segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

UMA DISTÂNCIA CARITATIVA? Frei Bento Domingues, O.P.

 

1. Comecei por não achar graça nenhuma à expressão que acabei por escolher para título desta crónica, embora de forma interrogativa. A história é simples. Recebi, como os dominicanos de todo o mundo, uma mensagem de Natal de um irmão filipino muito jovem, eleito Mestre Geral da Ordem dos Pregadores, em 2019, no Capítulo geral, realizado no Vietname, no qual também participaram dois delegados portugueses como eleitores.

O Mestre Geral chama-se Gerard Francisco Timoner III. Gostei muito da sua carta extremamente fraterna, orientada pela pergunta: Como pode haver alegria natalícia nesta época de pandemia?

Passámos a Páscoa ansiosos a lutar contra o medo. Agora, celebramos o Natal ameaçados pelo mesmo vírus, com a obrigação de nos protegermos a nós e aos outros, mantendo o que ele chama uma distância caritativa. Mas, se o Natal cristão existe como a festa da proximidade, donde poderá vir a alegria com a afirmação pública e ostensiva da distância?

 S. Paulo exorta-nos a contemplar a glória de Deus a rosto descoberto[i]. Ora, quando as celebrações eucarísticas são possíveis, a conta-gotas e com números clausus, as máscaras e as abluções tornaram-se parte da paramentaria litúrgica! As novas tecnologias passaram a ser também, em muitos casos, abençoadas alfaias do culto.

No entanto, o Natal deve continuar a ser a celebração do nascimento do Emmanuel, Deus-connosco em carne viva. Valha-nos Santo Agostinho para nos lembrar o clandestino que tão frequentemente esquecemos: Ele está mais próximo de nós do que nós de nós mesmos. Mas com que linguagem, com que gestos poderemos evocar essa intimíssima proximidade?

A expressão distância caritativa, que escolhi para título desta crónica, procura dar sentido à imposta distância social ou física. É uma expressão admirável. Para entender e sentir o seu alcance, talvez fosse preferível chamar-lhe distância amorosa. É o afecto, o amor recíproco, que exige esta distância física. Deve simbolizar uma intensificação da proximidade afectiva e as expressões criativas que a testemunhem. Doutro modo, a distância física acaba por fazer esquecer a presença real.

A bela palavra caridade (em latim, caritas e em grego, agapé) significa o amor de pura gratuidade, que é a própria realidade de Deus e do amor recíproco, quando a sua manifestação não encobre segundas intenções. Foi, no entanto, tão adulterada pela esmola humilhante da pessoa pobre que, no próprio hino da Primeira Carta aos Coríntios, usado frequentemente nas celebrações cristãs de casamento, é substituída pela palavra amor que intensifica e excede qualitativamente o amor erótico.

Nos últimos tempos, ainda antes da pandemia, a proximidade e o toque eram vistos, em certas circunstâncias, com suspeita: poderiam ser sinais de abuso ou assédio. Com a ameaça da Covid-19, converteram-se em ameaças de contágio e de risco. A malícia contaminou o toque e fez com que a proximidade seja arriscada e imprudente; a caridade táctil tornou-se tabu. Paradoxalmente, manter uma distância segura, como protecção e prevenção da transmissão viral, transformou-se em sinal sincero da nossa "proximidade" e de uma preocupação genuína pela saúde e segurança dos outros.

O Mestre Geral da Ordem dos Pregadores, perante tantos condicionamentos, alegra-se ao verificar que, por toda a parte, nestes tempos difíceis, os seus irmãos e irmãs dominicanas multiplicaram a sua pregação e as suas obras de solidariedade que tocaram e alegraram a vida e o coração dos mais aflitos.

2. Neste Domingo, continuamos a proclamar que o Natal, com todas as suas limitações, traições, dolorosas separações, loucos sofrimentos, guerras e mortes, é a grande festa da família, mesmo quando é impossível manifestá-la. É o Domingo da Sagrada Família, porque todas as famílias, na sua grande diversidade, são realidades sagradas. Deus tornou-se ser humano numa família atribulada, como tantas que conhecemos em nossos dias.

Espanta, por isso, que Jesus tenha manifestado, ao longo da sua vida, um estranho contencioso com a sua própria família e com as famílias dos seus discípulos. Porquê?

Conta o Evangelho de S. Marcos que Jesus, depois dos primeiros tempos de actuação e de ter convocado um número simbólico de seguidores, voltou para casa. Mas, de novo, a multidão era tanta que nem se podiam alimentar. Quando os seus familiares observaram tudo isto, saíram para o deter, porque diziam: enlouqueceu[ii].

S. João não esconde que os próprios irmãos de Jesus não acreditavam nele e até se divertiam a provocá-lo com piadas afrontosas sobre as suas intervenções públicas[iii].

   Voltemos, porém, a S. Marcos. Se os seus familiares julgavam que ele estava doido, os escribas, que tinham vindo de Jerusalém para estudar a sua duvidosa actividade terapêutica, sentenciaram: ele expulsa demónios porque está ao serviço do príncipe dos demónios, Beelzebu. Jesus procurou rebater esse absurdo, mas nada feito, pois continuaram: nele habita um espírito imundo.

Isto deixou a sua família ainda mais intrigada. Chegaram, então, a sua mãe e os seus irmãos e, ficando do lado de fora, mandaram-no chamar. Havia uma multidão sentada em torno dele. Disseram-lhe: A tua mãe, os teus irmãos e as tuas irmãs estão lá fora e procuram-te. Ele perguntou: quem é minha mãe e meus irmãos? E, percorrendo com o olhar os que estavam sentados ao seu redor, disse: Eis a minha mãe e os meus irmãos. Quem fizer a vontade de Deus, esse é que é meu irmão, minha irmã e minha mãe[iv].

Tocamos, aqui, na maior revolução cristã sobre a família. Não é negada a sua composição de pais, filhos, irmãos e primos ou outras combinações, segundo a diversidade de culturas. Jesus nasceu nesse quadro, mas deu-se conta de que a família é tentada a fechar-se sobre si mesma e sobre os seus interesses egoístas. O resto não conta. Jesus, pelo gesto provocatório narrado por S. Marcos, não pretende destruir a família, mas que esta se torne o espaço e o tempo em que aprendemos o mundo todo como nossa família. Quando, agora, muita gente católica, bem situada, julga que o Papa Francisco, com a Fratelli Tutti, está a ser ingénuo e simplista, de facto, está apenas, no contexto contemporâneo, a ser fiel à revolução, inaugurada e traída, de Jesus Cristo. O mundo cristão não devia aceitar o mundo que temos construído à base de uma economia anti fraterna.

3. Estamos a chegar ao fim do ano 2020 e já surgem julgamentos políticos sobre ele e prognósticos sobre as dificuldades de 2021.

Quando, numa entrevista, perguntaram a Sophia de Mello Breyner Andresen, o que gostaria de ver realizado, em Portugal neste novo século, respondeu: «Gostaria que se realizasse a justiça social, a diminuição das diferenças entre ricos e pobres. Mais justiça para os pobres e menos ambições para os ricos. O resto é-me indiferente».

Não me ocorre nada de mais adequado para 2021.

 

27. Dezembro.


[i] 2 Corintios 3,18

[ii] Mc 3, 20-21.

[iii] Jo 7, 1-24

[iv] Mc 3, 31-35

quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

UASP - Saudação de Natal do Presidente



"Então, porque celebramos o nascimento de Jesus a 25 de Dezembro? A escolha deste dia é resposta à decisão do imperador Aureliano que, no ano 274, estendeu a festa do “Nascimento do Sol Invicto” da cidade de Roma a todo o Império, procurando assim contribuir para a sua coesão e paz, seriamente ameaçadas. Esta celebração do deus Sol assinalava a vitória da luz sobre as trevas. De facto, desde o Solstício de Verão até ao de Inverno, a noites vão sempre crescendo; por isso, na inversão do ciclo, os romanos festejavam a vitória da luz sobre as trevas, pois até ao Solstício de Verão, as noites vão sempre diminuindo". (Continua) VER MAIS

Por P. Armindo Janeiro, presidente da Direcção

www.uasp.pt | Faceboock.com/uasp

 

terça-feira, 22 de dezembro de 2020

LABORATÓRIO DA FÉ - Diário do Minho de 22/12

 A NOITE QUE É AMANHECER - A noite de Natal simboliza tudo o que é mais formoso e desejável: inocência, carinho, bondade, amabilidade, ternura, sorriso, alegria, vida, futuro e eternidade. Tudo isto se faz presente no nascimento de um Menino. O Menino tem Deus no mais profundo do seu ser. A sua essência é ser de Deus. Desde essa noite, a bondade, a amabilidade, a alegria e a vida humana estão impregnadas de eternidade. O passado, o presente e o futuro deste Menino é o passado de todos os humanos (vimos de Deus), o presente de cada um de nós (estamos em Deus) e o nosso futuro (somos feitos para Deus e Deus é a meta e o sentido da nossa vida). A noite de Natal recapitula os desejos de paz e de entendimento que habitam em cada ser humano, os desejos que as circunstâncias quotidianas corrompem com demasiada frequência. A paz fundada na inocência, no olhar o outro sem ressentimentos, com uma confiança espontânea. A paz que é fruto do amor. O entendimento que se baseia na necessidade que todos temos do outro, como uma criança que precisa dos outros para nascer, sustentar a existência e crescer em harmonia. Precisa deles, estende os braços para acolher e ser acolhida. A noite de Natal une o humano com o divino, une o divino com o humano. Numa só pessoa. Ao unir o divino com o humano, une-nos uns aos outros. Ao fazer-se carne, Deus diz-nos que a nossa condição humana é dom maravilhoso. A humanidade de Deus ensina que o divino está ao nosso alcance, e sobretudo que somos capazes de amar, somos feitos para o amor. Humano não é o ódio ou a rejeição, mas o acolhimento e o encontro, o amor e a fraternidade. A noite de Natal é amanhecer, nela tudo aponta para o Sol que vem «iluminar os que vivem nas trevas e na sombra da morte e dirigir os nossos passos no caminho da paz» (Lucas 1, 79). Deus revela o rosto oculto do seu ser: graça, amor, misericórdia, comunhão. Por isso, nesta noite importa proclamar que o mais urgente, o mais necessário é conhecer e dar a conhecer o verdadeiro Deus, a Palavra que se pronuncia Jesus Cristo. Este é o único nome que nos pode salvar; o nome que, mesmo sem o saber, todos procuramos; o nome que nos dá o sentido da vida. 

segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

VOTOS DE UM SANTO NATAL

 Caros Colegas e amigos

Aproxima-se o  NATAL daquele Menino que tanta felicidade  nos deu na nossa adolescência quando nos afadigávamos na construção dos monumentais presépios, no ensaio dos cânticos sublimes ,na preparação das cerimónias espectaculares... que eram o encanto de tanta gente que tiveram a oportunidade de connosco viver esses momentos. Hoje , confinados à "solidão" das nossas casas, apavorados com o "inimigo" que passa nas ruas, sinto a nostalgia desses tempos derramando uma lágrima de saudade em recordação por todos os Antigos Alunos. Deixo-vos, porém, uma palavra de conforto de um desses Antigos Alunos que todos nós muito prezamos e admiramos.

""...Entramos hoje ( Dia 15 )  na Novena de Natal. Por um lado, sinto a necessidade de comunicar com os amigos, de dizer uma palavra após este isolamento e jejum de comunicação a que a pandemia nos obrigou. Mas, por outro lado, não sei bem como o fazer, sinto dificuldade em quebrar o silêncio e juntar as palavras. A pandemia fez-nos experimentar quão insuficientes são as palavras que podemos dizer para trazer conforto e comunhão, para oferecer alguma réstia de luz e alegria.

Sim, no Natal falamos de Esperança e Alegria, pela vinda de Jesus, na celebração do Seu nascimento em Belém. E precisamos tanto de esperança e alegria, atormentados e desconcertados como estamos pela perda de vidas e pelas mortes injustas dos nossos amigos e companheiros. Nós combonianos em Itália, em pouco menos de duas semanas recentes, perdemos quinze, nem todos tão velhos como isso e todos com direito a uma velhice tranquila. E, aqui em Roma, perdemos o sorriso e a bela presença do superior da comunidade, o P. Celestino, que não conseguiu sobreviver a um mês de luta contra o vírus no hospital. Durante a sua luta, acompanhámo-lo na esperança de que o Senhor da Vida o devolvesse ao nosso convívio; em vez disso, Ele acolheu-o no convívio eterno. Ao Seu amor e misericórdia o confiamos.

Quando soubemos que a saúde do Padre Celestino tinha piorado e que só as máquinas o mantinham vivo, estávamos na Missa e cantávamos o cântico "Tu és fogo vivo". O versículo, que o solista cantava, dizia: "Tu és o esposo ardente que regressa à noite, do meu dia tu és o abraço. Eis, já exultante de eterna alegria este dia de suspiros. Se contigo, como queres, sou consumido pelo amor, estou em paz".

Sim, este tempo incerto e suspenso ainda é tempo de falar alegria e de paz, de esperança. Ou melhor, deixar que Deus nos fale, já que as nossas palavras não sabem como o fazer.

Por isso, termino com algumas palavras do conhecido poema de Charles Péguy (O pórtico do mistério da segunda virtude, a esperança), que um amigo me enviou, e que eu partilho aqui na esperança de que este Natal nos traga a luz e a alegria que nos curam interiormente.

«... a esperança, diz Deus, eis o que me surpreende! A mim mesmo. Isto é espantoso. Que esses pobres filhos vejam como estão as coisas e acreditem que amanhã

será melhor. Isto é espantoso e é realmente a maior maravilha da nossa graça. E eu próprio estou espantado com isso [diz Deus].

A fé é uma Noiva fiel. A caridade é uma Mãe. A esperança é uma criança insignificante. Que veio ao mundo no dia de Natal … E, no entanto, é esta criança que atravessará os mundos. Esta pequena criança que nada vale. Ela sozinha, carregando as outras, atravessará os mundos fechados.

Como a estrela guiou os três reis desde as profundezas do Oriente. Até ao berço do meu filho. Assim, uma chama trémula. Só ela guiará as Virtudes e os Mundos. Uma chama brotará da escuridão eterna"...

Feliz Natal, com a minha recordação de amizade e oração.

P. Manuel Augusto""

Um SANTO NATAL para todos em meu nome e em nome da Associação dos Antigos Alunos Combonianos

António Joaquim Pinheiro

domingo, 20 de dezembro de 2020

DEUS NÃO PRECISA DE UM TEMPLO Frei Bento Domingues, O.P.

 

1. Calcula-se que o turismo religioso movimenta por ano, a nível mundial, entre 300 a 330 milhões de pessoas à procura de locais considerados sagrados e, sobretudo, daqueles que se tornaram mais significativos para a religião que cada um professa. São os templos monumentais ou santuários que nasceram de visões ou acontecimentos ditos milagrosos que atraem mais peregrinos.

Paulo Mendes Pinto deu a conhecer uma nova versão do fenómeno inter-religioso muito original e, ao que parece, único no mundo. Excede a pura curiosidade turística, mas com virtualidades que importa conhecer e estudar.

No dia 11 de Setembro de 2016, quando passavam 15 anos, sobre os atentados de 2001, a Fundação ADFP, de Miranda do Corvo, inaugurou um equipamento que procura ser uma peça dinâmica e significativa na criação de pontes entre as religiões e na difusão de uma cultura de paz, um lugar onde todos são acolhidos, tratados como iguais, num ambiente onde o conhecimento e a quebra e abandono de todos os preconceitos é a única regra. É o Templo Ecuménico Universalista.

No Google, existe uma reportagem pormenorizada e muito ilustrada da significação das construções minimalistas dessa realização, no cume da serra da Lousã.

É uma bela ideia. Reunir pessoas de culturas e religiões diferentes, convocadas para viverem e exprimirem umas às outras as misteriosas fontes de paz, pode tornar-se mais um caminho de esperança, num mundo mergulhado em violências e guerras de todo o género.

2. Aproxima-se o Natal. Celebra o nascimento de Jesus Cristo, uma pessoa que, pelo que viveu, fez e disse, testemunhou para sempre que o mais importante, em qualquer vida humana e seja onde for, é o cuidado com quem mais precisa de manifestações de acolhimento afectuoso e de ajuda. A sua família é constituída por quem consente no processo de conversão à fraternidade ilimitada: fratelli tutti, como repete o Papa Francisco.

  A escolha do dia 25 de Dezembro para celebrar o nascimento de Jesus não obedeceu a critérios históricos, mas a razões de celebração da originalidade da fé cristã, no contexto das festas pagãs ao deus sol invictus, do Império Romano. O verdadeiro Sol invencível da vida verdadeira é Cristo que enfrentou uma morte infame e a venceu. É ele o sol da esperança.

 O primeiro Presépio do mundo foi obra da imaginação poética de Francisco de Assis, em 1223, em Itália. Teve depois, muitas recriações originais. Não me refiro ao Pai-Natal porque não sou apreciador de Coca-Cola.

Neste Domingo que antecede o Natal, somos acompanhados por uma narrativa bíblica na qual o rei David parece sentir-se mal a viver num palácio de cedro, enquanto a Arca de Deus continua abrigada numa tenda[i]. Deus manifestou ao profeta Natã que não está nada interessado num palácio de iniciativa do rei David. Sentia-se bem a viver em tenda na companhia do povo. Será Salomão a construir o glorioso Templo de Jerusalém.

O Novo Testamento – escrito vários anos depois dos acontecimentos narrados – não mostra nenhuma devoção pela religião do templo, luxuosamente reconstruído por Herodes e destruído nos anos 70.

 No diálogo com a samaritana[ii], Jesus diz que «chegou o tempo em que nem neste monte [Garizim] nem em Jerusalém adorareis o Pai. (…) Vem a hora – e é agora – em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e verdade; pois tais são os adoradores que o Pai procura. Deus é espírito e aqueles que o adoram devem adorá-lo em espírito e verdade».

Segundo o Evangelho de João, Jesus mostrou-se verdadeiramente indignado com a religião do Templo, transformada numa organização comercial, como ainda acontece em muitos santuários.

Ao querer impedir, de forma drástica essa situação, é interrogado: com que autoridade procedes assim? A resposta é dupla. Por um lado, o templo só tem sentido como lugar de oração e não de negócios; por outro, desafia-os de forma simbólica e provocatória: «destruí este templo e em três dias o levantarei».

 Referia-se ao seu próprio corpo. Aproximava-se a sua condenação à morte que não terá a última palavra sobre a sua vida. Mas de quem recebeu Jesus esse corpo mortal destinado à ressurreição? Por aí, entramos no Natal.

3. S. Lucas não era um biólogo. Não se lhe deve pedir um tratado de biologia quando fala da intervenção do Espírito Santo na gestação humana de Deus. É apenas um competente praticante de teologia narrativa. A humanização de Deus aconteceu, como a de qualquer ser humano, num processo que dura aproximadamente 9 meses, no corpo de uma mulher, templo de Deus.

Nenhum ser humano nasce pronto para a vida. Demora anos a tornar-se alguém independente com um projecto próprio. Este, para além da herança genética, depende da formação recebida e das circunstâncias familiares, sociais, económicas e políticas do mundo onde lhe for possível desenvolver-se. Foi também o que aconteceu com Jesus.

O Evangelho segundo S. Marcos não se interessou nada com a infância e a adolescência de Jesus, mas com o seu projecto. O mesmo aconteceu com S. João. S. Mateus e S. Lucas, embora de forma diferente, interessaram-se pela significação do seu nascimento. Quem se tinha mostrado, na vida adulta, como incarnação de um projecto inédito de Deus ser Deus e do ser humano ser humano, não podia ser fruto do acaso. Construíram aquilo que se chama Evangelhos da Infância. São belas e profundas construções teológicas que transpõem para a infância as manifestações de uma rara vida adulta.

S. Paulo, dirigindo-se aos cristãos, precedeu estas narrativas com uma proposta muito ousada e muito esquecida[iii]: Não sabeis que sois o templo de Deus e que o Espírito de Deus habita em vós?

Deus pode ter casa posta no coração de qualquer ser humano. Este pode não O reconhecer, mas é sempre imagem de Deus, reconhecida ou atraiçoada.

Não podemos obrigar ninguém a reconhecer estas convicções, mas na interpretação cristã, o amor de Deus por nós não depende do nosso amor por ele. A vida humana, por ser humana, é reconhecida por Deus como a sua tenda. O mais belo nome de Jesus é Emmanuel, Deus-connosco[iv].

O arquitecto João Alves da Cunha tem procurado dar a conhecer a história do Movimento de Renovação da Arte Religiosa (MRAR), desde a década de 1950. Procura-se, agora, uma arquitectura pobre para uma Igreja pobre, norteada por um cristianismo repensado como movimento para as periferias, para que sejam elas o centro da missão da Igreja. É neste horizonte que são acolhidas as propostas eclesiológicas e pastorais, abertas por João XXIII, pelo Vaticano II e retomadas de forma original pelo Papa Francisco. 

Não se procura um templo para Deus, mas uma casa que reúna a comunidade cristã aberta ao mundo, para que não se esqueça do verdadeiro Natal, Deus-connosco, Deus com os pobres e abandonados pelo nosso egoísmo, pelas desigualdades aberrantes entre os seres humanos, nossos irmãos.

Boas Festas!

20. Dezembro. 2020

 



[i] 2Sm 7, 1-16

[ii] Jo 4, 19-24

[iii] 1Cor 3, 16-23

[iv] Mt 1, 18-25. v. 23

domingo, 13 de dezembro de 2020

TUDO POR CAUSA DA ALEGRIA Frei Bento Domingues, O.P.

 

1. O que já podemos saber é que nós ignoramos o que é o ser humano. Pelo pouco que conhecemos do nosso passado, pelo turbilhão do presente e pela incerteza acerca do futuro, verificamos que somos um programa tão aberto que nunca poderá oferecer garantias de que dê sempre certo. Quando repetimos que somos essencialmente desejo, também sabemos que há bons e maus desejos.

Através dos nossos labirintos interiores, das contradições sociais e culturais e da anarquia louca dos nossos apetites, de forma consciente ou inconsciente, somos, apesar de tudo, desejo de plenitude. Muitas vezes criminosamente atraiçoado.

É, na segunda parte da Suma de Teologia, que Tomás de Aquino elabora a sua minuciosa ética teológica. É servida pela reelaboração da ética filosófica aristotélica, com banhos de Santo Agostinho e de outros Padres da Igreja. Importa-me realçar, para o objectivo desta crónica, que essa longa construção é precedida de cinco questões dedicadas, exclusivamente, à investigação das exigências e dos obstáculos para aceder à felicidade perfeita[1]. As evangélicas bem-aventuranças anunciam as condições para atingir essa plenitude. Os trabalhos e os gemidos da história humana, para alcançar novos céus e nova terra, são todos por causa da alegria.

S. Paulo sublinhou esta situação de modo dramático: «Bem sabemos como toda a criação geme e sofre as dores de parto até ao presente. Não só ela. Também nós, que possuímos as primícias do Espírito, nós próprios gememos no nosso íntimo, aguardando a adopção filial, a libertação do nosso corpo»[2].  

Como crescemos no tempo, vivemos no reino da imperfeição, da “alegria breve”, como diz Virgílio Ferreira. No mesmo dia, podemos passar da alegria à tristeza e do medo à esperança[3].

 Para Fernando Pessoa, segundo os Textos de Crítica e de Intervenção, «só Deus, e a alma, que ele criou e se lhe assemelha, são a perfeição e a verdadeira vida. Este é o ideal que poderemos chamar cristão, não só porque é o cristianismo a religião que mais perfeitamente o definiu, mas também porque é aquela que mais perfeitamente o definiu para nós».

Este texto obriga-me a regressar a S. Paulo: «Estou convencido de que nem a morte nem a vida, nem os anjos nem os principados, nem o presente nem o futuro, nem as potestades, nem a altura, nem o abismo, nem qualquer outra criatura poderá separar-nos do amor que Deus nos tem, em Cristo Jesus, Senhor nosso»[4].

O ser humano é radicalmente peregrino. No esquema neoplatónico da Suma de Tomás de Aquino, de Deus saímos por sua pura graça e a Deus regressamos, através da livre actividade humana aberta à graça do Espírito de Cristo. Por isso, podemos dizer que caminhamos no caminho, na verdade e na vida que Ele próprio é.

2. A encenação da liturgia cristã do Advento tem muitas modelações. Algumas verdadeiramente delirantes. No primeiro dia deste mês, recorreu a um texto de Isaías, que transforma todos os animais carnívoros em vegetarianos, os mais violentos em espelhos de paz e reconciliação. Os pobres vão ter uma oportunidade de justiça e não haverá tiranos.

O melhor é dar a palavra ao profeta: «Brotará um rebento do tronco de Jessé e um renovo brotará das suas raízes. Sobre ele repousará o espírito do Senhor: espírito de sabedoria e de entendimento, espírito de conselho e de fortaleza, espírito de ciência e de temor do Senhor. Não julgará pelas aparências nem proferirá sentenças somente pelo que ouvir dizer; mas julgará os pobres com justiça e com equidade os humildes da terra; ferirá os tiranos com os decretos da sua boca e os maus com o sopro dos seus lábios. A justiça será o cinto dos seus rins e a lealdade circundará os seus flancos. Então, o lobo habitará com o cordeiro e o leopardo deitar-se-á ao lado do cabrito; o novilho e o leão comerão juntos e um menino os conduzirá. A vaca pastará com o urso e as suas crias repousarão juntas; o leão comerá palha como o boi. A criancinha brincará na toca da víbora e o menino desmamado meterá a mão na toca da serpente. Não haverá dano nem destruição em todo o meu santo monte, porque a terra está cheia de conhecimento do Senhor, tal como as águas que cobrem a vastidão do mar»[5].

Como sempre também aqui, o Novo Testamento é uma releitura e reinterpretação cristã do Antigo. O rebento que brotou do tronco de Jessé é o próprio Jesus Cristo que corrigiu os seus discípulos enviados em missão.

Eles regressaram tão entusiasmados, com o êxito conseguido, que parecia que estavam já a inaugurar a igreja triunfalista: tinham tudo e todos na mão. O Mestre concede que correu tudo muito bem, mas não os deixa nessas miragens ambíguas: «não vos alegreis porque os espíritos vos obedecem; alegrai-vos, antes, porque os vossos nomes estão inscritos no Céu».

Sabemos que o uso da palavra céu servia para não banalizar a palavra Deus (Iavé). O que Jesus, de facto, diz aos discípulos é que a vida deles está no coração de Deus, não como algo exclusivo.

S. Lucas acrescenta que foi, nesse mesmo instante, que Jesus estremeceu de alegria sob a acção do Espírito Santo e disse: «Bendigo-te, ó Pai, Senhor do Céu e da Terra, porque escondeste estas coisas aos sábios e aos inteligentes e as revelaste aos pequeninos. Sim, Pai, porque assim foi do teu agrado. Tudo me foi entregue por meu Pai; e ninguém conhece quem é o Filho senão o Pai, nem quem é o Pai senão o Filho e aquele a quem o Filho houver por bem revelar-lho. Voltando-se, depois, para os discípulos, disse-lhes em particular: Felizes os olhos que vêem o que estais a ver. Porque – digo-vos – muitos profetas e reis quiseram ver o que vedes e não o viram, ouvir o que ouvis e não o ouviram!»[6].

3. Esse trecho é uma referência fundamental na mensagem crítica de Jesus. Quem é que estava a ocultar, ao povo simples, o essencial das Escrituras? Era a exegese dos doutores da Lei, apresentados como tendo o segredo da interpretação verdadeira da palavra de Deus. Faziam-no com tantas subtilezas e distinções que, em vez de revelar, escondiam, para seu interesse, a vontade libertadora de Deus.

Jesus estremece de alegria porque, finalmente, pode acabar com esse tipo de hipocrisia, que durou séculos, e que muitos desejaram libertar-se dessa opressão sem o conseguirem.

Um legista – especialista das aplicações da Lei – procurou atrapalhar o Jesus da nova era com uma pergunta: Mestre, que farei para herdar a vida eterna? Jesus devolve a pergunta ao doutor: que está escrito na Lei? E ele responde bem: amar a Deus e ao próximo. Jesus observa-lhe: faz isso e viverás. Mas ele, querendo justificar a pergunta feita, disse a Jesus: E quem é o meu próximo? Jesus não se perturbou, contou-lhe a famosa parábola da ética samaritana, uma crítica radical da opressiva religião do Templo[7].

Tudo, no Cristianismo, é por causa da alegria. Quando assim não for, atraiçoamos o seu Espírito. Viva o Domingo da alegria!

 

 

13. Dezembro. 2020



[1] STH,  I-II q. 1-5

[2] Rm 8, 22-23

[3] STH,  I-II q. 25, a. 4

[4] Rm 8, 38-39

[5] Is, 11, 1-10

[6] Lc 10, 20-24

[7] Lc 10, 25-37

domingo, 6 de dezembro de 2020

É URGENTE E É POSSÍVEL MUDAR Frei Bento Domingues, O.P.

 

1. Segundo um conhecido conto judaico, um rabino fez a Deus o seguinte pedido: ”Deixa-me ir dar uma vista de olhos pelo céu e pelo inferno”. O pedido foi aceite e Deus enviou-lhe, como guia, o profeta Elias.

O profeta levou o rabino a uma grande sala. No centro ardia um fogo que aquecia uma panela enorme, com um guisado que enchia o ambiente com o seu aroma.

À volta estava toda a gente pronta a servir-se, com uma grande colher na mão. Apesar disso, viam-se as pessoas esfomeadas, macilentas, sem forças, a cair.

As colheres eram mais compridas do que os seus braços, de tal modo que não as conseguiam levar à boca. As pessoas estavam tristes, desejosas e em silêncio, de olhar perdido.

O rabino, espantado e comovido, pediu para sair desse lugar espectral. De inferno já tinha visto o suficiente.

O profeta levou-o então a outra sala. Ou talvez fosse a mesma. Tudo parecia exactamente igual: a panela ao lume, com apetitosas iguarias, a gente à volta com grandes colheres na mão. Via-se que estavam todas a comer com gosto, alegres, com saúde, cheias de vida. A conversa e as gargalhadas enchiam a sala. Isto tinha que ser o paraíso! Mas, como é que se tinha conseguido uma tal transformação?

  As pessoas tinham-se voltado umas para as outras e usavam a enorme colher para levar comida a quem estava à sua frente, procurando que a outra ficasse satisfeita e assim acabavam por ficar todas bem!

Mesmo quem acha piada a este conto observa que não se lhe deve pedir demasiado: reproduz uma concepção demasiado simplista, sem interesse num mundo espantosamente complexo. As boas parábolas são paradoxais, enigmáticas e de inesgotáveis leituras.

Nem sempre. Este conto não se apresenta como uma teoria económica, financeira, jurídica para a organização da sociedade ou do Estado. Gosto do seu humor e da sua aparente ingenuidade. Não está nada longe da antropologia e da ética do filósofo alemão, Jürgen Habermas, ao mostrar que a vida do ser humano só se realiza na interacção com os outros[1].

O “inferno” em que transformámos o nosso planeta não é um destino fatal: poucos com a posse e a dominação devastadora de quase tudo e a grande maioria da humanidade com quase nada. É uma situação absurda. O destino universal dos bens faz parte da Doutrina Social da Igreja. Se fosse praticado, podia fazer deste mundo um paraíso do qual nos continuamos a expulsar. Existem, hoje, recursos científicos e técnicos para corrigir erros de um passado não muito longínquo. Como são mantidas e desenvolvidas as ambições que provocam guerras e devastações de toda a ordem, alimentamos, na opinião pública, a convicção de que não existem alternativas.

2. O Papa Francisco sonha com os olhos abertos. Sabe que não é, apenas, com as suas Exortações Apostólicas, Encíclicas, Discursos, Encontros ecuménicos e inter-religiosos, Declarações e Entrevistas, que pode suscitar mudanças de rumo de cuja urgência não desiste[2].

Com a sua linguagem nova e a problematização de falsas evidências, tem procurado mostrar que a Igreja deve ajudar a repensar tudo. Mas é especialmente com os seus gestos e atitudes, perante situações que parecem becos sem saída, que ele insiste, com os seus irmãos no episcopado e com toda a Igreja – crianças, adolescentes, jovens e adultos – que são possíveis mudanças que provoquem um sobressalto na sociedade.

 Pode parecer ingenuidade. Mas ele não esquece que as parábolas de Cristo, trabalhadas por quem redigiu as quatro narrativas do Evangelho, não são triunfalistas. Por exemplo, a parábola do fermento e a do grão de mostarda procuram não desencorajar as iniciativas que não se apresentam como êxitos imediatos, vistosos, convincentes.

No seu escrito mais recente[3], ele próprio pergunta: «Ainda poderemos acreditar na possibilidade de um mundo novo, mais justo e fraterno? Poderá esperar-se, verdadeiramente, uma transformação das sociedades em que vivemos, onde não seja a lei do deus dinheiro a dominar, mas o respeito pela pessoa, numa lógica de gratuidade? Teremos de assumir que o mundo é imodificável, com as suas injustiças que «gritam vingança na presença de Deus»? E a nós, homens de Igreja, resta-nos apenas a tarefa de pregar, com passiva resignação ou enunciar, como repetitiva obrigação, princípios tão verdadeiros quanto abstractos?

«No entanto, nenhuma mente honesta pode negar a força transformadora do cristianismo no devir da história. Todas as vezes que a vida cristã se difundiu na sociedade, de maneira autêntica e livre, deixou sempre um traço de humanidade nova no mundo. Desde os primeiros séculos».

O lançamento da Economia de Francesco pretende reatar essa tradição dos começos cristãos, pois o escândalo das evidentes desigualdades entre ricos e pobres – quer se trate de desigualdades entre países ricos e países pobres ou de desigualdades entre classes sociais no âmbito do mesmo território nacional – não é tolerável.

O Papa sabe que essa iniciativa é apenas um pouco de fermento, uma pequeníssima semente. Não é o mundo transformado. Na história humana, as grandes transformações não começaram pelo fim. Este é o primeiro desejado e o último conseguido.

3. Ao chegar a este ponto, recebi a notícia da morte de Eduardo Lourenço, um grande amigo de há muitos anos. Ajudou-nos a não repousar em certezas proclamadas de autores consagrados. A sua provocação cultural e cívica exige, não só estudiosos da sua obra, mas pessoas desafiadas a irem sempre mais longe e em muitas direcções. Provocou o catolicismo em que cresceu, até aos primeiros anos da Universidade de Coimbra, onde frequentou o C.A.D.C. e cuja Teologia apologética o desgostou.

O próprio Eduardo Lourenço explicou, muitas vezes e de muitos modos, o sentido da sua Heterodoxia (I e II). Acompanhou-o sempre a insepulta nostalgia de Deus[4]. Para ele, o Cristianismo não é uma religião. Mas a exigência “religiosa” específica do Cristianismo é a crítica radical do Poder pelo amor dos outros e, mais radicalmente, crítica de um Deus-Poder[5]. Para ele, «Cristo é o momento (sem limite de tempo) em que a humanidade tomou forma humana. (…) Foi crucificado não por querer ser deus, mas por ensinar o que era ser homem. Dois mil anos passaram sem que esquecêssemos nem aprendêssemos a lição»[6].

É preciso estudar o seu legado teológico, disperso por muitos lugares, para entender o que era e é a sua referência cristã. Precisamos deste cristão.

 

06. Dezembro. 2020



[1] Cf. Jürgen Habermas, O Futuro da Natureza Humana, Almedina, 2006, p. 77

[2] Exortações Apostólicas: Evangelli Gaudium (2013), Amoris laetitia (2016), Gaudete et exsultate (2018), Christus vivit (2019), Querida Amazónia (2020); Encíclicas: Laudato Si’ (2015), Fratelli tutti (2020)

[3] Cf. Il Cielo sulla Terra, Editrice Vaticana, 2020. Cf. Pastoral da Cultura, 24.11.2020

[4] Cf. Eduardo Lourenço, Heterodoxia II, Gradiva2006, p.47

[5] Cf. Eduardo Lourenço, Religião – Religiões – Laicidade, in Seminário Internacional Europa e Cultura 1998, Gulbenkian, pp. 71-78

[6] E. Lourenço, in Opção nº 97, Março 1978, 2-8.