1. O
título desta crónica foi-me imposto por algumas reacções a vários
acontecimentos locais e globais – uns mais recentes e outros mais antigos – de consequências
que não são fáceis de apagar.
O mais recente, o covide-19, obrigou muita gente a
tornar-se monge trapista à força e outra a descer à cova de modo clandestino,
sem poder despedir-se de familiares ou amigos.
Vivemos, agora, a febre de recuperar o
exercício da liberdade que o medo, as leis e as normas de alguns Estados e
Religiões condicionavam. Não falta quem receie que esta febre se transforme num
libertário exercício de alguma estupidez ou acentue as dificuldades dos
chamados “bairros sociais”, onde as condições de habitação e de circulação, que
o trabalho exige, criem novos focos de expansão da pandemia. Pelos vistos, é
menos arriscada uma viagem a Marte do que o percurso de um pobre para os seus
locais de trabalho diário.
O Primeiro Ministro
formulou, no entanto, um princípio de sabedoria prática que mantém toda a sua
pertinência: «O primeiro dever, de cada uma e de cada um de nós, é cuidar do
próximo. É o de evitar que, por negligência, por desconhecimento, ponhamos em
risco a saúde do outro».
Existem normas estudadas
para que uma pessoa possa conviver sem contaminar nem ser contaminada. Exigem o
incómodo de serem observadas. Mas, já estou a prever o lamento tardio se as
coisas correrem mal pela insensatez pessoal ou de grupo: o desconfinamento foi muito
precipitado! Não me consola a conversa que se está a difundir: se acontecer um
novo surto, já sabemos como reagir! Não saberemos sem aprender, agora, a
evitá-lo.
Agustina Bessa Luís dizia
que somos um povo de reacções repentinas. Damo-nos mal com a sabedoria que é a
virtude arquitecta da vida pessoal, social e política de boa cidadania.
Existe quem decida mais
depressa do que pensa. Como escreveu Peter Sloterdijk, o activista não tem a
capacidade nem a vontade de compreender em que bases assenta toda a moral política
esclarecida: não é o fim que justifica os
meios, são os meios que dizem a verdade sobre os fins. Como se sabe, as
piores formas de terror são aquelas que se referem às mais eminentes intenções.
Um número não negligenciável dos que se deixaram apanhar pelo demónio do bem
quiseram realmente imaginar que, por vezes, o crime é a forma suprema do culto
a Deus ou da efectivação do seu dever. A objecção mais eficaz contra este tipo
de encantamento vem do núcleo espiritual da religião cristã, ou seja, do dogma
crístico: «É pelos seus frutos que os conhecereis» (Mt 6,16)[1].
2. Hoje,
os cristãos celebram a festa do Pentecostes. Segundo o Evangelho de João, mesmo
depois da experiência do Cristo ressuscitado, a comunidade dos discípulos vivia
trancada pelo medo. Foi o dom do Espírito Santo que a desconfinou e fez dela
testemunha de um novo começo[2].
Foi, no entanto, a astúcia
de S. Lucas que, depois de fazer a história do percurso de Jesus, descreveu os
começos do multifacetado movimento cristão. Criou um cenário para fazer
coincidir a celebração judaica da renovação da Aliança, pelo dom da Lei no
Sinai, com a irrupção da Lei Nova, a da pura graça do Espírito de Cristo aberta
a todos os mundos[3].
É muito belo o mito da
Torre de Babel e muito mal interpretado. A diversidade das línguas e a
dificuldade que ela representa, para a chamada comunicação, é um dado da
experiência universal. O sonho de uma só língua precisa de um poder dominador
universal que elimine todas as outras. No referido mito, é a intervenção de
Deus que se opõe a esse imperialismo de destruição da diversidade linguística
para a realização de projectos megalómanos[4].
Muitas vezes se contrapôs
o mito do Pentecostes[5] ao da Torre de Babel,
quando, de modo diferente, são ambos a apologia da diversidade. No Pentecostes,
cada qual os ouvia falar na sua própria língua. Estupefactos e surpreendidos
diziam: Não são todos galileus, esses que
estão a falar? Como é que cada um de nós os ouve na sua própria língua materna?
O universalismo do
movimento cristão não é uma razia da diversidade cultural e linguística. O
desejo de catecismos universais e de um direito canónico, onde está tudo
previsto, não são capazes de se converterem à diversidade turbulenta da
História da Igreja. Apesar do Vaticano II, a unicidade nas expressões da Fé
cristã contraria a pluralidade cultural, mesmo dentro de um só país.
3. Entre
os muitos documentos do Papa Francisco, quero destacar o intitulado A Alegria da Verdade (VG), destinado a
criar um novo paradigma de investigação e ensino, para as universidades católicas
e pontifícias. Perante os dramáticos desafios sociais, económicos e políticos
que o covid-19 impõe à sociedade e à Igreja, é fundamental perguntar o que está
a ser feito desse notável e incontornável programa.
Deixo, aqui, um pequeno
apontamento desse texto esquecido:
Na verdade, hoje em dia, a exigência
prioritária é que todo o povo de Deus se prepare para empreender com espírito
uma nova etapa da evangelização (…) E isto revela-se de valor imprescindível
para uma Igreja “em saída”. Tanto mais que, hoje, não vivemos apenas uma época
de mudanças, mas uma verdadeira e própria mudança de época, caracterizada por
uma crise antropológica e socio-ambiental global, em que verificamos, de dia
para dia, cada vez mais sintomas de um ponto de ruptura, por causa da alta
velocidade das mudanças e da degradação que se manifestam, tanto em catástrofes
naturais regionais como em crises sociais ou mesmo financeiras. Em última
análise, trata-se de mudar o modelo de desenvolvimento global e de redefinir o
progresso.
(…) Esta tarefa enorme e inadiável
requer, a nível cultural da formação académica e da investigação científica, o
compromisso generoso e convergente em prol duma mudança radical de paradigma. Seja-me
permitido dizê-lo, para uma corajosa revolução cultural.
A este compromisso, a rede mundial de
Universidades e Faculdades eclesiásticas é chamada a prestar o decisivo
contributo de fermento, sal e luz do Evangelho de Jesus Cristo e da Tradição
viva da Igreja sempre aberta a novos cenários e propostas.
(…) Daí, o imperativo de escutar no
coração e fazer ressoar na mente o clamor dos pobres e da terra, para tornar
concreta a dimensão social da evangelização como parte integrante da missão da
Igreja[6].
É urgente a pergunta e a procura de uma
resposta: qual é a cultura social, económica e política de professores e alunos
das universidades que se dizem católicas? Um inquérito a esta questão não
ficava nada mal.
31.
05. 2020
[1]
Peter Sloterdijk, A Loucura de Deus. Do
Combate dos Três Monoteísmos, Relógio d’Água, 2009, p. 63
[3]
Act 1 – 3
[6]
Cf. VG, nº 3 e 4