quinta-feira, 28 de novembro de 2024

O milagre da esperança - P.e Manuel João, MC

 O milagre da esperança

 

Ano C – Advento – 1º Domingo

Lucas 21,25-28.34-36: “Vigiai e orai em todo o tempo”

Com o primeiro domingo do Advento, inicia-se o ano litúrgico “C”, durante o qual teremos como guia o evangelista Lucas. Ao longo de cerca de doze meses, reviveremos os mistérios da vida do Senhor. Se o ano civil é marcado por ritmos e eventos específicos, o do cristão é pontuado pelos mistérios da vida de Cristo, que dão profundidade e sentido à sua história. Enquanto o ano civil tem uma direção predominantemente circular, caracterizada pela repetição, o do cristão assume uma forma em espiral: não se repete, mas convida a um aprofundamento progressivo. Um novo ano traz-nos a graça de novos começos e a possibilidade de retomar a vida com um renovado entusiasmo.

Cada ciclo litúrgico começa com o tempo do Advento. Advento, do latim Adventus, significa "vinda", a vinda de Cristo. Mas de que vinda se trata? Espontaneamente pensamos na do Natal, pois preparamo-nos para celebrar a memória do nascimento de Jesus. Contudo, o novo ano litúrgico conecta-se ao ponto final do anterior: o anúncio do regresso do Senhor como Rei do universo, Juiz da humanidade e Ômega da história. Por isso, no evangelho de hoje, ouvimos a conclusão do discurso escatológico de Jesus segundo o Evangelho de Lucas: “Então, hão-de ver o Filho do homem vir numa nuvem, com grande poder e glória”. Este mesmo trecho foi proclamado no Evangelho de Marcos há duas semanas e hoje é apresentado na versão de Lucas.

O Advento remete, antes de mais, para a atitude do cristão voltado para o futuro. Deus vem do futuro! Um futuro que não devemos temer, mas desejar, porque não representa o fim, mas o cumprimento da nossa vida e a realização das promessas divinas: “Quando estas coisas começarem a acontecer, erguei-vos e levantai a cabeça, porque a vossa libertação está próxima”. No primeiro domingo do Advento continua, assim, a ressoar a última invocação da Igreja, que aguarda o seu Esposo: “Marána tha! Vem, Senhor” (Apocalipse 22,20).

O Advento está estruturado em quatro domingos que nos conduzem ao Natal. É o segundo dos chamados "tempos fortes", como a Quaresma que prepara a Páscoa. Os quatro domingos do Advento evocam simbolicamente os 40 dias da Quaresma. Contudo, entre Advento e Quaresma existe uma grande diferença: enquanto no tempo quaresmal prevalece uma dimensão penitencial, no Advento domina a alegre expectativa.

O cristão vive no "entretanto", entre duas vindas: a de Cristo na carne e o seu regresso na glória. No entanto, neste "entretanto" há também uma terceira vinda, que se manifesta no presente. Como afirma São Bernardo num célebre sermão sobre o Advento: “Conhecemos uma tríplice vinda do Senhor. Uma vinda oculta situa-se, de facto, entre as outras duas que são manifestas. (…) Oculta é, porém, a vinda intermédia, em que só os eleitos a veem dentro de si mesmos e as suas almas são salvas por ela. Na primeira vinda, pois, ele veio na fraqueza da carne; nesta intermédia, vem no poder do Espírito; na última, virá na majestade da glória. Assim, esta vinda intermédia é, por assim dizer, um caminho que une a primeira à última”.

Pontos de reflexão

“Tende cuidado convosco!”: a trombeta do Advento
“Tende cuidado convosco, não suceda que os vossos corações se tornem pesados pela intemperança, a embriaguez e as preocupações da vida, e esse dia não vos surpreenda subitamente como uma armadilha”. Quão forte e atual é este aviso de Jesus! É como uma trombeta que tenta despertar as nossas consciências, frequentemente adormecidas, se não mesmo anestesiadas. Quantos de nós estamos realmente conscientes de que esta é a situação em que vivemos, deliberadamente procurada por poderes – não tão ocultos assim – que manipulam o destino do mundo? Querem manter-nos adormecidos, incapazes de olhar na direção em que caminhamos e indiferentes à injustiça reinante. Hoje, quem está desperto e livre é frequentemente considerado uma “ameaça”. Pois bem, a Palavra de Deus, neste tempo de Advento, é a trombeta que quer despertar-nos antes que seja tarde demais!

“Portanto, vigiai e orai em todo o tempo!”: o despertador do Advento
Manter-se desperto não é fácil. É fácil deixarmo-nos apanhar pelo sono ou pelo torpor. Para permanecer vigilante, Jesus recomenda-nos orar em todo o momento. A oração desperta-nos e aguça os nossos sentidos, tornando-nos prontos para reconhecer a vinda do Senhor, que nos visita de formas sempre novas e frequentemente inesperadas. O Advento convida-nos a reprogramar o “despertador” da oração. Isto não significa necessariamente aumentar o tempo dedicado à oração, mas antes aprender a “viver em oração”. Como fazer isso? Um modo muito simples é repetir frequentemente a invocação “Marána tha” – Vem, Senhor! – até que estas palavras ressoem constantemente entre as paredes do nosso coração.

O Advento e o milagre da esperança
A oração do Advento alimenta sobretudo a esperança. Esperar, na situação em que estamos hoje imersos, é um verdadeiro milagre. Só a oração pode obter esta graça. De facto, como é possível esperar diante de um mundo que frequentemente parece como o vale cheio de ossos secos descrito por Ezequiel? (Ez 37). Aquela que era a imagem do povo de Deus de então pode ser hoje a nossa realidade. “Eis que vão dizendo: ‘Os nossos ossos estão ressequidos, a nossa esperança desapareceu, estamos perdidos!’” Deus pergunta ao profeta: “Poderão estes ossos reviver?” Sim, é possível: “Profetiza sobre estes ossos e anuncia-lhes: ‘Ossos ressequidos, ouvi a palavra do Senhor.’”

O profeta é Cristo que vem, mas também o é cada cristão por vocação. Eis a graça a pedir no Advento: despertar e difundir a esperança.

P. Manuel João Pereira Correia, mccj

p.mjoao@gmail.com
https://comboni2000.org

 

terça-feira, 26 de novembro de 2024

O Homem: questão para si mesmo. As vítimas inocentes Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia 24 Novembro 2024

 O Homem: questão para si mesmo.

As vítimas inocentes
Anselmo Borges

Padre e professor de Filosofia

24 Novembro 2024

Quando olhamos para os horrores do mundo hoje, concretamente para a Ucrânia e o Médio
Oriente, é o horror pura e simplesmente, pensando concretamente nas vítimas inocentes. Mas
não foi sempre assim? Veja-se Auschwitz. A gente vai lá e fica estarrecido. Bento XVI foi lá
também e deixou estas palavras: Há “um silêncio que é um grito interior para Deus: Por que te
calaste? Por que quiseste tolerar tudo isto? Onde estava Deus nesses dias? Por que se calou?”

Ele deixou uma encíclica sobre a esperança - Spe salvi -, e nela debruça-se sobre uma pergunta
decisiva, “a pergunta fundamental da Filosofia” (Max Horkheimer) : o que podem esperar as
incontáveis vítimas inocentes da História? Quem lhes fará justiça? Elas clamam, um grito
ensurdecedor percorre a História.

E ergue-se um ateísmo moral precisamente por causa das injustiças do mundo e da História .
“Um mundo no qual há tanta injustiça, tanto sofrimento dos inocentes e tanto cinismo do poder,
não pode ser obra de um Deus bom.” Quase se poderia dizer que se é ateu ad majorem Dei
gloriam, para a maior glória de Deus, como se, perante o horror do mundo, a justificação de
Deus fosse não existir. É-se ateu por causa de Deus.

Afastado Deus, deve ser o Homem a estabelecer a Justiça no mundo. Mas não será esta uma
pretensão arrogante e intrinsecamente falsa? Quem não ouve o eco das palavras de Sófocles: Na
terra “há muita coisa terrível, mas nada existe mais terrível do que o Homem”. Tem, pois, razão
Bento XVI, ao acrescentar: “Um mundo que tem de criar a sua Justiça por si mesmo é um mundo
sem esperança. Ninguém, nem nada responde pelo sofrimento dos séculos.”

Aqui, ele lembra a Escola de Frankfurt, nomeadamente Max Horkheimer e Theodor Adorno, que
viveram filosoficamente a inconsolável “tristeza metafísica” da impossibilidade de fazer justiça
às vítimas da História. De facto, mesmo supondo, no quadro do marxismo e da ideia do
progresso moderno, que algum dia fosse possível erguer uma sociedade finalmente justa,
transparente e reconciliada, ela não poderia ser feliz, já que ou essa sociedade se lembrava de
todas as vítimas do passado, que não participam dela, e seria atravessada pela infelicidade, ou
não se interessava por elas e então não era humana, porque insolidária.

Horkheimer e Adorno exprimiram uma filosofia em tenaz: por um lado, não podiam acreditar
num Deus justo e bom; por outro, há uma verdade da religião, apesar de todas as suas traições
no conluio com o poder e os vencedores: a religião “no bom sentido” é, segundo Horkheimer, “o
anelo inesgotável, sustentado contra a realidade fáctica, de que esta mude, que acabe o
desterro e chegue a justiça”.

Não se trata de um desejo egoísta, mas da esperança contrafáctica de que a realidade
dominante da injustiça não tenha a última palavra. Daí, o “anelo do totalmente Outro”, o “anelo
da justiça universal cumprida”, “a esperança de que a injustiça que atravessa a História não
permaneça, não tenha a última palavra”. E Adorno também escreveu que, frente às aporias da
razão, neste domínio, a única filosofia legítima seria “o intento de contemplar todas as coisas
como aparecem à luz da redenção”.

Embora se não possa afirmar nada para lá da imanência, a pergunta pela esperança truncada
das vítimas, que acusam o mundo da História dos vencedores, obriga a pensar para lá dos
limites da imanência, colocando a pergunta pelo Absoluto enquanto pergunta pela Justiça
universal

sábado, 23 de novembro de 2024

O Homem: questão para si mesmo 15. Pensar significa transcender Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia 17 Novembro 2024

 O Homem: questão para si mesmo

15. Pensar significa transcender
Anselmo Borges

Padre e professor de Filosofia

17 Novembro 2024

Houve tempos em que o mês de Novembro era dedicado aos mortos e à meditação sobre a
morte. Isso hoje não acontece nem se permite que aconteça. Vivemos realmente em sociedades
que fizeram da morte tabu, o último tabu. Na realidade, se tradicionalmente tabu era o sexo,
hoje o sexo está às escâncaras por toda a parte. E vivemos em sociedades do ter, do consumir,
da corrupção, do imediatismo, submersos a dedar na alienação das redes sociais, numa correria
louca não se sabe para onde, enfim, no niilismo... E aí estão as depressões, os suicídios, o vazio
ameaçador da falta de sentido...

Nunca fui de modo nenhum favorável ao pensamento mórbido da morte, que envenena a vida
com o medo e o terror, usados também muitas vezes pela Igreja para aterrorizar as consciências
e exercer o poder.

Quero um pensamento sadio da morte por causa da vida. Conscientes do limite, viver
intensamente. Quando? Agora. E com dignidade e fazendo de nós e da sociedade o que
verdadeiramente queremos. Com tempo e a tempo... Ai!, como o pensamento sadio da morte
acabaria com tanta vaidade oca e toda a procissão de ilusões, boçalidades, malquerenças...

Aqui, na perplexidade, lembro sempre o filósofo ateu religioso, Ernst Bloch, o filósofo da
esperança com quem tive o privilégio de conversar. O núcleo do seu pensamento encontra-se na
obra O princípio esperança, com a enciclopédia de todas as esperanças. Para ele, “o importante
é aprender a esperar”, mas sem ilusões. De facto, por mais longe que se vá na erradicação dos
males que nos afligem, ficará sempre a morte.

Não acreditava em Deus, mas, “onde há esperança, há religião”. Na juventude, admitiu a
reencarnação. Na maturidade, teorizou sobre “o núcleo do Humanum extraterritorial à morte”.

Lá está: “por dignidade pessoal nego-me a que o Homem acabe como o gado”; “a desesperança
é em si, tanto em sentido temporal como objectivo, o insustentável, o insuportável em todos os
sentidos” e “não me resigno a que a última melodia que escutarei sejam as pazadas de terra
despejadas sobre os meus despojos”.

O teólogo J. Moltmann contou-me que, poucos dias antes da morte, lhe perguntou como reagia
a este desafio, tendo ele respondido: “estou curioso” note-se, porém, a força da palavra alemã
“neugierig”, com o sentido de ansioso por novidades. Moltmann também escreveu que “na
véspera de morrer, ao entardecer, ele escutou mais uma vez a sua música mais querida, a
abertura de Fidelio, de Beethoven, com o sinal das trombetas para a libertação dos cativos no
final”. Essa passagem, que associava à Primeira Carta de São Paulo aos Tessalonicenses, 13, 16:
“quando for dado o sinal, à voz do arcanjo e ao som da trombeta de Deus, o mesmo Senhor
descerá dos céus e os que morreram em

Cristo ressuscitarão primeiro”, sempre o comovera. É que, como escreveu, “em Beethoven, pré-
anuncia-se a chegada de um Messias. Erguem-se desde as masmorras sons de liberdade e de
recordação utópica. O grande momento chegou, a estrela da esperança cumprida no aqui e
agora.” A mim também me confessou o que também escreveu: “o cristianismo venceu em
grande parte graças à proclamação de Cristo: ‘Eu sou a Ressurreição e a Vida’”.

A última vez que fui a Tubinga, passei pelo cemitério para uma homenagem. O que estava
escrito na lápide tumular: “Denken heisst Überschereiten” (Pensar significa transcender).
Aí está o que mais faz falta nas nossas sociedades: Pensar.

A Grande Burla de Deus Pe.Manuel João MC

 A Grande Burla de Deus

 

XXXIV Domingo do Tempo Comum (B)
Jesus Cristo Rei do Universo 
João 18,33-37: “Eu sou Rei!” 

A Grande Burla de Deus 

Hoje, último domingo do ano litúrgico, celebramos a solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo Rei do Universo. Esta festividade foi introduzida pelo Papa Pio XI em 1925, num período histórico marcado pelas dificuldades e turbulências do pós-guerra. O Papa Pio XI estava convencido de que apenas a proclamação da realeza de Cristo sobre todos os povos e nações poderia garantir a paz. Com a reforma litúrgica pós-Concílio Vaticano II, a festividade foi colocada no final do ano litúrgico, como sua conclusão natural.

O texto do Evangelho é tomado do relato de São João sobre o interrogatório de Jesus perante Pilatos, o procurador romano. A narração desenvolve-se em torno do tema da realeza de Jesus. No centro do relato está a paródia da coroação real de Cristo, com a coroa de espinhos e o manto de púrpura, encenada pelos soldados. O termo "rei/reino/realeza" (em grego basileús/basileía) aparece quatorze vezes no relato, com uma menção adicional a César. Essa realeza é reivindicada por Jesus, usada sarcasticamente por Pilatos e pelos soldados romanos, e rejeitada pelos judeus. 

Essa finura literária joanina apresenta o episódio como uma verdadeira "epifania", uma revelação da realeza de Cristo. Deve-se destacar também o sentido de liberdade que Jesus transmite em todo o relato, contrastando com a incerteza e o medo de Pilatos. No final, o julgado revela-se o verdadeiro Juiz (Jo 19,8-11). 

Dessa forma, cumpre-se o que dizem os Salmos: “Riem de mim todos os que me veem” (Sal 22,8); “Mas tu, Senhor, zombas deles, ris de todas as nações” (Sal 59,9); “Rirá aquele que habita nos céus; o Senhor zombará deles [...]: ‘Eu mesmo consagrei o meu Rei sobre Sião, minha santa montanha’” (Sal 2,4-6). O nosso desejo (não tão secreto) de "sentar-nos num trono" (seja de que tipo for) aparece, aos olhos de Deus, como uma triste farsa. São Paulo, refletindo sobre o agir de Deus na vida de Jesus, conclui: “O que é loucura para o mundo, Deus escolheu para confundir os sábios; o que é fraco para o mundo, Deus escolheu para confundir os fortes” (1 Cor 1,27). 

A ressurreição do Rei Crucificado revela o que estava oculto aos nossos olhos: o Senhor reina do trono da cruz. “Por isso Deus o exaltou e lhe deu o Nome que está acima de todo nome, para que ao nome de Jesus todo joelho se dobre no céu, na terra e debaixo da terra” (Filipenses 2,9-10). No terceiro dia teve início a "revanche" de todos os oprimidos e vencidos da história. 

Pontos de Reflexão 

As leituras propostas pela liturgia ajudam-nos a aprofundar alguns aspectos da realeza de Cristo proclamada no Evangelho. 

1. Primeira Leitura (Daniel 7,13-14): “Sobre as nuvens do céu, veio alguém semelhante a um filho do homem.” Realeza e HUMANIDADE. 

A este Filho do Homem, “Foi-lhe entregue o poder, a honra e a realeza”. Sua realeza é universal, estável e eterna. Esta figura misteriosa aparece depois que Daniel viu quatro grandes, terríveis e espantosas bestas saírem do mar, símbolo das potências hostis a Deus. As quatro bestas mitológicas representam os quatro impérios anteriores: opressivos, sanguinários e arrogantes. 

Esta "visão" do profeta ilumina o gesto de Pilatos que apresenta Jesus à multidão, dizendo: “Eis o Homem!” (19,5). Apenas um poder humilde, expresso no serviço, nos torna verdadeiramente humanos. Outro tipo de poder é... bestial! 

Todos temos algum poder sobre os outros: por papel social, trabalho, comunidade, Igreja... Mas como o exercemos? Todo poder pode ser exercido em nome de Deus, se vivido no estilo de Jesus: “Eu estou no meio de vós como aquele que serve.” Esta é a realeza do cristão, recebida no batismo: uma realeza que liberta e humaniza. Caso contrário, torna-se um poder inspirado pela Besta, que escraviza! 

2. Salmo Responsorial (Salmo 92): “O Senhor é rei, revestiu-se de majestade.” Realeza e HUMILDADE. 

O Salmista celebra a realeza de Deus. Onde quer que Deus reine, sua majestade brilha, sua força se manifesta e uma nova ordem se estabelece, onde a justiça habita permanentemente. Sua realeza é humilde. Deus não precisa de ostentar nem impor seu poder. Ele é “Aquele que é”. Sua realeza revela-se na humildade. Por isso o Magnificat da Virgem Maria é o mais belo hino de louvor à realeza de Deus! 

3. Segunda Leitura (Apocalipse 1,5-8): “Jesus Cristo é a Testemunha fiel, o Primogénito dos mortos, o Príncipe dos reis da terra.” Realeza e VERDADE. 

Jesus é a Testemunha. O Evangelho explicita-o: “Para isso nasci e vim ao mundo, a fim de dar testemunho da verdade.” Pena que a liturgia omitiu a reação de Pilatos a essa afirmação de Jesus: “O que é a verdade?” Esta pergunta, muitas vezes retórica e com uma dissimulada autossuficiência, torna-se um atalho que também nós utilizamos para evitar confrontarmo-nos com uma verdade incómoda. Preferimos relativizar tudo para justificar uma verdade conveniente. 

O que é a verdade? O que Jesus teria respondido a Pilatos? “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida!” (João 14,6). O que é a verdade? É “a transparência do amor!”, responde Maurice Zundel, teólogo e místico suíço (1897-1975). 

Como podemos viver e honrar a realeza de Cristo? Tornando-nos transparência do amor de Deus no mundo ao nosso redor. 

Pe. Manuel João Pereira Correia, MCCJ

 

quinta-feira, 14 de novembro de 2024

XXXIII Domingo do Tempo Comum (B) Marcos 13,24-32: “Aprendei da figueira” O horóscopo do cristão - Pe. Manuel João- MC

 XXXIII Domingo do Tempo Comum (B)  

Marcos 13,24-32: “Aprendei da figueira”  
O horóscopo do cristão

Chegámos ao penúltimo domingo do ano litúrgico, que terminará no próximo domingo com a festa de Cristo Rei do Universo. Todos os anos, neste penúltimo domingo, a Palavra de Deus convida-nos a levantar os olhos para os horizontes da história, renovando a nossa esperança no regresso do Senhor. Ao mesmo tempo, com a celebração do Dia Mundial dos Pobres neste mesmo domingo, somos incentivados a reconhecer a presença de Cristo nos mais pobres e necessitados.

O trecho do Evangelho de hoje faz parte do capítulo 13 de São Marcos, inteiramente dedicado ao chamado discurso sobre o fim do mundo. O início do capítulo apresenta as circunstâncias deste discurso. Quando saíam do Templo, um dos discípulos chamou a atenção de Jesus para a grandiosidade das suas construções. O Templo, reconstruído por Herodes, o Grande, era realmente magnífico, uma das maravilhas da época. Jesus respondeu: “Vês estas grandes construções? Não ficará aqui pedra sobre pedra que não seja derrubada.” Podemos imaginar o espanto e a perplexidade de todos. Esta profecia cumprir-se-á com a destruição da cidade no ano 70, pelos Romanos.

Enquanto estavam no Monte das Oliveiras, sentados em frente ao Templo, Pedro, Tiago, João e André, os primeiros discípulos chamados por Jesus, interrogaram-no em particular sobre quando e qual seria o sinal de que esta profecia estava para se cumprir. Jesus pronunciou então o chamado “discurso apocalíptico”, o ensino mais longo de Jesus no Evangelho de Marcos. Em conexão com a destruição do Templo e da cidade santa, Jesus fala sobre o fim do mundo e o seu retorno em glória. Esta ligação entre o fim da nação judaica e o retorno do Senhor levou os primeiros cristãos a pensar que o fim era iminente.

Para entender a mensagem do texto, é necessário considerar duas coisas. Em primeiro lugar, o texto é redigido no estilo chamado apocalíptico, difícil de entender para nós, devido à complexidade do seu simbolismo e aos cenários cósmicos, frequentemente esotéricos. “Apocalipse” significa “revelação”. No entanto, não se trata de uma profecia sobre o futuro, como se costuma pensar, mas da revelação do sentido dos eventos da história. Em segundo lugar, este género literário, que floresceu entre o século II a.C. e o século II d.C., não tinha como objetivo assustar, mas sim oferecer conforto e esperança ao povo de Deus em tempos de tribulação e perseguição, anunciando a intervenção de Deus para libertar o seu povo. Poderíamos dizer que a literatura apocalíptica não fala do “fim” do mundo, mas do “sentido” do mundo, isto é, para onde caminha a história.

 

Pontos de reflexão

1. O fim deste mundo já começou!  

“Naqueles dias, depois de uma grande aflição, o sol escurecerá e a lua não dará a sua claridade; as estrelas cairão do céu e as forças que há nos céus serão abaladas.” A perturbação do sol, da lua e das estrelas parece aludir à criação em Génesis 1, como se estivesse prestes a acontecer uma de-criação. Uma referência ao cenário cósmico também aparece na narrativa da morte de Jesus nos Evangelhos sinópticos (Marcos, Mateus e Lucas). Com a crucificação do Filho de Deus, caem o “firmamento” do céu, ou seja, as seguranças e os pontos de referência do homem, e todas as imagens que o homem fazia de Deus. Com a ressurreição de Cristo, inicia-se o processo da nova criação, dos novos céus e da nova terra (2 Pedro 3,13).

2. O fim deste mundo é o objeto da nossa esperança  

“Então, hão de ver o Filho do homem vir sobre as nuvens, com grande poder e glória.” Nós aguardamos esta vinda do Senhor. Proclamamos isso no coração da Eucaristia: “Anunciamos a tua morte, Senhor, proclamamos a tua ressurreição, enquanto aguardamos a tua vinda.” Isso não significa desejar o “fim do mundo” ou uma “catástrofe apocalíptica”, e muito menos tentar adivinhar a hora da sua chegada através dos “sinais” de guerras, terremotos, fomes, perseguições, tribulações, abominações… Estas realidades sempre existiram. Basta-nos saber que tudo está nas mãos do Pai.

“Aprendei a parábola da figueira: quando os seus ramos ficam tenros e brotam as folhas, sabeis que o Verão está próximo.” A figueira anuncia a chegada do verão, a estação dos frutos. Assim é para o cristão, que aguarda com alegria a maturação dos tempos e o encontro com Jesus. O livro do Apocalipse termina com esta resposta do Senhor à oração da Igreja: “Sim, venho em breve! Amém. Vem, Senhor Jesus.”

3. Artífices do fim deste mundo  

“Passará o céu e a terra, mas as minhas palavras não passarão.” Meditando neste Evangelho, o cristão cresce na consciência da provisoriedade da vida e da história. O “fim do mundo” é, afinal, uma realidade de cada dia: todos os dias um mundo morre e um nasce. “Vamos de início em início, através de novos inícios”, diz São Gregório de Nissa. Tudo passa. Apenas duas coisas permanecem: a Palavra do Senhor e a caridade (1 Corintios 13,8).

A nossa espera, no entanto, não é passiva, mas ativa e laboriosa. Estamos envolvidos na preparação da vinda do Reino. Como? Sacudindo o “firmamento” das estrelas e astros que regulam o mundo atual! Sol, lua, estrelas, astros eram divindades no mundo pagão antigo, que governavam a vida dos homens. Basta pensar que cada dia da semana era dedicado a um astro. Os nomes das estrelas e dos astros mudaram, mas o firmamento do nosso mundo continua a ser povoado por deuses: negócios, bolsa de valores, poder, prestígio, beleza, prazer… O “horóscopo” do cristão tem outro firmamento de astros: amor, fraternidade, solidariedade, serviço, justiça, compaixão… Para abalar os alicerces do “velho mundo”, é preciso abalar o “firmamento” que o governa. A tarefa não é nada fácil. Por onde começar? Por nós mesmos: “Não vos conformeis com este mundo, mas deixai-vos transformar, renovando o vosso modo de pensar.” (Romanos 12,2).

P. Manuel João Pereira Correia, mccj

 

 

terça-feira, 12 de novembro de 2024

O Homem: questão para si mesmo. 14. A morte e o intolerável Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia 10 Novembro 2024

 O Homem: questão para si mesmo.

14. A morte e o intolerável
Anselmo Borges

Padre e professor de Filosofia

10 Novembro 2024

Conta-se que um dia um padre entrou na igreja e viu Deus a rezar. Terrivelmente perplexo,
perguntava a si mesmo a quem é que Deus poderia rezar. Aproximou-se, e constatou, com
espanto, que, Deus rezava ao homem: “Homem, se existes, mostra-te, aparece!” Mas Deus, o
criador, devia saber que o homem existe - como é que perguntava por ele?! De qualquer modo,
daí para diante, o padre anunciava por toda a parte que Deus existe: ele próprio tinha-o visto a
rezar ao homem, a perguntar por ele...

Nesta história - ingénua? -, está presente aquela urgência em que consiste a questão de Deus,
que Eduardo Lourenço traduziu assim: “Deus? O problema é saber se nós existimos para Deus.”

Afinal, porque é que perguntaríamos por Deus, se ele não estivesse presente em nós? Como é
que o procuraríamos, se, como explicitaram concretamente Santo Agostinho e Pascal, o não
tivéssemos já encontrado?

Deus está presente, pelo menos como questão aberta, essencialmente na pergunta irrecusável
pelo sentido último. A existência humana é uma caminhada de sentido em sentido: tem sentido
crescer e aumentar os conhecimentos, tem sentido casar, formar família, ter filhos, educá-los,
procurar uma realização profissional, tem sentido bater-se pela Justiça, festejar, fazer
investigação para aprofundar a compreensão do mundo e transformá-lo, sacrificar-se pela
edificação de uma sociedade mais justa e feliz... Mas se, no fim, pela morte, tudo desembocasse
no nada, então, em última análise, tudo apareceria sem sentido, precisamente porque a vida é
essa caminhada de sentido em sentido, à procura do Sentido último, e, no final, era o nada.
Precisamente esse nada é intolerável.

O carácter insuportável desse nada, do acabar no nada, do nunca mais ser para todo o sempre,
adquire intensidade dramaticamente maciça na morte do amigo. Por um lado, olha-se para
aquele resto cadavérico e tem-se consciência de que o amigo está real e totalmente morto - é
uma naturalidade evidente morrer e estar morto. Por outro, o amigo não é, não pode ser, aquele
resto. Mas então onde está, para onde foi? Como é que partiu sem deixar endereço? E fica-se
atordoado, é como se o mundo nos caísse em cima ou caíssemos nós num abismo - o
pensamento desfaz-se de parede contra parede, a fonte das palavras fica absolutamente seca, e
é um vazio sem fim...

A morte de alguém é sempre o fim de um mundo, a morte de um amigo é irreparável. Com a
morte do amigo, a nossa própria morte faz a sua entrada no mais profundo de nós mesmos.
Como escreveu Santo Agostinho: “Admirava-me de viverem os outros mortais, quando tinha
morrido aquele que eu amava, como se ele não houvesse de morrer! E, sendo eu outro ele, mais
me admirava de eu viver, estando ele morto.” E aí ergueu-se gigantesca, assombrosa e inevitável
a pergunta essencial: “Factus eram ipse mihi magna quaestio - tinha-me tornado para mim
próprio uma questão enorme.”

Decisivo é não abandonar a pergunta até ao fim e ao fundo. É que, como escreveu Theodor
Adorno, fundador da Escola Crítica de Frankfurt, agnóstico: “O pensamento que não se decapita
desemboca na Transcendência.” E como escreveu Max Horkheimer, outro fundador da Escola de
Frankfurt, “é impossível salvar um sentido absoluto sem Deus” e, por isso, a religião está em
conexão com “o anelo de que esta existência terrena não seja absoluta”, de que o sofrimento e a
morte “não sejam o último.”
Escreve de acordo com a antiga orto