1. Jesus de Nazaré, filho de José e de Maria, nasceu numa história marcada pela tradição religiosa de Israel. O Evangelho de S. Mateus veio dizer-nos que ele assumiu essa tradição, mas o horizonte da sua missão tornou-se universal. Em S. Lucas, assume todo o passado da história humana e entrega aos seus discípulos a missão de evangelizar o mundo. O Deus que se revelou em Jesus não faz acepção nem de pessoas nem de povos.
A organização litúrgica dos
Domingos da Quaresma começa por falar dos humildes começos dessa história de
Israel: Meu pai era um arameu errante que desceu ao Egipto com poucas
pessoas e aí viveu como estrangeiro até se tornar uma nação grande, forte e
numerosa. Os egípcios escravizaram-nos, mas Deus libertou-os e conduziu-os
a uma terra onde corre leite e mel[i].
No 2º Domingo, vem a
história de que Deus fez, de forma estranha, uma aliança com Abraão e a sua
numerosa descendência[ii].
Neste Domingo – o 3º –, fala de Moisés, um pastor que, ao apascentar o seu
rebanho, foi surpreendido por um fogo que o espanta e o seduz: viu uma chama
ardente no meio de uma sarça que não se consumia.
Quis aproximar-se para ver o
que era aquilo, mas do meio da sarça veio uma voz: Moisés, Moisés. Ele
respondeu: aqui estou. E essa voz continuou: Não te aproximes. Tira as
sandálias porque o lugar que pisas é terra sagrada. Moisés cobriu o rosto com
receio de olhar para Deus. A mesma voz disse-lhe: Eu vi a situação miserável do
meu povo no Egipto; escutei o seu clamor provocado pelos seus opressores, desci
para o libertar das mãos dos egípcios e para o levar deste país para uma terra
boa e espaçosa, como tinha prometido. Moisés disse a Deus: vou procurar os
filhos de Israel e dizer-lhes: o Deus dos vossos pais enviou-me a vós. Mas, se
me perguntarem qual é o seu nome, que hei de dizer-lhes? Deus respondeu a
Moisés: Eu sou aquele que sou. E prosseguiu, assim falarás aos filhos de
Israel: O que se chama Eu sou enviou-me a vós. Este é o seu nome para
sempre, YHWH. Assim, me invocareis de geração em geração[iii].
Esta recomendação vai exigir muitos esclarecimentos. O nome YHWH foi
tido por particularmente sagrado e, por isso, tornou-se objecto de especial
reverência, o que levou a pronunciá-lo com precaução e, por fim, a nem o
pronunciar.
Como muitas vezes se fala de
Deus e outras vezes de Senhor, talvez valha a pena saber porque é que isto
aconteceu.
O facto de os antigos
tradutores gregos do AT não o terem transliterado parece indicar que, em fins
do séc. III a.C., ele já tinha deixado de ser pronunciado. Provavelmente era já
então substituído, na leitura, por ‘Adonãy, o correspondente de Kyrios
(Senhor), a palavra grega que os tradutores usaram para a verter.
Mais tarde, os especialistas
massoretas vocalizaram YHWH com as vogais de ‘Adonãy ou, quando os dois
estão em aposição, com as vogais de ‘elohîme (Deus). Tendo deixado de
prenunciar-se bastante cedo o nome de YHWH não se sabe com certeza absoluta
como se pronunciava. A vocalização habitual de Yahweh, que aportugueso
em Iavé, está documentada nos Padres da Igreja.
2. A
pluralidade dos nomes e dos epítetos de Iavé é, antes de mais, a
expressão e consequência da dificuldade que os seres humanos têm para conceber
Deus e para falar dele. Deus é uma realidade que nenhum conceito humano pode
abarcar, que nenhuma palavra humana pode expressar de maneira adequada. Daí a
necessidade de acumular nomes e atributos, que apontam para tal ou tal aspecto
da personalidade divina, conforme a revelam as suas obras.
As outras religiões
semíticas faziam outro tanto. É o caso da religião cananeia, a matriz das
religiões bíblicas. Fundando-se nos textos ugaríticos, alfabéticos, Aicha
Rahmouni fez uma lista de 112 epítetos dados aos diferentes deuses do panteão
de Ugarite, alguns dos quais são atribuídos, na Bíblia, a Iavé. A
questão do nome divino foi objecto de uma intensa reflexão por parte dos Padres
da Igreja. O Islão, o herdeiro mais recente da tradição bíblica, dá uma lista
de 99 nomes de Deus, muito importante na teologia e na piedade muçulmanas.
Os “retratos” bíblicos de
Deus têm os seres humanos como modelos. A fé bíblica diz que Deus criou o ser
humano à sua imagem e semelhança (Gn 1, 27). O simples bom senso mostra que o ser
humano lhe retribuiu na mesma moeda, concebendo-o à sua imagem e semelhança. Os
autores bíblicos tinham dos deuses uma concepção antropomórfica, projectando no
mundo divino o seu próprio mundo humano.
3. O
grande exegeta dominicano, da Escola Bíblica de Jerusalém, Francolino Gonçalves
(1943-2017), chamou a atenção para não fixar o Iaveísmo apenas nas
relações entre Iavé e Israel, que privilegia um povo. É um Deus anexado e
confundido com essa história guerreira, um Deus que mata e manda matar, em nome
dessa aliança. A própria fé na obra criadora de Iavé, que tem por quadro e
horizonte o cosmos e a humanidade, teria ficado sempre subordinada às relações
entre Iavé e Israel.
A primazia absoluta que se
atribui à ideia de história da salvação de Israel, à custa da solicitude de
Deus para com toda a criação, foi algo de contestações mais ou menos radicais,
que não vou mencionar aqui.
De facto, o AT contém duas
representações diferentes de Iavé, duas religiões iaveístas. Segundo uma – a
dos textos sapienciais –, ele é o Deus criador que abençoa todos os seres
vivos; segundo a outra, ele é o Deus que está ligado a Israel, o seu povo a
quem protege e salva.
O nosso atraso humano
revela-se na capacidade louca de inventar sempre novas indústrias de guerra e
violência. Nascemos, no entanto, para ajudar a construir um mundo de muitas
formas de alegria. De facto, até a religião serviu e serve para a guerra.
Estaremos condenados a que a paz seja apenas um breve intervalo entre guerras?
Insisto no título desta
crónica: não precisamos de um Deus da guerra. O único Deus de que precisamos é
o da misericórdia e da paz, o que, desde sempre, nos pergunta: que fizeste
do teu irmão?
20 Março 2022
[1] Nesta
crónica, servi-me de um estudo muito novo, de Francolino Gonçalves, Iavé,
Deus de justiça e de bênção, Deus de amor e salvação, Cadernos ISTA, nº 22,
pp.107-152. É este artigo que convém estudar na íntegra.
Sem comentários:
Enviar um comentário