus, expulsar demónios e curar enfermos. Por isso, o Senhor transmite-lhes o seu poder: “Deu-lhes poder sobre os espíritos impuros”. O Evangelho de Marcos é conhecido por destacar a atividade de Jesus em expulsar os espíritos impuros. Por que o faz? Não apenas para demonstrar o poder divino de Jesus, mas para evidenciar que o Reino de Deus está avançando e derrotando o reino de Satanás.

Os apóstolos estão conscientes de ter recebido esse “poder sobre os espíritos impuros” e exercem-no com sucesso. Infelizmente, connosco muitas vezes não é assim. Não temos fé nesse dom que nos é conferido com o sacramento da crisma. Por medo ou covardia, muitas vezes não combatemos o mal e assim permitimos que se expanda nos nossos ambientes de vida.

A missão do bastão e das sandálias

Uma vez conferido esse poder, o Senhor “ordenou-lhes que não levassem para a viagem nada além de um bastão: nem pão, nem sacola, nem dinheiro na cintura; mas calçassem sandálias e não levassem duas túnicas”. Esta ordem de Jesus põe em crise qualquer missionário. É a única vez no evangelho de Marcos que Jesus ordena algo aos discípulos. Ele o faz porque isso não é algo natural. Somos tentados a fazer missão com meios poderosos e eficazes. No fundo, não confiamos no poder da Palavra de Deus e de sua providência. Por instinto, buscamos outras seguranças humanas.

Enquanto não fores pobre, tudo o que deres é apenas exercício de poder”, diz Silvano Fausti. A vida e a missão, porém, encarregam-se de despir o apóstolo. O insucesso, as desilusões, a oposição, a fragilidade... levam-nos à conclusão de que a missão se faz na fraqueza para que possa manifestar-se em nós o poder de Deus (2Coríntios 12,7-10).

Se olharmos os textos paralelos de Mateus (cap. 10) e Lucas (cap. 9 e 10), notaremos que Jesus diz para não levar nem mesmo o bastão e as sandálias. Nesse caso, o bastão é considerado a arma do pobre e a missão deve ser feita desarmada. Para Marcos, no entanto, o bastão é o instrumento do peregrino que o ajuda a caminhar. Além disso, é o sinal do poder que Deus dá ao seu enviado, como o bastão de Moisés. As sandálias para Mateus e Lucas são um luxo. Para Marcos, em outro contexto cultural, são sinal de liberdade. Os escravos andavam descalços. A evangelização, porém, traz uma mensagem de liberdade.

Para concluir, perguntemo-nos:

1) Sou um cristão peregrino ou um cristão sedentário, com demasiada “bagagem” para me poder deslocar?
2) Nas minhas fraquezas reconheço a ação de Deus que me despoja das falsas seguranças?
3) Qual é o “bastão” em que me apoio para caminhar?
4) Sou um cristão pascal, “com os lombos cingidos, as sandálias nos pés e o bastão na mão” (Êxodo 12,11), sempre pronto para partir?

P. Manuel João Pereira Correia mccj
Verona, 11 de julho de 2024

P. Manuel João Pereira Correia mccj
p.mjoao@gmail.com

 

domingo, 7 de julho de 2024

CABEÇAS DURAS E CORAÇÕES OBSTINADOS Frei Bento Domingues, O.P. 7 de Julho 2024

 

CABEÇAS DURAS E CORAÇÕES OBSTINADOS

Frei Bento Domingues, O.P.

7 de Julho 2024

 

1. Conhecemos as narrativas bíblicas, míticas, da Criação e a da expulsão do Paraíso (Génesis 1-3). Eduardo Lourenço acrescentava: somos nós que continuamos a expulsar-nos do Paraíso. Trocamos a criação pelas muitas formas de destruição. Este mundo podia ser muito diferente. Somos nós e as gerações que nos precederam que o estragámos. Somos nós e as gerações futuras que temos de o refazer.

Existe um poema, no capítulo 11 do livro bíblico, atribuído ao profeta Isaías, que procura recriar um mundo que parece insólito. É a História do Futuro, como diria o P. António Vieira.

Vou evocar esse poema, contra todas as formas de violência, quando nós, pelo contrário, andamos sempre a inventar novas formas de destruição. O que é gasto para desfigurar o mundo dava para sonhar e realizar um mundo outro. Eis o poema.

 «Brotará um rebento do tronco de Jessé e um renovo brotará das suas raízes. Sobre ele repousará o espírito do Senhor: espírito de sabedoria e de entendimento, espírito de conselho e de fortaleza, espírito de ciência e de temor do Senhor. Não julgará pelas aparências nem proferirá sentenças somente pelo que ouvir dizer; mas julgará os pobres com justiça e com equidade os humildes da terra. A justiça será o cinto dos seus rins e a lealdade circundará os seus flancos. Então, o lobo habitará com o cordeiro e o leopardo deitar-se-á ao lado do cabrito; o novilho e o leão comerão juntos e um menino os conduzirá. A vaca pastará com o urso e as suas crias repousarão juntas; o leão comerá palha como o boi. A criancinha brincará na toca da víbora e o menino desmamado meterá a mão na toca da serpente. Não haverá dano nem destruição em todo o meu santo monte, porque a terra está cheia de conhecimento do Senhor, tal como as águas que cobrem a vastidão do mar»[1].

Os movimentos ecologistas são formas de esperança, histórias de futuro. Não se resignam à destruição da Criação, obra de Deus e do ser humano. A situação em que nos encontramos não era inevitável. Agora, só nos resta não continuar os erros do passado e tudo fazer para tornar este mundo sustentável, um paraíso.

2. Há mais de 70 anos, quando o mundo oscilava sobre o fio duma crise nuclear, o Papa João XXIII escreveu uma encíclica na qual não se limitava a rejeitar a guerra, mas quis transmitir uma proposta de paz. Dirigiu a sua mensagem Pacem in terris (1963) a todo o mundo católico, mas acrescentava: e a todas as pessoas de boa vontade. Agora, o Papa Francisco, à vista da deterioração global do ambiente, quer dirigir-se a cada pessoa que habita neste planeta. Na minha exortação Evangelii gaudium, escrevi aos membros da Igreja, a fim de os mobilizar para um processo de reforma missionária ainda pendente. Nesta encíclica [Laudato Si’], pretendo especialmente entrar em diálogo com todos acerca da nossa casa comum[2].

O que observamos, hoje, é uma sementeira de violência. Entrando na guerra, é preciso fazer tudo para renovar o armamento continuamente, para poder destruir o outro, em vez de gastar esses recursos para capacitar os povos todos a viver em paz e não no medo uns dos outros. Em vez de construirmos instrumentos de destruição e de morte, poderíamos fazer instrumentos de desenvolvimento.

É também atribuído ao profeta Isaías outro sonho que está na nossa imaginação e nas nossas mãos realizar.

«No fim dos tempos o monte do templo do Senhor estará firme, será o mais alto de todos, e dominará sobre as colinas. Acorrerão a ele todas as gentes, virão muitos povos e dirão: Vinde, subamos à montanha do Senhor, à casa do Deus de Jacob. Ele nos ensinará os seus caminhos e nós andaremos pelas suas veredas; porque de Sião sairá a lei, e de Jerusalém, a palavra do Senhor. Ele julgará as nações e dará as suas leis a muitos povos, os quais transformarão as suas espadas em relhas de arados e as suas lanças em foices. Uma nação não levantará a espada contra outra e não se adestrarão mais para a guerra. Vinde, Casa de Jacob! Caminhemos à luz do senhor»[3].

Não parece que sejam estes textos, e outros semelhantes, a leitura e a prática do cabeça dura e coração obstinado, Benjamin Netanyahu, primeiro-ministro israelita, de que fala o texto do profeta Ezequiel:

«Naqueles dias, o Espírito entrou em mim e fez-me levantar. Ouvi então alguém que me dizia: Filho do homem, Eu te envio aos filhos de Israel, a um povo rebelde que se revoltou contra Mim. Eles e seus pais ofenderam-Me até ao dia de hoje. É a esses filhos de cabeça dura e coração obstinado que te envio, para lhes dizeres: Eis o que diz o Senhor. Podem escutar-te ou não – porque são uma casa de rebeldes –,
mas saberão que há um profeta no meio deles»[4].

3. O Papa Francisco convocou os novos Arcebispos Metropolitanos para receber a bênção dos Pálios, na Celebração da Missa, no dia de S. Pedro e S. Paulo (29 Junho). Este dia foi escolhido para significar e nos dizer a importância dos serviços (dos ministérios) na Igreja, a não confundir com as metas de uma carreira. Não são para restringir, mas para abrir o futuro e construir a esperança em todas as situações. Em comunhão com Pedro e seguindo o exemplo de Cristo, porta das ovelhas (cf. Jo 10, 7), os Arcebispos Metropolitanos são chamados a ser pastores zelosos, que abrem as portas do Evangelho e que, com o seu ministério, ajudam a construir uma Igreja e uma sociedade de portas abertas. O próprio Natal deste ano será marcado pela abertura a todos os povos, todos, todos, todos. É esta abertura que dá início ao novo Ano Jubilar, um ano de graça para todos.

Enquanto uns abrem as portas, outros fecham-nas. O Jornal 7Margens (01.07.2024) refere que as Igrejas da Terra Santa denunciam ataque coordenado das autoridades israelitas contra os cristãos. Os patriarcas e líderes das Igrejas Cristãs em Jerusalém escreveram uma carta ao primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, lamentando o que consideram ser um ataque coordenado à presença cristã na Terra Santa.

Em vez de convocar israelitas, muçulmanos e cristãos para construírem um futuro de paz, de todos, por todos e com todos, procuram tornar a vida impossível entre estes povos.

Fala-se de Terra Santa, mas para poder usar este nome deveria ser uma Terra de diálogo entre muçulmanos, judeus e cristãos.

 



[1] Is 11, 1-9

[2] Cf. Laudato Sí, nº 3

[3] Cf. Is 2, 3-5

[4] Ez 2, 2-5

sábado, 6 de julho de 2024

O primeiro insucesso apostólico de Jesus - Pe Manuel João , MC

 O primeiro insucesso apostólico de Jesus

Ano B – Tempo Comum – 14º Domingo
Marcos 6,1-6: “Jesus dirigiu-se à sua terra”

Hoje encontramos Jesus em Nazaré. Meses atrás, os seus familiares, preocupados com o que se dizia sobre ele, tinham descido a Cafarnaum, onde Jesus havia estabelecido a sua nova morada, com a intenção (sem sucesso) de o levar de volta para casa. Agora é o próprio Jesus que toma a iniciativa de ir à sua aldeia natal. São cerca de cinquenta quilômetros e uma subida de setecentos metros, por isso não era uma caminhada fácil. 

Porque é que ele faz isto? Podemos pensar em motivações muito humanas, como o rever os seus, estar com os amigos, passar alguns dias de descanso nos ambientes onde cresceu... Mas também haverá outros motivos mais profundos, como apresentar a sua nova família, os Doze, e anunciar a boa nova do Reino também na sua aldeia. Podemos imaginar que a acolhida foi amigável e até entusiástica. Jesus era um deles, certamente querido por todos. A situação, no entanto, mudou radicalmente no sábado, quando todos se reuniram na humilde sinagoga de Nazaré.

Vamos também nós a Nazaré, não como espectadores passivos, mas procurando confrontar-nos com os protagonistas presentes no relato. Pensemos particularmente nos três grupos de pessoas ali presentes: os habitantes de Nazaré, os doze discípulos que acompanhavam Jesus e o grupo de familiares mais próximos, com Maria, a mãe de Jesus, à frente.

Da admiração ao escândalo

Jesus frequentou aquela sinagoga por trinta anos, mas desta vez havia um ar de expectativa particular. A sua fama já se havia espalhado por toda a Galileia e na sua aldeia todos se interrogavam sobre o que estava a acontecer, porque eles conheciam bem Jesus e não conseguiam entender o que se dizia sobre ele. Sabiam que ele não tinha estudado, não era um rabino: como é que ele se apresentava com um séquito de doze discípulos?! Tinha as mãos calejadas de carpinteiro: como é que agora impunha essas mãos sobre os doentes e os curava?! Ele era um deles, de condição humilde, de uma aldeia perdida que não prometia nada de bom: como é que ele se tornara famoso e seu nome era comentado por todos?! Eles conheciam-no bem, mas não o reconheciam de forma alguma como o “profeta de Nazaré”!

Ele começou a ensinar na sinagoga.” Como era seu costume, precisa o evangelista Lucas, que situa este episódio no início da pregação de Jesus, como seu discurso programático (Lucas 4,16-30). Lucas diz no seu relato que “os olhos de todos estavam fixos nele” (v. 20) e que todos “se maravilhavam das palavras de graça que saíam de sua boca” (v. 22). O início, portanto, parecia prenunciar uma boa acolhida, como acontecera em outros lugares. No entanto, Marcos e Mateus (13,54-58) se expressam de uma forma mais cautelosa, dizendo que as pessoas “ficaram admiradas”. De facto, seus conterrâneos ficaram mais perplexos do que maravilhados. No murmúrio da assembleia emergem (três) comentários de dúvida e desconfiança sobre a origem das suas palavras, sua sabedoria e seus prodígios. Seguem-se (quatro) perguntas retóricas e desdenhosas sobre a sua identidade, profissão, sobre a mãe, os irmãos e as irmãs. “Quem pensa ele que é?”, perguntavam-se entre si. “E ficavam perplexos a seu respeito,” melhor dito, escandalizados. Da admiração passam ao escândalo.

Estamos diante de um emaranhado de sentimentos não fácil de desvendar, uma mistura de maravilha e admiração, de ciúme e inveja, de dúvida e suspeita, de contrariedade e oposição, que se tornam indignação e rejeição. Como explicar esta mudança drástica? Se tivermos coragem de escavar em nosso coração, podemos entender. Os conterrâneos de Jesus são um espelho que reflete muitos dos nossos comportamentos. Quantas vezes também nós fechamos a mente e o coração a uma verdade que nos incomoda, elaborando uma série de raciocínios? Quantas vezes também nós recorremos a preconceitos para neutralizar uma mensagem de novidade que nos incomoda? Quantos de nós acolhemos de bom grado uma “voz profética” que nos questiona e nos coloca em crise? Acolhemos melhor os profetas depois de mortos!

O desconcerto e a consternação do discípulo

O que terá experimentado o grupo dos Doze? O texto não o diz, mas podemos imaginar. Eles também tinham expectativas sobre Jesus. Orgulhavam-se do Mestre e esperavam assistir a mais um de seus sucessos. Portanto, ficaram desconcertados ao ver a reviravolta dos eventos. Tiago de Alfeu e Judas Tadeu, dois primos de Jesus e que conheciam bem o bairrismo de seus conterrâneos, terão lamentado internamente que Jesus tenha citado aquele provérbio popular “ninguém é profeta na sua pátria”. Os outros dez terão ficado desconcertados com esse primeiro insucesso de Jesus, justamente em sua casa. Um fracasso que certamente não esperavam. Eles igualmente terão pensado que Jesus deveria ter sido mais cauteloso, menos franco e mais condescendente. Assim, os discípulos descobrem que a missão de Jesus - e a missão deles - não seria um mar de rosas. E quem sabe se terão pensado na profecia de Ezequiel da primeira leitura de hoje (2,2-5): “É a esses filhos de cabeça dura e coração obstinado que te envio”.

Também nós certamente compartilhamos a opinião dos apóstolos. Diante da oposição e rejeição do nosso mundo, nos perguntamos se a Igreja não deveria ser mais condescendente em certas coisas; se não deveria baixar o padrão de suas propostas; se não deveria actualizar-se, adaptando-se à sensibilidade dos tempos... Na nossa tarefa apostólica, não somos tentados nós também a adequar-nos ao “politicamente correto”?

Uma espinha no coração

O que terá acontecido no coração de Maria, a mãe de Jesus? Certamente um véu de dor e tristeza o envolveu. Talvez lembrou-se da profecia de Simeão: “Uma espada transpassará a tua alma.” (Lucas 2,35). A lembrança daquele sábado cravou-se em seu coração como um espinho.

Esse espinho ainda fere o coração da Igreja, que sofre pelos seus filhos perseguidos, pelos escândalos que mancham seu testemunho, pelo afastamento de tantos de seus filhos e filhas, pela crescente rejeição da mensagem evangélica...

Esse espinho também o sentimos no nosso coração. A nossa fraqueza é para nós motivo de tristeza, sofrimento, empecilho e escândalo. Como Paulo, também nós pedimos ao Senhor que nos libertasse desse espinho, e ele respondeu-nos: “Basta-vos a minha graça; a força se manifesta plenamente na fraqueza.” (2 Coríntios 12,7-10).

P. Manuel João Pereira Correia mccj
Verona, 5 de julho de 2024

P. Manuel João Pereira Correia mccj
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