segunda-feira, 28 de março de 2022

PRAEDICATE EVANGELIUM Frei Bento Domingues, O.P.

 1. Ao fazer nove anos de pontificado, o Papa Francisco mostrou que os cépticos, acerca da possibilidade da reforma da Cúria, podem começar a rever a sua desconfiança.

Dizia-se que Bergoglio era muito corajoso nos discursos aos cardeais sobre a urgência da reforma – recorde-se o discurso à Cúria em Dezembro de 2016 –, mas sem consequências reais. Ele, no entanto, não apontou apenas os pecados curiais. Caracterizou, com lucidez, as diferentes atitudes perante as reformas necessárias: «Neste percurso, é normal e até salutar, encontrar dificuldades. No caso da reforma, poderiam ser apresentadas segundo diferentes tipologias de resistência: as resistências abertas, que nascem muitas vezes da boa vontade e do diálogo sincero; as resistências ocultas, que nascem dos corações assustados ou empedernidos que se alimentam das palavras vazias da hipocrisia espiritual de quem, com a boca, diz-se pronto à mudança, mas quer que tudo permaneça como antes. Existem também as resistências malévolas, que germinam em mentes tortuosas e aparecem quando o diabo inspira más intenções, muitas vezes disfarçadas sob pele de cordeiros. Este último tipo de resistência esconde-se a trás das palavras justificadoras e, em muitos casos, acusatórias, refugiando-se nas tradições, nas aparências, nas formalidades, no já conhecido, ou então, em querer reduzir tudo a um caso pessoal».

Caracterizou e nomeou, também, o tipo de soluções que era preciso aplicar. Agora, temos algo novo e concreto: o próprio texto da reforma da Cúria, promulgado a 19 de Março, dia de S. José, apresentado a 21 deste mês e entrará em vigor a 5 de Junho de 2022.

2. Segundo a apresentação aos jornalistas da Constituição Praedicate Evangelium (Pregai o Evangelho), que vamos seguir, a 'Igreja em saída' é o eixo que estrutura a reforma da Cúria romana.

Os apresentadores da referida Constituição foram o cardeal Marcello Semeraro, Prefeito da Congregação para as Causas dos Santos; D. Marco Mellino, Secretário do Conselho dos Cardeais; e Gianfranco Ghirlanda, SJ, um dos conselheiros canónicos da reforma.

O antigo axioma, a Igreja deve estar sempre em reforma, pode ser agora aplicado ao processo de reorganização da Cúria romana, não concluído com a promulgação desta Constituição, pois também da Cúria se pode dizer: Curia semper reformanda.

O documento, apresentado na Sala de Imprensa da Santa Sé, é fruto de um trabalho de quase dez anos de reflexão, consulta e avaliação do Papa junto do Conselho de Cardeais e de várias realidades eclesiais.

Durante a apresentação, Semeraro explicou como a nova Constituição não encerra apenas um caminho, mas abre novas estradas para o futuro. Isto significa que poderá haver outras novidades além daquelas já introduzidas: leigos Prefeitos, novos Dicastérios ou Dicastérios incorporados. Se forem precisas outras mudanças, o Papa poderá fazê-las. De facto, foi o que aconteceu com Paulo VI e João Paulo II, autores das duas Constituições Regimini Ecclesiae universae (1967) e Pastor Bonus (1988), agora superadas.

De facto, foi seguido o princípio de gradualidade que o Papa Francisco, no seu documento programático, Evangelii Gaudium, resumiu na expressão: «O tempo é superior ao espaço», o que permite trabalhar a longo prazo, sem a obsessão por resultados imediatos. Ajuda a suportar com paciência as situações difíceis e adversas ou as mudanças de planos que o dinamismo da realidade impõe.

Outro princípio importante seguido, na elaboração do documento, é o da tradição, ou seja, da fidelidade à história e continuidade com o passado. Seria um engano, e algo fantasista, pensar numa reforma que perturbaria todo o sistema curial. Praedicate Evangelium faz reflorescer as esperanças e expectativas do Concílio Vaticano II.

Isto envia para o sótão antigos fantasmas sobre o próprio conceito de reforma, pois, havia medo em usar este termo por causa de controvérsias do passado.

Ao mesmo tempo, a nova Constituição Apostólica apresenta elementos decididamente inovadores. Um deles é o facto de que os leigos e leigas, na Cúria, podem assumir a liderança de Dicastérios ou outros organismos. Isto já aconteceu com a nomeação de um leigo, Paolo Ruffini, como Prefeito do Dicastério para a Comunicação. Não foi uma decisão improvisada pelo Papa. Pelo contrário, foi estudada especificamente com a contribuição das autoridades competentes. Essa escolha tinha sido timidamente solicitada pelo Vaticano II, que tinha formulado e promovido uma teologia do laicado.

Com esta decisão, abandona-se o termo Congregação, que remonta a Sisto V (1588). Este supunha que os titulares da presidência das Congregações eram apenas cardeais. Agora, acabou. O termo Dicastério sugere que, em princípio, de acordo com a sua própria natureza, todos os baptizados podem exercer esse ofício: clérigos, pessoas na vida consagrada, fiéis leigos.

O jesuíta Ghirlanda destacou o papel dos leigos na reforma da Cúria romana, sublinhando que a autoridade não vem do grau hierárquico, mas do poder que exerce em nome do Papa, isto é, o poder de governo na Igreja não vem do sacramento da Ordem, mas da missão canónica, seja recebido por um bispo, um presbítero, um consagrado ou um leigo.

Todos os fiéis são verdadeiramente iguais em dignidade e acção e a igualdade fundamental entre todos os baptizados é a base da sinodalidade.

Importa observar que, por um lado, na situação actual, se fosse preciso o sacramento da Ordem, as leigas e os leigos não poderiam estar à frente de um Dicastério. Por outro, isto pode significar algo muito menos interessante: evita-se, deste modo, a abordagem do ministério ordenado das mulheres.

3. Marco Mellino sublinhou que esta é uma reforma acordada com toda a Igreja. Não se trata, portanto, de uma decisão única de Bergoglio, mas do fruto de um processo de elaboração que aconteceu numa série de passos, segundo o princípio de que uma Igreja sinodal é uma Igreja que escuta.

O próprio M. Mellino reviu o trabalho da comissão dos cardeais, os rascunhos apresentados, as opiniões levantadas pelos dicastérios e episcopados de todo o mundo, assim como as nunciaturas, universidades e agências de informação.

Desde Julho de 2020, quando foi apresentado um projeto final de texto, o Papa examinou pessoalmente as emendas, levando em conta as observações, indicações e propostas recebidas e tomando as suas próprias decisões, para chegar ao texto agora promulgado.

Uma das grandes alterações é o facto de, a partir da publicação do texto definitivo, os novos nomeados, para liderarem os Dicastérios, terem mandatos de cinco anos, sendo avaliados e podendo ser reconduzidos ou afastados[1].

Esta nova Constituição Apostólica visa harmonizar melhor o actual serviço da Cúria com o caminho de evangelização que a Igreja, especialmente neste tempo, está a experimentar.

A Cúria Romana deve estar ao serviço primordial da evangelização e não da burocracia papal. A reforma «não é um fim em si mesma, mas um meio para dar um forte testemunho cristão; para fomentar uma evangelização mais eficaz; para promover um espírito ecuménico mais frutuoso; para fomentar um diálogo mais construtivo com todos».

 

27 Março 2022



[1] Cf. Vatican News, 7Margens, Religión Digital (21.03.2022)

terça-feira, 22 de março de 2022

NÃO PRECISAMOS DE UM DEUS DA GUERRA Frei Bento Domingues, O.P.

 1. Jesus de Nazaré, filho de José e de Maria, nasceu numa história marcada pela tradição religiosa de Israel. O Evangelho de S. Mateus veio dizer-nos que ele assumiu essa tradição, mas o horizonte da sua missão tornou-se universal.  Em S. Lucas, assume todo o passado da história humana e entrega aos seus discípulos a missão de evangelizar o mundo. O Deus que se revelou em Jesus não faz acepção nem de pessoas nem de povos.

A organização litúrgica dos Domingos da Quaresma começa por falar dos humildes começos dessa história de Israel: Meu pai era um arameu errante que desceu ao Egipto com poucas pessoas e aí viveu como estrangeiro até se tornar uma nação grande, forte e numerosa. Os egípcios escravizaram-nos, mas Deus libertou-os e conduziu-os a uma terra onde corre leite e mel[i].

No 2º Domingo, vem a história de que Deus fez, de forma estranha, uma aliança com Abraão e a sua numerosa descendência[ii]. Neste Domingo – o 3º –, fala de Moisés, um pastor que, ao apascentar o seu rebanho, foi surpreendido por um fogo que o espanta e o seduz: viu uma chama ardente no meio de uma sarça que não se consumia.

Quis aproximar-se para ver o que era aquilo, mas do meio da sarça veio uma voz: Moisés, Moisés. Ele respondeu: aqui estou. E essa voz continuou: Não te aproximes. Tira as sandálias porque o lugar que pisas é terra sagrada. Moisés cobriu o rosto com receio de olhar para Deus. A mesma voz disse-lhe: Eu vi a situação miserável do meu povo no Egipto; escutei o seu clamor provocado pelos seus opressores, desci para o libertar das mãos dos egípcios e para o levar deste país para uma terra boa e espaçosa, como tinha prometido. Moisés disse a Deus: vou procurar os filhos de Israel e dizer-lhes: o Deus dos vossos pais enviou-me a vós. Mas, se me perguntarem qual é o seu nome, que hei de dizer-lhes? Deus respondeu a Moisés: Eu sou aquele que sou. E prosseguiu, assim falarás aos filhos de Israel: O que se chama Eu sou enviou-me a vós. Este é o seu nome para sempre, YHWH. Assim, me invocareis de geração em geração[iii]. Esta recomendação vai exigir muitos esclarecimentos. O nome YHWH foi tido por particularmente sagrado e, por isso, tornou-se objecto de especial reverência, o que levou a pronunciá-lo com precaução e, por fim, a nem o pronunciar.

Como muitas vezes se fala de Deus e outras vezes de Senhor, talvez valha a pena saber porque é que isto aconteceu.

O facto de os antigos tradutores gregos do AT não o terem transliterado parece indicar que, em fins do séc. III a.C., ele já tinha deixado de ser pronunciado. Provavelmente era já então substituído, na leitura, por ‘Adonãy, o correspondente de Kyrios (Senhor), a palavra grega que os tradutores usaram para a verter.

Mais tarde, os especialistas massoretas vocalizaram YHWH com as vogais de ‘Adonãy ou, quando os dois estão em aposição, com as vogais de ‘elohîme (Deus). Tendo deixado de prenunciar-se bastante cedo o nome de YHWH não se sabe com certeza absoluta como se pronunciava. A vocalização habitual de Yahweh, que aportugueso em Iavé, está documentada nos Padres da Igreja.

2. A pluralidade dos nomes e dos epítetos de Iavé é, antes de mais, a expressão e consequência da dificuldade que os seres humanos têm para conceber Deus e para falar dele. Deus é uma realidade que nenhum conceito humano pode abarcar, que nenhuma palavra humana pode expressar de maneira adequada. Daí a necessidade de acumular nomes e atributos, que apontam para tal ou tal aspecto da personalidade divina, conforme a revelam as suas obras.

As outras religiões semíticas faziam outro tanto. É o caso da religião cananeia, a matriz das religiões bíblicas. Fundando-se nos textos ugaríticos, alfabéticos, Aicha Rahmouni fez uma lista de 112 epítetos dados aos diferentes deuses do panteão de Ugarite, alguns dos quais são atribuídos, na Bíblia, a Iavé. A questão do nome divino foi objecto de uma intensa reflexão por parte dos Padres da Igreja. O Islão, o herdeiro mais recente da tradição bíblica, dá uma lista de 99 nomes de Deus, muito importante na teologia e na piedade muçulmanas.

Os “retratos” bíblicos de Deus têm os seres humanos como modelos. A fé bíblica diz que Deus criou o ser humano à sua imagem e semelhança (Gn 1, 27). O simples bom senso mostra que o ser humano lhe retribuiu na mesma moeda, concebendo-o à sua imagem e semelhança. Os autores bíblicos tinham dos deuses uma concepção antropomórfica, projectando no mundo divino o seu próprio mundo humano.

3. O grande exegeta dominicano, da Escola Bíblica de Jerusalém, Francolino Gonçalves (1943-2017), chamou a atenção para não fixar o Iaveísmo apenas nas relações entre Iavé e Israel, que privilegia um povo. É um Deus anexado e confundido com essa história guerreira, um Deus que mata e manda matar, em nome dessa aliança. A própria fé na obra criadora de Iavé, que tem por quadro e horizonte o cosmos e a humanidade, teria ficado sempre subordinada às relações entre Iavé e Israel.

A primazia absoluta que se atribui à ideia de história da salvação de Israel, à custa da solicitude de Deus para com toda a criação, foi algo de contestações mais ou menos radicais, que não vou mencionar aqui.

De facto, o AT contém duas representações diferentes de Iavé, duas religiões iaveístas. Segundo uma – a dos textos sapienciais –, ele é o Deus criador que abençoa todos os seres vivos; segundo a outra, ele é o Deus que está ligado a Israel, o seu povo a quem protege e salva.

Os exegetas não prestaram a estas vozes discordantes a atenção que mereciam. A esmagadora maioria parece nem as ter ouvido. Por isso, ficaram sem eco, não tendo chegado ao conhecimento dos teólogos, dos pastores nem, por maioria de razão, do público cristão. Francolino Gonçalves confessa: as minhas pesquisas, nesta matéria, confirmaram essencialmente o resultado dos estudos a que me referi e, além disso, levaram-me a uma hipótese de interpretação do conjunto dos fenómenos religiosos do AT que é nova. Contrariamente à opinião comum, a fé na criação não é um elemento recente, mas constitui a vaga de fundo do universo religioso do AT[1].

O nosso atraso humano revela-se na capacidade louca de inventar sempre novas indústrias de guerra e violência. Nascemos, no entanto, para ajudar a construir um mundo de muitas formas de alegria. De facto, até a religião serviu e serve para a guerra. Estaremos condenados a que a paz seja apenas um breve intervalo entre guerras?

Insisto no título desta crónica: não precisamos de um Deus da guerra. O único Deus de que precisamos é o da misericórdia e da paz, o que, desde sempre, nos pergunta: que fizeste do teu irmão?

 

 

20 Março 2022



[1] Nesta crónica, servi-me de um estudo muito novo, de Francolino Gonçalves, Iavé, Deus de justiça e de bênção, Deus de amor e salvação, Cadernos ISTA, nº 22, pp.107-152. É este artigo que convém estudar na íntegra.