domingo, 31 de maio de 2020

A LOUCURA MUNDANA E O DOM DA SABEDORIA Frei Bento Domingues, O.P.


1. O título desta crónica foi-me imposto por algumas reacções a vários acontecimentos locais e globais – uns mais recentes e outros mais antigos – de consequências que não são fáceis de apagar.

O mais recente, o covide-19, obrigou muita gente a tornar-se monge trapista à força e outra a descer à cova de modo clandestino, sem poder despedir-se de familiares ou amigos.

 Vivemos, agora, a febre de recuperar o exercício da liberdade que o medo, as leis e as normas de alguns Estados e Religiões condicionavam. Não falta quem receie que esta febre se transforme num libertário exercício de alguma estupidez ou acentue as dificuldades dos chamados “bairros sociais”, onde as condições de habitação e de circulação, que o trabalho exige, criem novos focos de expansão da pandemia. Pelos vistos, é menos arriscada uma viagem a Marte do que o percurso de um pobre para os seus locais de trabalho diário.

O Primeiro Ministro formulou, no entanto, um princípio de sabedoria prática que mantém toda a sua pertinência: «O primeiro dever, de cada uma e de cada um de nós, é cuidar do próximo. É o de evitar que, por negligência, por desconhecimento, ponhamos em risco a saúde do outro».

Existem normas estudadas para que uma pessoa possa conviver sem contaminar nem ser contaminada. Exigem o incómodo de serem observadas. Mas, já estou a prever o lamento tardio se as coisas correrem mal pela insensatez pessoal ou de grupo: o desconfinamento foi muito precipitado! Não me consola a conversa que se está a difundir: se acontecer um novo surto, já sabemos como reagir! Não saberemos sem aprender, agora, a evitá-lo.

Agustina Bessa Luís dizia que somos um povo de reacções repentinas. Damo-nos mal com a sabedoria que é a virtude arquitecta da vida pessoal, social e política de boa cidadania.

Existe quem decida mais depressa do que pensa. Como escreveu Peter Sloterdijk, o activista não tem a capacidade nem a vontade de compreender em que bases assenta toda a moral política esclarecida: não é o fim que justifica os meios, são os meios que dizem a verdade sobre os fins. Como se sabe, as piores formas de terror são aquelas que se referem às mais eminentes intenções. Um número não negligenciável dos que se deixaram apanhar pelo demónio do bem quiseram realmente imaginar que, por vezes, o crime é a forma suprema do culto a Deus ou da efectivação do seu dever. A objecção mais eficaz contra este tipo de encantamento vem do núcleo espiritual da religião cristã, ou seja, do dogma crístico: «É pelos seus frutos que os conhecereis» (Mt 6,16)[1].

2. Hoje, os cristãos celebram a festa do Pentecostes. Segundo o Evangelho de João, mesmo depois da experiência do Cristo ressuscitado, a comunidade dos discípulos vivia trancada pelo medo. Foi o dom do Espírito Santo que a desconfinou e fez dela testemunha de um novo começo[2].

Foi, no entanto, a astúcia de S. Lucas que, depois de fazer a história do percurso de Jesus, descreveu os começos do multifacetado movimento cristão. Criou um cenário para fazer coincidir a celebração judaica da renovação da Aliança, pelo dom da Lei no Sinai, com a irrupção da Lei Nova, a da pura graça do Espírito de Cristo aberta a todos os mundos[3].

É muito belo o mito da Torre de Babel e muito mal interpretado. A diversidade das línguas e a dificuldade que ela representa, para a chamada comunicação, é um dado da experiência universal. O sonho de uma só língua precisa de um poder dominador universal que elimine todas as outras. No referido mito, é a intervenção de Deus que se opõe a esse imperialismo de destruição da diversidade linguística para a realização de projectos megalómanos[4].

Muitas vezes se contrapôs o mito do Pentecostes[5] ao da Torre de Babel, quando, de modo diferente, são ambos a apologia da diversidade. No Pentecostes, cada qual os ouvia falar na sua própria língua. Estupefactos e surpreendidos diziam: Não são todos galileus, esses que estão a falar? Como é que cada um de nós os ouve na sua própria língua materna?

O universalismo do movimento cristão não é uma razia da diversidade cultural e linguística. O desejo de catecismos universais e de um direito canónico, onde está tudo previsto, não são capazes de se converterem à diversidade turbulenta da História da Igreja. Apesar do Vaticano II, a unicidade nas expressões da Fé cristã contraria a pluralidade cultural, mesmo dentro de um só país.

3. Entre os muitos documentos do Papa Francisco, quero destacar o intitulado A Alegria da Verdade (VG), destinado a criar um novo paradigma de investigação e ensino, para as universidades católicas e pontifícias. Perante os dramáticos desafios sociais, económicos e políticos que o covid-19 impõe à sociedade e à Igreja, é fundamental perguntar o que está a ser feito desse notável e incontornável programa.

Deixo, aqui, um pequeno apontamento desse texto esquecido:

Na verdade, hoje em dia, a exigência prioritária é que todo o povo de Deus se prepare para empreender com espírito uma nova etapa da evangelização (…) E isto revela-se de valor imprescindível para uma Igreja “em saída”. Tanto mais que, hoje, não vivemos apenas uma época de mudanças, mas uma verdadeira e própria mudança de época, caracterizada por uma crise antropológica e socio-ambiental global, em que verificamos, de dia para dia, cada vez mais sintomas de um ponto de ruptura, por causa da alta velocidade das mudanças e da degradação que se manifestam, tanto em catástrofes naturais regionais como em crises sociais ou mesmo financeiras. Em última análise, trata-se de mudar o modelo de desenvolvimento global e de redefinir o progresso.

(…) Esta tarefa enorme e inadiável requer, a nível cultural da formação académica e da investigação científica, o compromisso generoso e convergente em prol duma mudança radical de paradigma. Seja-me permitido dizê-lo, para uma corajosa revolução cultural.

A este compromisso, a rede mundial de Universidades e Faculdades eclesiásticas é chamada a prestar o decisivo contributo de fermento, sal e luz do Evangelho de Jesus Cristo e da Tradição viva da Igreja sempre aberta a novos cenários e propostas.

(…) Daí, o imperativo de escutar no coração e fazer ressoar na mente o clamor dos pobres e da terra, para tornar concreta a dimensão social da evangelização como parte integrante da missão da Igreja[6].

É urgente a pergunta e a procura de uma resposta: qual é a cultura social, económica e política de professores e alunos das universidades que se dizem católicas? Um inquérito a esta questão não ficava nada mal.





31. 05. 2020





[1] Peter Sloterdijk, A Loucura de Deus. Do Combate dos Três Monoteísmos, Relógio d’Água, 2009, p. 63
[2] Jo 20, 19-23
[3] Act 1 – 3
[4] Gn 11, 1-9
[5] Act 2, 1-13
[6] Cf. VG, nº 3 e 4

segunda-feira, 25 de maio de 2020

Pe David Domingues - HELLOS AND GOODBYES

HELLOS AND GOODBYES
Life is lived in between a series of “hellos” and “goodbyes”. Needless to say that to say hello, even to the most timid spirit, is far easier and more pleasant than to bid farewell unless there is no love for the one you say goodbye to. Since we were born, we learn to say hello to people who have blessed our journey; to new experiences, opportunities realizations, accomplishments, jobs, and so much more. But, the fact is that each hello soon becomes a goodbye to people who move away, experiences that are concluded, jobs that remain behind as we move forward to new beginnings. Such is our human journey and it is beautiful indeed. However, no one likes to say goodbye.
With the celebration of the Ascension of Jesus, a final moment of farewell has come. He had prepared his disciples for this moment of departure, yet, who can ever be ready to bid farewell to the One who had become the center of their lives for the entire time of Jesus public ministry. They were certainly at a loss starring at the heavens. But, in this “last moment”, in his last farewell message to the disciples, Jesus says something amazing: “Go and make disciples of all nations …teach them … I am with you always, until the end of the age.” Clearly reminding the disciples and all of us that this ‘goodbye’ is meant to be a new beginning. As someone pointed out, from this moment Jesus started working from home, but the mission of the Church begun.
Our mission is clear - go and make disciples! How, through our witnessing to the faith we treasure in our hearts, and our commitment to follow not just the teaching of Jesus, but to follow in His footsteps. It is consoling to know that He remains with us. We do not need to gaze up into the sky: Jesus dwells with us, He lives in us and is not absent - but among us forever.
Let us BE GRATEFUL to the Lord for trusting us enough to entrust His mission to us. No place for spectators! We are all workers of the Lord.
Let us BELIEVE that, in the power of the Spirit, Jesus continues to be fully present in our journey. He is never absent. What we need to do is to open our hearts in faith to Him.
Let us GO! Yes, the feast of the Ascension is a call for action.
There are some hellos and goodbyes lying ahead on our journey. Let us not fear! Through it all, He is still the Emmanuel, the God who is and forever will be with us.

domingo, 24 de maio de 2020

VIVER E AJUDAR A VIVER Frei Bento Domingues, O.P.


1. Gostei muito, por várias razões, da entrevista a Ben Ferencz, o único procurador vivo do célebre tribunal de Nuremberga, publicada na Revista Expresso[1]. Quando participou nesse tribunal tinha 27 anos. Atingiu, agora, os 100, cheio de vigor, de humor e de esperança. Não resisto a deixar aqui, num breve apontamento, o eco deste testemunho.

Foi confiada a Ben Ferencz, pelo referido tribunal, a tarefa de investigar os crimes dos Esquadrões da Morte dedicados a procurar e matar todo o judeu que encontrassem – homem, mulher ou criança – e fazer o mesmo aos ciganos e a todos os inimigos do Reich.

Nesta entrevista, sem negar a importância do dever da memória, confessa que não quis ficar colado a esmiuçar o horror desse passado. Voltou-se para o futuro e dedicou a sua vida a lutar para erguer leis e tribunais, para que os crimes de guerra, crimes contra a humanidade, não possam ficar impunes.

 Quem começa as guerras são pessoas e os crimes são cometidos por indivíduos que devem ser responsabilizados pelas suas acções. Quando foi procurador do tribunal de Nuremberga, o genocídio ainda não estava nos códigos. Usou esse termo, mas verificou que os nazis não podiam ser julgados por esse crime, enquanto tal, por falta de lei aplicável.

Não desistiu e, em 1948, a Convenção sobre Genocídio foi adoptada pelas Nações Unidas. Comenta: «é uma vergonha que os EUA tenham demorado 40 anos para assinarem essa Convenção. Só aconteceu em 1998». Desde 2002, existe o Tribunal Penal Internacional, mas os EUA ainda não o reconheceram!

Adianta, no entanto, que Trump devia ser julgado nesse tribunal. Este presidente dos EUA, no seu primeiro discurso, na ONU, atreveu-se a dizer acerca da Coreia do Norte: «se nos ameaçarem, destruir-vos-emos totalmente».

Como se atreve a ameaçar com a destruição um país inteiro e toda a sua população? Foi precisamente isso que os alemães fizeram com os judeus. Agora, ao levantar um muro nas fronteiras com o México, separa as mães dos seus próprios bebés! Não é isto um crime contra a humanidade?

 Ben Ferencz luta por um mundo onde qualquer líder possa ser acusado pelo uso ilegal da força armada. Para ele, o presidente Eisenhower disse, em 1958, o essencial: «num sentido muito real, o mundo já não tem escolha entre a força e a lei. Para a civilização sobreviver temos de escolher o império da lei». Foi o lema da militância de Ben Ferencz: Law, not war – a lei, não a guerra!

 A guerra não é um conceito abstracto. Os combatentes do autoproclamado Estado Islâmico têm direito a um julgamento justo. Se isso não for possível num tribunal local, dispomos, hoje, do Tribunal Penal Internacional. Como será possível levar a tribunal os criminosos islâmicos que estão, neste momento, a destruir o norte de Moçambique?

Ben Ferencz está casado com Gertrude há 70 anos e sente-se feliz: «nunca, mas nunca, tivemos uma briga». Um dos filhos contou que, ao jantar, o pai exigia sempre a resposta a esta bendita pergunta: hoje, que fiz eu pela humanidade? Bela pedagogia!

2. A FAO repete e pode continuar a repetir que 851 milhões de pessoas passam fome e que, apenas, um por cento da população mundial detém mais riqueza do que os restantes 99%. Os negócios da guerra continuam a falar sempre mais alto do que os números deste escândalo. É sobretudo entre os pobres que são recrutados os soldados desse negócio, aumentando as vítimas da violência e da fome e engrossando o mundo dos deslocados.

Como diz Eduardo Galeano, as guerras sempre invocam motivos nobres: matam em nome da paz, em nome de Deus, em nome da civilização, em nome do progresso, em nome da democracia e, se nenhuma dessas mentiras não for suficiente, aí estão os grandes meios de comunicação dispostos a inventar novos inimigos imaginários, para justificar a transformação do mundo num grande manicómio, num imenso matadouro.

As armas exigem guerras e as guerras exigem armas e os cinco países, que têm poder de veto nas Nações Unidas, acabam por ser também os cinco principais produtores de armas.

Se, como escreveu Shakespeare, neste mundo, os loucos guiam os cegos, agora, quatro séculos passados, os senhores do mundo são loucos apaixonados pela morte.

Vamos continuar a acreditar que nascemos para o extermínio mútuo? Que o extermínio mútuo é o nosso destino?

Não será mais justo acreditar que nascemos para viver e ajudar a viver cada vez melhor? Não será esta a vocação do ser humano?

Por experiência própria, sei que só é possível viver e ajudar a viver, lutando contra a guerra.

Desde criança, vivi com narrativas da Primeira Guerra Mundial. Sofremos as consequências da guerra civil de Espanha e da Segunda Guerra Mundial. Conheci muitos dos presos políticos por causa das guerras coloniais. Vivi, depois da independência, as guerras civis em Moçambique e em Angola. Entrei no Peru, quando o Sendero Luminoso fez as grandes explosões em Lima. Vi o que era o pavor das FARC na Colômbia. Vivi no bairro de Pinochet no Chile. Conheci, de perto, testemunhas dos desaparecidos lançados ao mar, na Argentina. Conheci torturados do regime militar no Brasil e alguns refugiados em Portugal.

Quando, na Europa, se põe em causa o acolhimento das novas vítimas de novas e antigas guerras, se ainda não perdemos completamente a memória, devemos ter, pelo menos, um bocadinho de vergonha.

3. Hoje, é o Domingo da Ascensão. É a festa de todos os equívocos. Nós não podemos viver fora das categorias do espaço e do tempo, mesmo para falar do que já não está sujeito a essas leis. A ressurreição e a ascensão de Cristo aos céus são, para os crentes, realidades infiguráveis, mas delas não se pode falar sem o jogo de linguagem que nos faça saltar do visível para o invisível, da superfície do real para a sua profundidade, na simulação da continuidade com a nossa experiência.

Conta-se, nos Actos dos Apóstolos, que os discípulos de Jesus continuavam cegos pelo poder e interrogavam o Mestre: Senhor, é agora que vais restaurar o Reino de Israel?[2].

Jesus sentiu que, enquanto eles não fossem transformados pelo Espírito que O transformou, as explicações já não adiantavam muito e, diante deles, subiu aos céus escondido numa nuvem.

Se a narrativa ficasse por aqui, se ela se esgotasse nessa figuração, teríamos de dizer que Jesus se evadiu do nosso mundo e está sentado à direita de Deus Pai. Não é assim. É do próprio céu que os discípulos recebem o aviso que Cristo não quer alienados perdidos nas nuvens. Há muito que fazer para transformar este nosso mundo num lugar em que seja bom viver e ajudar a viver cada vez melhor. S. João, muito mais tarde, colocará na boca de Jesus: Vim para que tenham vida e vida em abundância[3].

É tempo de acabar com todas as guerras: as guerras contra a natureza e as que nos destroem mutuamente. Há quem diga que têm proporcionado grandes avanços científicos e tecnológicos. Parece que ninguém está interessado numa vacina contra a guerra e ela existe: mudar de vida.



23. 05. 2020



[1] Cf. Rev. Expresso, 16. O5. 2020
[2] Act 1, 6-9
[3] Jo 10, 10

quinta-feira, 21 de maio de 2020

CONVERSÃO ECOLÓGICA E DO DESEJO DISTORCIDO Frei Bento Domingues, O.P.


1. Chegam-me de vários lados, com propósitos diferentes, notícias e comentários sobre o comportamento lamentável de algumas correntes do alto e baixo clero unidas no afrontamento das medidas recomendadas pela OMS e que a DGS e os governos impõem para evitar o contágio do covid-19. Unidas também no declarado incitamento ao seu desrespeito, a nível nacional e internacional.

Essas movimentações ressurgem quando muita gente já se sente desesperada entre o apertado confinamento, o emprego perdido, a ronda da pobreza, a ameaça da morte e um futuro de pouca esperança. A agitação de algumas tendências do clero revela, no entanto, outra conhecida e renovada motivação: atacar a pastoral do Papa Francisco para que as linhas mais inovadoras do seu pontificado e do seu estilo morram e sejam enterradas com ele.

Procura-se fazer acreditar que Bergoglio é um instrumento das forças que desejam acabar com a prática religiosa, já muito enfraquecida, numa Europa laicizada. É preciso estar em sintonia com maçónicos, comunistas e ateus para proibir missas abertas ao público e impedir as grandes e tradicionais manifestações da fé católica. Este Papa, dizem os seus adversários, acaba sempre por fazer o jogo dos inimigos da Igreja, transformando-a numa banal associação filantrópica com igrejas de portas fechadas.

 Para a grande maioria dos católicos, a relevância do exibicionismo desse clero, com mitra ou sem mitra, depende, em grande parte, do acolhimento que lhe é dado em certos meios de comunicação e não pela sua real representatividade.

Por mim, não posso deixar de louvar a coragem do Bispo de Leiria-Fátima – em harmonia com a Conferência Episcopal – pela atitude exemplar, em relação à maior manifestação da religiosidade popular de Portugal e do Ocidente. Mostrou, pela sua decisão, que para Jesus Cristo a maior glória de Deus é o cuidado com a saúde e a vida dos seres humanos. Esse cuidado vale mais do que o cumprimento literal de todas as promessas e sacrifícios. Deus lê nos corações e o mal pede mais combate inteligente do que teologuemas sacrificiais, que insultam piedosamente o infinito mistério que envolve a nossa condição.

O Bispo António Marto tornou-se testemunha do sentido, para o nosso tempo, do célebre diálogo de Jesus com a Samaritana junto ao poço de Jacob[1]: os verdadeiros adoradores de Deus não são os que adoram em Jerusalém ou em Garizim, em Roma ou em Meca, em Fátima ou em Lourdes, mas aqueles que O adoram em espírito e verdade, dentro ou fora de qualquer igreja. O verdadeiro e sagrado templo da divindade é o ser humano, no acolhimento do outro como irmão. 

Com esta observação, não estou a desvalorizar a importância dos espaços sagrados nem a simbologia do calendário das celebrações da fé cristã. O espaço, o tempo e a itinerância são dimensões fundamentais da nossa condição que não pode prescindir da linguagem de ritos sagrados e profanos.

Participei, muitas vezes, no 13 de Maio na Cova da Iria e nunca senti nada de tão comovente como a imensa Procissão das Velas e do Adeus, ambas completamente inúteis, como são os grandes poemas e como é este: o de um povo sofrido que não desiste nem de partir nem de regressar. Fátima é o barco e o cais das nossas reais e míticas viagens na escuridão do mundo[2].

2. Vivemos na civilização da velocidade, da pressa em chegar sempre antes do outro. Esta crise obrigou-nos a parar. Mas suspeito que este medonho susto ainda não conseguiu alterar, em profundidade, a mentalidade geral. Continuamos a perguntar quando poderemos regressar à vida normal. Aquilo a que chamamos vida normal já mostrou, nesta calamidade, as suas estruturais anormalidades semeadas de velhas e novas desigualdades vergonhosas. E surge a pergunta: o que é possível e desejável fazer para acudir ao presente e preparar um futuro viável?

As retóricas descrições de tudo o que está mal – à vista de quem quiser ver – e as retóricas das receitas prontas a resolver todos os problemas parecem-me que confiam demasiado no poder mágico das palavras. A eficácia da linguagem performativa é de outra ordem.

Fazer coincidir a rapidez do dizer com o acontecer das transformações sociais pertence à ordem do milagre, pouco frequente, no devir da natureza, da cultura e da investigação.

Os sistemas autoritários pretendem substituir, pelo quero, posso e mando, a lentidão das decisões democráticas de consensos alargados. No entanto, se as democracias se perderem na exibição de labirínticas discussões clubísticas acabam por cansar os cidadãos que reclamam e esperam resultados, em todos os domínios, para a construção do bem comum.

Será possível combinar as respostas às urgências maiores da população mais pobre e ir alterando o sistema económico dominante e insustentável, assente na exploração ilimitada de recursos limitados e em perpetuar escandalosas desigualdades sociais?

Há quem pense que é este o tempo certo para delinear futuras estratégias económicas baseadas na tríade inseparável: biodiversidade, alterações climáticas e saúde pública[3].

3. Perante a tragédia que estamos a viver e pensando no futuro, é recorrente a expressão, nada pode continuar como dantes. Quem assim fala manifesta vontade de mudança, de conversão. Quem, pelo contrário, não quer perder a vida altamente privilegiada de que disfruta, até da crise procura servir-se para alargar os seus injustificados privilégios.

Em 2015, o Papa Francisco publicou a encíclica Laudato SI sobre o cuidado da Casa Comum que inscreveu no movimento ecológico mundial. É um documento minucioso e abrangente que mostra a raiz humana da crise ecológica, fruto e causa de muitas outras crises. A ecologia integral que propõe envolve múltiplas dimensões: ambientais, económicas, sociais e culturais, vida quotidiana, seguindo sempre o princípio do bem comum e da justiça intergeracional. Não se limita aos aspectos doutrinais. Apresenta também linhas de orientação e acção, para vencer a indiferença geral e os obstáculos levantados pelos interesses insensatos dos poderosos.

Nada disto, porém, é possível sem uma autêntica conversão ecológica e uma espiritualidade que alimente a paixão pelo cuidado do mundo e não pela sua dominação destruidora. Por outro lado, para chegar à conversão ecológica é indispensável a conversão do desejo distorcido. Quem deseja tudo para si próprio só pode ver, nos desejos dos outros, rivais a dominar ou abater. Não sente alegria com a diferença.

17.Maio.2020



[1] Jo 4, 1-42
[2] Frei Bento Domingues, A Religião dos Portugueses, Temas e Debates – Círculo de Leitores, 2018; ver também Anselmo Borges, Fátima e a covid-19, in Público, 13.05.2020.
[3] Maria Amélia Martins-Loução, O tempo certo, in Público, 26.04.2020.

domingo, 3 de maio de 2020

DEUS, A MÃE E O BOM PASTOR Frei Bento Domingues, O.P


1. Segundo a teoria do Big Bang – teoria de um padre – o Universo terá começado há 14 mil milhões de anos. Pelos vistos, a obra-prima da estruturação da Natureza é a espécie humana. Somos provavelmente o mais alto nível de complexidade que conhecemos, a estrutura mais complexa do Universo[1]. Não somos apenas a espécie mais numerosa, mas também a que desenvolveu mais o pensamento abstracto, científico, artístico, religioso e ético.

No mistério vivemos, nos movemos e existimos, cheios de perguntas metafísicas e científicas, banhados em espírito criador de beleza, sem o qual não floresce nem o amor nem a poesia nem a grande música, alma e ritmo de todas as artes.

No entanto, sem ética, sem procurarmos, uns com os outros, estilos de boa qualidade de vida, em instituições justas e amistosas, podemos deitar a perder as maiores conquistas do género humano. Elas próprias se podem tornar instrumentos sofisticados de destruição.

Sem a virtude da prudência pessoal e social – virtude das decisões ponderadas – a governar a nossa liberdade, cedemos facilmente aos caprichos dos nossos apetites desorientados. Estragamos tudo: as relações com a natureza e com os outros. Continuamos a gastar, em armamento e em guerras, o que vai faltar para cuidar da Casa Comum.

É por isso que desisti do ponto central da teodiceia, que regressou agora, em alguns ambientes, a propósito do covid-19, com a velha e revelha questão: se Deus existe, por que é que tolera os terrores e injustiças flagrantes da condição humana?

Apetece fazer outra pergunta: se nós já conhecemos os autores do crime, da desumanidade, por que razão recorrer a Alguém do qual nem sequer sabemos positivamente como Ele é e como actua? Para o bem e para o mal, podemos estar a invocar ou invectivar o nome de Deus em vão, em vez de combater os males de que somos responsáveis.

Contra os simplismos da nomeação de Deus fui vacinado, nos anos 50 do século passado, no encontro com o pensamento do chamado Pseudo-Dionísio. Ele era, de facto, um teólogo bizantino sírio, dos finais do século V ou inícios do século VI. Para recomendar a sua obra genial de teologia mística, teologia apofática, mais conhecida como teologia negativa, foi usada a astúcia de ser presentada como a de um convertido da pregação de S. Paulo em Atenas, chamado precisamente Dionísio, o Areopagita[2].

Teve uma influência muito benéfica em toda a Idade Média e foi pena que a descoberta de que, afinal, não gozava do prestígio da época apostólica, tenha levado a esquecer algo que nunca deve ser esquecido: não podemos saber como Deus é e todas as afirmações acerca desse infinito mistério, para saltarem para o seu insondável sentido metafórico, devem ser precedidas de uma negação. Deus não pode ser como o figuramos.

A teologia menos incompetente é a que nasce da linguagem simbólica, metafórica, da energia poética irrigada pela grande música. Mas é sobretudo aquela que escuta a Pergunta que ecoa, desde o despontar da consciência humana, recolhida como voz de Deus no Livro do Génesis e no Evangelho segundo S. Mateus: que fizeste do teu irmão?[3] É essa Pergunta que leva a tribunal as respostas de todas as culturas e civilizações e de quem acredita ou não acredita em Deus.

2. Herberto Helder (1930-2015), mudou para português poemas de muitas culturas[4] e publicou uma súmula com o título, Ou o poema contínuo[5], súmula de várias obras de um grande poeta teólogo, à procura de uma nova linguagem de que deixo, aqui, alguns fragmentos: «É preciso criar palavras, sons, palavras/vivas, obscuras, terríveis.// …É preciso criar os mortos pela força/magnética das palavras// …Há palavras que requerem uma pausa e silêncio…/ Ouves o grito dos mortos?».

H. Helder trabalhou uma nova linguagem para falar de Deus, palavra que só pode ser usada para destroçar a morte e reviver: «…Acabou./ Sento-me a conversar com Deus: palavra, música, martelo/ uma equação: conversa de ida e volta/ Depois há gente que fala entre si, depois é o medo, depois é o delírio./ Escuta a breve canção dentro de ti. Que diz ela?/ Não move as coisas com as suas auras, nem tu nem a tua canção/ pertencem ao mundo cheio, alma que sopra./ Nada se liga entre si, Deus não se debruça na canção; destroça/ a cadência».

«…e depois ninguém fala, e cada/ coisa actua/ sobre cada coisa, e tudo o que é visível abala/ o território invisível./ Redivivo. E foi para esta mínima palavra que apareceu não/ se sabe o quê arrancou/ à folha e à esferográfica canhota a poderosa superfície/ de Deus, e assim é/ que te encontraste redivivo, tu que tinhas morrido um momento antes,/ apenas».

Hoje, é o dia da Mãe e das habituais e generosas piroseiras. Por isso, é também com H. Helder que evoco este glorioso dia: «As mães são as mais altas coisas/ que os filhos criam, porque se colocam/ na combustão dos filhos porque/ os filhos estão como invasores dentes-de-leão no terreno das mães.// E as mães são poços de petróleo nas palavras dos filhos…// Por meio da mão dele que toca a cara louca/ da mãe que toca a mão pressentida do filho. E por dentro do amor, até somente ser possível amar tudo,/ e ser possível tudo ser reencontrado por dentro do amor».

3. Este é também o Domingo do Bom Pastor. A pastorícia era um modo de vida tradicional dos hebreus. Um bom pastor é aquele que sabe cuidar das ovelhas e que, por isso, reconhecem a sua voz inconfundível.

S. João polemiza com aqueles que, nas suas comunidades, se apresentavam como pastores e não passavam de ladrões e salteadores. Sugavam o rebanho. Não se parecem nada com Jesus que vem para que tenham vida e a tenham em abundância[6]. Nas catacumbas, está figurado com uma ovelha aos ombros, para evocar uma parábola de S. Lucas que não deixava ninguém para trás. São atribuídas a S. Paulo as Cartas Pastorais que apontam o que, nas Igrejas, devem ser os encarregados das comunidades. Santo Agostinho, ao dizer convosco sou cristão, para vós sou bispo, cunhou para sempre o programa: nunca uma comunidade sem bispo nem um bispo sem comunidade.

As reformas na Igreja têm de implicar toda a comunidade, a começar pelos seus dirigentes. É conhecida a voz de Frei Bartolomeu dos Mártires (1514-1590), no Concílio de Trento, que exigia uma reforma de toda a Igreja, mas a começar nos bispos e nos cardeais que precisavam de uma eminentíssima reforma.

O século XX teve um excepcional bom pastor: João XXIII. O século XXI tem o Papa Francisco. Dele, fala o mundo inteiro, porque todas as pessoas de boa vontade se reconhecem nos seus gestos e nas suas palavras.

03. Maio. 2020



[1] Expreso-R. 25. 04. 2020. Vale a pena ler a entrevista de Luciana Leiderfarb a Hubert Reeves
[2] Act 17, 34
[3] Gen. 4,9-10; Mt 25,11-47
[4] O Bebedor Nocturno. Poemas mudados para português, Porto Editora, 2015
[5] Ou o poema contínuo. Súmula. Assírio & Alvim, 2001
[6] Jo, 10, 1-10; cf. Lc 15, 4-7